uma necessidade e simultaneamente uma oportunidade para Portugal – Observador

A invasão da Ucrânia, em 2022, gerou na Europa um sentido de urgência em matéria de defesa que não existia desde os anos quentes da Guerra Fria. Os países europeus, incluindo Portugal, vêem-se compelidos a repensar a sua postura: reforçar capacidades militares, reabastecer arsenais e garantir o apoio a qualquer aliado que venha a estar sob ataque. Simultaneamente, a presidência de Donald Trump reabriu, na Europa, o debate sobre a sua dependência excessiva dos Estados Unidos, em matéria de defesa. Este contexto de instabilidade acelerou decisões há muito adiadas.

A União Europeia (UE), tradicionalmente ausente na área de defesa, quebrou tabus e lançou medidas inéditas para robustecer a Base Tecnológica e Industrial de Defesa Europeia. Além de programas como o EDIRPA (reforço industrial de defesa via aquisições conjuntas urgentes) e o ASAP (apoio à produção de munições), criados para apoiar rapidamente a Ucrânia, pretende-se desenvolver capacidades próprias de produção, através do Programa Europeu da Indústria de Defesa (EDIP), para o qual o Parlamento Europeu aprovou a sua posição, antecedendo as negociações com o Conselho da União Europeia, em vista à sua aprovação final. Trata-se de um plano estruturante para o setor, com uma dotação inicial de, aproximadamente, 1,5 mil milhões de euros em subvenções, até 2027, a que o Parlamento pretende acrescentar até 20 mil milhões de euros em empréstimos, no âmbito de um novo instrumento de financiamento para os Estados-Membros: Ação pela Segurança da Europa (SAFE), visando transformar a defesa europeia num esforço genuinamente coletivo, cooperativo e “Made in Europe”.

O EDIP insere-se na Estratégia Industrial de Defesa Europeia e pretende colmatar a lacuna entre os esforços a curto prazo e uma abordagem mais permanente e estratégica a longo prazo. Em termos práticos, o programa cria incentivos financeiros para que os Estados-Membros realizem compras conjuntas de armamento “Made in Europe” e invistam de forma a aumentar a capacidade de produção das suas indústrias de defesa. O objetivo é duplo: por um lado, garantir que as forças armadas europeias têm acesso atempado a equipamentos militares (de munições a sistemas complexos); por outro lado, alavancar a produção industrial no continente, com mais inovação e menos dependência de fornecedores externos. A meta é inverter décadas de fragmentação e subinvestimento. Até 2030, o Parlamento Europeu pretende que 40% dos equipamentos de defesa sejam adquiridos de forma colaborativa e que, pelo menos, 35% do mercado europeu da defesa seja produzido na União Europeia.

Um dos pilares centrais do EDIP é o princípio de “buy European”, segundo o qual serão cofinanciados projetos em que pelo menos 70% do valor do produto final corresponda a componentes ou tecnologias oriundas da UE (ou de países associados). Esta medida, defendida pelo Parlamento Europeu, visa salvaguardar que o investimento público europeu incentiva a criação de emprego e valor acrescentado dentro da UE, reforçando a autonomia estratégica coletiva. Isto significa que futuras aquisições de produtos e material de defesa, com recurso a financiamento de Bruxelas, deverão privilegiar fornecedores europeus. Esta é uma oportunidade para que as indústrias nacionais se integrem em cadeias de produção continentais.

No entanto, é um desafio reduzir as dependências de componentes produzidos fora da UE. Se, por exemplo, um equipamento militar, tradicionalmente, incorpora tecnologia ou componentes importados de países terceiros, agora haverá um forte incentivo para encontrar (ou desenvolver) alternativas europeias, sob pena de não se aceder aos fundos do EDIP. É um desafio saudável, compatível com o propósito da UE de alavancar o mercado único europeu: promove a inovação e a colaboração industrial intraeuropeia e incentiva a procura de novos fornecedores locais.

Outro aspeto inovador do EDIP é o seu critério de equilíbrio geográfico e de cooperação alargada. Para que um projeto de defesa seja considerado de interesse europeu comum e receba apoio, deverá integrar um mínimo de seis Estados-Membros (ou pelo menos quatro, caso sejam países com alto risco de ameaças convencionais). Esta exigência torna, praticamente, obrigatória a participação de consórcios multinacionais em cada iniciativa, garantindo que os benefícios industriais e estratégicos sejam partilhados de forma mais equilibrada por grandes e pequenos países. Na prática, isto pretende evitar que apenas as nações com complexos industriais de defesa robustos (como França, Itália, Alemanha ou Suécia) absorvam a fatia de leão dos fundos.

Portugal, tradicionalmente na periferia dos grandes projetos de armamento, passa a ter mais hipóteses de ser incluído se tomar a iniciativa de se associar a parceiros europeus desde cedo. O equilíbrio geográfico promovido pelo EDIP vai ao encontro de uma antiga aspiração: assegurar que todos os Estados-Membros beneficiam do reforço do investimento em defesa europeia, incluindo aqueles com indústrias mais modestas. Será, igualmente, incentivada a participação de PMEs inovadoras, reconhecendo que a base industrial de defesa não se resume aos gigantes do setor, mas inclui uma rede de pequenos fornecedores, mas altamente especializados, localizados em toda a Europa.

