“Uma comichão insaciável”. Há pessoas a recorrerem a medicamentos de perda de peso para silenciarem o ruído alimentar
Cada vez mais pessoas manifestam aversão ao ruído alimentar, e já há quem recorra a medicamentos para perda de peso, de forma a silenciá-lo.
Savannah Mendoza costumava gastar grande parte do seu ordenado em aplicações de entrega de comida e em passagens pelos “drive-thru” de fast food, tentando satisfazer um desejo compulsivo.
Depois de começar a tomar um medicamento popular usado para perda de peso e diabetes, viu esse desejo de outra forma: ruído alimentar.
“É algo tão obsessivo, e não é uma sensação boa. É uma sensação muito feia, porque ficamos presos nesse único pensamento de querer comer”, conta.
O ruído alimentar é um diálogo interno constante sobre comida que algumas pessoas experienciam, dificultando a tomada de decisões saudáveis em relação à alimentação. A conversa em torno deste fenómeno tem crescido, especialmente online, à medida que mais pessoas que tomam medicamentos populares para perda de peso e diabetes se apercebem de que os fármacos parecem desligar o ruído.
A semaglutida e a tirzepatida são agonistas do recetor do péptido semelhante ao glucagão tipo 1 (GLP-1), que funcionam ao sinalizar ao corpo que acabou de comer, promovendo a libertação de insulina e atrasando o esvaziamento gástrico. Estes medicamentos são prescritos para tratar a diabetes tipo 2 com os nomes comerciais Ozempic e Mounjaro. As versões associadas à perda de peso, Wegovy e Zepbound, ajudaram milhões de pessoas a emagrecer.
Mendoza, de 27 anos, começou a pensar constantemente em comida no início dos seus 20.ª anos. Chegava a inventar desculpas para sair de casa, alegando ter tarefas, só para passar por um drive-thru e comer no carro. Em algumas manhãs, comia gelado diretamente do recipiente enquanto preparava o lanche da filha.
“Pensava apenas que era obcecada por comida”, conta Mendoza, que vive em Huntington Beach, Califórnia.
Agora, ao tomar tirzepatida, afirma sentir paz sem o ruído alimentar. Refere que, em parte, isso se deve a um efeito secundário do medicamento: sente-se “sempre um pouco inchada e sem apetite”.
Summer Kessel, que usa tirzepatida há mais de dois anos, diz que era como um “poço sem fundo” que nunca se sentia satisfeita.
“Estava sempre a pensar, a planear, a tentar arranjar forma de comer mais qualquer coisa”, conta Kessel, de 37 anos. “Tomava o pequeno-almoço em casa, depois outro no trabalho, depois o almoço, um snack antes de sair, fast food no caminho de volta e, finalmente, jantar quando chegava.”
Uma semana depois da primeira injeção do medicamento, sentiu alívio.
“Foi como se, de repente, todo aquele ruído na minha cabeça sobre ‘o que posso comer, onde posso comer, quanto posso comer, será que vou gostar, quantas calorias tem, qual é a porção’… como se todo esse lixo mental tivesse silenciado, e eu finalmente pudesse viver sem estar sempre a pensar em comida ou a sentir fome.”
Kessel, nutricionista com 20 anos de experiência em saúde, hoje também partilha conselhos alimentares com uma ampla comunidade nas redes sociais. Mas diz que só após iniciar a tirzepatida conseguiu realmente praticar o que ensinava: comer três refeições equilibradas por dia.
“Sinto fome na hora certa das refeições. … Mas entre refeições, não estou com fome na cabeça. E não penso em comida como algo saboroso ou apetecível — penso no que me vai nutrir e fazer sentir bem.”
Ciência por trás do ruído alimentar
As causas do ruído alimentar ainda não são completamente compreendidas, mas a maioria dos especialistas acredita que é real, mesmo que a consciência sobre o fenómeno seja recente.
Há cerca de 15 anos, Michael Lowe, professor no Departamento de Psicologia e Ciências do Cérebro da Drexel University (Filadélfia), desenvolveu a teoria da fome hedónica: um desejo intenso por prazer alimentar sem existir fome física. Essa teoria – e a escala “Power of Food” – está a ser usada em ensaios clínicos para medir o desejo por comida saborosa mesmo quando não há fome.
“A fome hedónica parece muito semelhante ao ruído alimentar reportado por muitos que tomam medicamentos GLP-1”, explica Lowe. “Estudei o apetite e como as pessoas o tentam controlar ao longo da minha carreira. Sabemos que existe um sistema biológico que nos alerta quando precisamos de calorias. Mas esse sistema não explica porque é que, nas últimas quatro décadas, temos comido muito mais do que o necessário.”
