Não, o título desta notícia não está errado: a percentagem de aumento da violência sexual contra crianças no Haiti no último ano é mesmo de 1.000 por cento – sim, com três zeros – segundo os dados mais recentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). “Quase igualmente impressionante é a pouca cobertura que essa estatística macabra recebeu”, denuncia o porta-voz global da organização, James Elder.
“Um aumento impressionante de 1.000 por cento na violência sexual contra crianças no Haiti transformou os seus corpos em campos de batalha. O aumento de dez vezes, registado de 2023 até ao ano passado, ocorre enquanto grupos armados infligem horrores inimagináveis às crianças”, sublinhou Elder, no discurso que fez no Palácio das Nações, em Genebra, na última sexta-feira, 7 de fevereiro.
E se os números são impressionantes, conhecer os nomes e as histórias por trás deles é ainda mais. James Elder contou uma delas: a história de Roseline, 16 anos. “No final do ano passado, saiu de casa de uma amiga para ir às compras e foi sequestrada por homens armados. Foi colocada numa carrinha com outras meninas e levada para um armazém. Lá, foi brutalmente espancada. Depois, foi drogada e, ao longo do que ela acredita ter sido um mês, foi violada implacavelmente. Quando o grupo armado percebeu que Roseline não tinha ninguém para pagar o seu resgate de sequestro, foi libertada. Está atualmente numa casa segura apoiada pela Unicef com mais de uma dúzia de outras meninas, todas recebendo cuidados”, relatou o porta-voz. Mas quantas crianças continuam nas mãos dos grupos armados, que atualmente controlam 85 por cento da capital do país, Porto Príncipe? Demasiadas.
“Só no ano passado, o recrutamento de crianças para grupos armados aumentou 70 por cento. Neste preciso momento, até metade de todos os membros de grupos armados são crianças, algumas com apenas oito anos de idade”, revelou James Elder. “Muitos são levados à força. Outros são manipulados ou movidos pela pobreza extrema. É um ciclo letal: crianças são recrutadas para os grupos que alimentam o seu próprio sofrimento”, assinalou.
Com mais de 500 mil crianças deslocadas, 300 mil com o seu percurso escolar interrompido e a estimativa de que três milhões precisarão de urgência humanitária urgente este ano, a organização apela à comunidade internacional para que aumente o apoio à população do Haiti.
Amnistia Internacional entrevistou dezenas de crianças vítimas dos gangues
Uma menina num campo de deslocados em Léogâne, a oeste da capital haitiana, Porto Príncipe. Foto © Unicef/Maxime Le Lijour
Também a Amnistia Internacional (AI) acaba de publicar um relatório que “denuncia a situação das crianças no Haiti, vítimas de recrutamento por gangues, ataques e violência sexual no meio da escalada da crise no país”.
Intitulado Sou uma criança, porque é que isto me aconteceu? O ataque dos gangues à infância no Haiti, o documento baseia-se em 112 entrevistas realizadas pelos investigadores da AI no passado mês de setembro a crianças, funcionários governamentais, trabalhadores humanitários haitianos e internacionais e membros do pessoal da ONU no país.
O título reproduz a frase de uma de duas irmãs adolescentes que foram raptadas por membros de gangues quando regressavam da escola e sujeitas a violação coletiva: uma por cinco homens, a outra por seis. Foi ela que disse à Amnistia Internacional: “Penso nisso e digo a mim própria: sou uma criança, porque é que isto me aconteceu?”.
Esta e outras histórias divulgadas no relatório mostram como “a violência implacável dos gangues em Port-au-Prince e arredores resultou num ataque brutal à infância no Haiti”. “A vida de demasiadas crianças no Haiti está a ser destruída e elas não têm para onde ir em busca de proteção ou justiça. São perseguidas e, por vezes, mortas por grupos de autodefesa, enquanto as autoridades as detêm arbitrariamente. A infância está a ser roubada”, afirma a secretária-geral da organização, Agnés Callamard, citada no comunicado que dá a conhecer este novo relatório.
A Amnistia Internacional documentou os casos de 18 raparigas sujeitas a violação e outras formas de violência sexual por membros de gangues. Algumas foram atacadas mais do que uma vez. Em dez casos, as raparigas foram sujeitas a violação coletiva; em nove casos, foram raptadas. Várias raparigas contaram à Amnistia Internacional que engravidaram em resultado de terem sido violadas. Como o aborto continua a ser criminalizado no Haiti, algumas recorreram a métodos pouco seguros para tentar pôr termo à gravidez indesejada.
Foram também entrevistados onze rapazes e três raparigas recrutados e utilizados pelos gangues. Estes descreveram ter sido explorados de várias formas, incluindo para vigiar gangues rivais e a polícia, para fazer entregas, ou para fazer tarefas domésticas, trabalhos de construção e reparação de veículos. Todas as 14 crianças disseram que não tinham escolha e que agiram predominantemente por medo ou fome. Um rapaz de doze anos disse que foi forçado por membros do gangue de Grand Ravine a ser informador: “Se eu não o fizesse, eles matavam-me”. afirmou. Outro rapaz pré-adolescente disse que foi forçado por um gangue a andar armado para cometer atos criminosos. Garantiu à Amnistia Internacional: “O que fiz, não o fiz de todo o coração. Não compreendia o que estava a fazer. Peguei numa arma, não para magoar, mas para me sustentar”.
Perante este cenário, Agnés-Callamard apela: “Chegou o momento de as autoridades haitianas e a comunidade internacional,
incluindo os doadores, intensificarem os seus esforços. As expressões vazias de preocupação não são suficientes. Os corpos, as mentes e os corações das crianças são violados todos os dias. O Haiti precisa de assistência urgente para proteger as crianças e evitar novos ciclos de violência”.
A secretária-geral da organização de defesa dos direitos humanos propõe que O Governo haitiano e os doadores internacionais colaborem “para desenvolver um plano de proteção infantil abrangente e inclusivo”. “Os programas para desmobilizar e reintegrar eficazmente as crianças associadas a gangues, bem como para fornecer assistência médica e jurídica abrangente aos sobreviventes de violência sexual, são uma prioridade. O Governo deve também combater a impunidade, acelerando a criação de tribunais judiciais especiais para o julgamento de graves abusos e violações dos direitos humanos”, defende Callamard.
Assinalando que há um “fluxo maciço de armas de fogo para o Haiti, que permite os abusos generalizados dos gangues”, a ativista defende que este “deve ser controlado”. Ao mesmo tempo, “os países também devem parar de deportar haitianos à força enquanto a campanha de terror das gangues e a crise mais ampla dos direitos humanos continuarem”, conclui a secretária-geral da Amnistia Internacional.
A organização escreveu ao gabinete do primeiro-ministro do Haiti, Alix Didier Fils-Aimé, apresentando um resumo das conclusões deste relatório, em dezembro de 2024. No entanto, “à data da publicação, não tinha sido recebida qualquer resposta.”
(Imagem de destaque: Crianças deslocadas pela violência de gangues no Haiti esperam na fila por comida. © Unicef/Ralph Tedy Erol )
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