Portugal tem trunfos a jogar: start-ups e PMEs nacionais têm desenvolvido soluções vanguardistas, como demonstram os drones de vigilância da “unicórnio” Tekever (atualmente utilizados em operações da Frontex e da NATO) ou os sistemas de comunicações navais da EID, para citar dois exemplos. Com o enquadramento certo, estas e outras empresas podem crescer e integrar-se em projetos europeus, aumentando a sua competitividade.

No entanto, é necessário fazer um breve diagnóstico: qual é o estado atual da indústria de defesa portuguesa face a este novo panorama? Apesar de vários pontos de excelência, a nossa indústria é de dimensão reduzida. Portugal investe, atualmente, cerca de 1,5% do PIB em Defesa, e essa contingência orçamental histórica, associada à excessiva dependência do setor no investimento público, traduziu-se numa base industrial pouco diversificada. Ainda assim, existe um núcleo de competência tecnológica em áreas específicas, muitas vezes alavancado por parcerias internacionais. A experiência para a produção do avião de transporte KC-390 é elucidativa: através de um acordo com o fabricante brasileiro Embraer, a indústria nacional produz em Évora e em Alverca do Ribatejo algumas das estruturas primárias mais complexas desta aeronave. Por cada KC-390, vendido mundialmente, a economia portuguesa ganha cerca de 10 milhões de euros em exportações. Ou seja, ao investir num projeto multinacional e ao exigir retorno industrial, Portugal inseriu-se num programa de futuro, obtendo, simultaneamente, capacidades militares (a Força Aérea Portuguesa receberá cinco destas aeronaves) e benefícios económicos. Este percurso, ainda que modesto, demonstra que quando existe visão estratégica e cooperação, Portugal consegue participar em programas de defesa de alto nível. Exemplos como este servem de inspiração para o que agora se avizinha com o EDIP.

Para Portugal aproveitar plenamente o EDIP será fundamental adotar uma postura proactiva e construtiva, tanto por parte do Governo como da indústria. Em primeiro lugar, é fulcral uma direção política alinhada com o mercado que defina uma estratégia transversal: quais os nichos em que a nossa indústria pode competir e crescer, como por exemplo, setores ligados ao Oceano Atlântico (drones marítimos, sensores navais), cibersegurança ou manutenção aeronáutica, bem como canalizar os esforços necessários para ser competitivo a nível europeu e mundial.

Além disso, é preciso coordenação: as autoridades nacionais (Ministérios da Defesa, Economia, Emprego e Negócios Estrangeiros) devem funcionar como ponte entre as empresas portuguesas e os consórcios europeus que sejam criados, promovendo encontros, facilitando contactos e até alinhavando acordos políticos com outros governos para desenvolvimento conjunto de capacidades.

Para além disso, é crucial garantir previsibilidade no financiamento para a defesa: a meta de atingir pelo menos 2% do PIB, a curto prazo, em investimentos militares, prevendo-se que, após a próxima cimeira da NATO, que terá lugar no final do próximo mês em  Haia, esta meta deva subir para valores a rondar os 3,5% do PIB, nos próximos anos, é um compromisso que Portugal terá de cumprir. Com um horizonte temporal claro para alcançar este objetivo, as empresas terão confiança para investir em novas tecnologias e aumentar locais e capacidades de produção, sabendo que haverá procura interna e externa.

Cabe-nos agora corresponder, com trabalho sério. Isso inclui melhorar processos internos (simplificar procedimentos de contratação e processos de licenciamento, para acompanhar o ritmo acelerado dos projetos europeus), investir na capacitação de mão de obra especializada e fomentar a ligação entre a academia, as Forças Armadas e as empresas, um triângulo de inovação crucial para gerar novos produtos de defesa competitivos. Ao participar neste esforço europeu, Portugal pode ganhar escala e relevância que sozinho não conseguiria. Podemos passar de meros clientes a parceiros na produção de equipamentos de defesa, com todas as vantagens associadas, em termos de transferência de tecnologia, criação de emprego qualificado e fortalecimento da nossa base industrial.

É importante lembrar que existem desafios evidentes: de capacidade, de recursos e de conhecimento. Mas está a desenvolver-se um quadro europeu favorável sem precedentes para superá-los. O momento pede visão e ação concertada. Portugal deve apresentar-se como um aliado confiável e empenhado, disponível para investir em conjunto, partilhar riscos e colher frutos. E não se trata apenas de cumprir regras ou metas impostas de fora, mas sim de servir o interesse nacional de forma moderna, contando com os nossos verdadeiros aliados. É, precisamente, essa a visão subjacente ao EDIP, que Portugal tem de capitalizar, mobilizando vontades e recursos para que não fiquemos para trás neste novo capítulo da Defesa europeia.


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