A fome que sentimos antes do jantar, por exemplo, é homeostática – normal. Já a fome hedónica leva-nos a continuar a comer mesmo depois do corpo estar saciado.
“Quando comemos porque precisamos de energia, o prazer vem por acréscimo. Mas quando continuamos com um forte desejo de comer mesmo sem fome física, o prazer passa a ser a motivação principal”, diz Lowe.
Ambiente alimentar influencia
Segundo Lowe, parte da fome hedónica é previsível na cultura alimentar dos EUA (e de muitos países ocidentais). Ruas cheias de fast food e a ausência de alimentos frescos tornam fácil comer demasiado — e mal.
Jackson LeMay, da Geórgia, descreve o ruído alimentar como “uma comichão constante e insaciável”, que começou ainda no liceu.
“Escondia comida, ia à despensa às escondidas, pedia dinheiro a mais para gastar nas máquinas automáticas”, conta.
Na idade adulta, as redes sociais e os serviços de entrega tornaram os episódios compulsivos mais fáceis — e difíceis de controlar. LeMay perdeu 70 quilos com dieta, exercício e Mounjaro, que ainda usa para manter o peso.
“Só percebi o impacto do ruído alimentar depois de iniciar o medicamento. Não nos apercebemos de quão disfuncional é a nossa relação com a comida até que o ruído desapareça.”
Najaf Asrar, endocrinologista e especialista em obesidade, trabalha junto a uma loja de bolachas.
“Cada vez que olho pela janela, penso em comprar uma caixa para a família. O ruído alimentar é altamente influenciado pelo ambiente. Antes não existiam lojas dedicadas apenas a sobremesas”, comenta.
Asrar utiliza medicação combinada com mudanças de estilo de vida.
“A obesidade é uma doença crónica, mas o medicamento não tem de ser para sempre. Alguns pacientes conseguem reprogramar o cérebro e, depois de atingirem o peso ideal, o ruído alimentar já não os afeta tanto.”
É possível “reprogramar” o cérebro?
Embora os medicamentos GLP-1 pareçam ajudar pessoas com excesso de peso que enfrentam o ruído alimentar, não são a única solução – nem estão indicados para quem tem um IMC normal.
Tom Hildebrandt, diretor do Centro de Excelência em Transtornos Alimentares do Mount Sinai (Nova Iorque), considera o ruído alimentar como um conjunto de sinais periféricos que levam a um excesso de pensamentos e estímulos relacionados com comida, muitas vezes associados (erradamente) à falta de autocontrolo.
“Talvez não seja apenas responsabilidade individual. Pode haver uma condição metabólica que altera a forma como o cérebro experiencia fome, saciedade e imagem corporal”, afirma. O excesso de escolhas alimentares e estímulos dificulta fazer boas escolhas.
A equipa de Hildebrandt trata o ruído alimentar com 12 a 20 sessões de terapia cognitivo-comportamental, com dois objetivos: proteger contra um ambiente alimentar tóxico e reaprender a autorregulação.
“Não funciona com toda a gente, mas tem bons resultados. A maioria das pessoas vê o ruído diminuir e consegue viver de forma mais funcional.”
O centro também pode prescrever antidepressivos ou Vyvanse (medicação para transtorno de compulsão alimentar), antes de recorrer aos GLP-1.
“Esperamos por mais evidência científica que confirme a eficácia dos GLP-1 contra o ruído alimentar antes de os priorizarmos.”
Hildebrandt alerta que, embora os GLP-1 reduzam o ruído, podem criar um novo medo: o de certos alimentos causarem mal-estar físico.
“Não é raro que alguém coma algo e sinta-se mal fisicamente. Esse desconforto acaba por funcionar como inibidor – mas pode transformar-se num medo da comida.”
Como é que os GLP-1 podem ajudar?
Zepbound e Wegovy não são indicados especificamente para tratar o ruído alimentar, mas muitos pacientes dizem que esse efeito é inegável.
Kessel, a nutricionista, diz que mesmo que nunca perdesse peso, estaria satisfeita com o Mounjaro “só pelo silêncio mental”.
Segundo Lowe, estes medicamentos oferecem dois benefícios: reduzem o ruído alimentar e promovem uma maior perda de peso do que outras abordagens.
“Este fármaco atua diretamente na fisiologia do apetite excessivo. Altera a química cerebral e hormonal que ativa o desejo por comida sem necessidade real. Reduz os pensamentos obsessivos com comida e exige pouco autocontrolo para obter resultados”, afirma.
LeMay diz que a sua alimentação melhorou quase imediatamente com Mounjaro – mas continua a desfrutar das refeições.
“Antes, vivia para comer. Agora, como para viver. Como para nutrir o corpo, para ter energia e sentir-me bem.”
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