Um país combalido e uma prosa no Catedral

OPINIÃO
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Notícia

No Peru, o poder abandonou o Executivo e ficou centrado no Congresso controlado por bancadas que mesclam interesses promíscuos com política e negócios

O tema dessa crônica é uma conversa irreal, numa mesa de bar, entre duas personagens do romance “Conversaciónenla Catedral” do peruano Vargas Llosa: o jornalista Zavala ou Zavalita e seu motorista Ambrosio. De súbito, começam a se agitar de forma arrastada, entre sons, visualidades e transes da alma, algumas figuras – prestigiosas e insignificantes – da ditadura do general Manuel Odría ou OchenioOdría: militares, políticos, empresários, cacundeiros, prostitutas. É o momento em que a história se envilece ou se achincalha ao se transformar em colapso moral, social, político e histórico da América do Sul e, quiçá, do Peru. Afinal, pelo menos 20 ex-presidentes foram presos nesse subcontinente. Grande parte por corrupção.

O interesse pelo Peru não surpreende tendo em vista a morte recente do escritor Vargas Llosa e a eleição do Papa norte-americano – Robert Prevost – que adotou o nome régio de Leão XIV. Conhecido na zona sul de Chicago, a cidade dos mitos e alegorias, pelo apelido de “o yankee latino”, o novo Papa viveu duas décadas no Peru onde requereu a cidadania peruana. Único agostiniano, presente no Conclave, o pontífice revelou na homilia da primeira missa na Capela Sistina, a pesada cruz que estava prestes a carregar: “há lugares onde a missão da igreja se torna urgente, porque a falta de fé, muitas vezes, traz consigo dramas como a perda do sentido da vida, o esquecimento da misericórdia, a violação da dignidade da pessoa e tantas outras feridas das quais a nossa sociedade sofre”.

Mas não se deseja falar do Papa. O jornalista Ivanildo Sampaio, no JC do último domingo, já escreveu um excelente artigo. O assunto dessa crônica é o Peru, o Brasil e a América Latina. O primeiro país é, atualmente, governado por uma mulher: a presidente Dina Boluarte, de linha centro-direita e alvo do escândalo denominado “Rolergate”. Pesa sobre a governante a acusação de não haver declarado mais de uma dezena de relógios rolex de luxo, sempre exibidos pela governante e avaliados em milhões de dólares. O Brasil conhece parte desse longa-metragem.

Com apenas 5 % de aprovação popular, Boluarte vem sendo sustentada no poder pelo Congresso da República com as suas divisões internas e com a captura ou cumplicidade das Forças Armadas, do Tribunal Constitucional, da Defensoria do Povo e do Ministério Público. Em súmula, o Peru está vivenciando, assim como outros países do bloco latino, períodos de vicissitudes e volubilidade política. Nenhum país logrou tantas trocas de presidente. Foram cinco ou seis em apenas seis anos. Mas essa impermanência não é inerente ao Peru. Afinal, incluindo Fernando Collor de Mello, a América do Sul teve ao menos 20 presidentes receberam pena de prisão. E apenas neste século.

Convém não esquecer que a ex-primeira-dama do Peru e seu marido, o ex-presidente OllantaHumala, foram condenados a 15 anos por recebimento ilícito de recursos da empreiteira Odebrecht (hoje Novonor). Eis o braço da lava-jato brasileira, em plena cirurgia.

Nadine Alarcon e o filho menor de idade chegaram ao Brasil em 14 de abril transportados por um avião da FAB e com o asilo diplomático aprovado pelo Ministério das Relações Exteriores.A concessão do “benefício” gerou implicações políticas e diplomáticas. O exemplo maior foi a convocação do Ministro das Relações Exteriores do Brasil, Mauro Vieira, pela Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional (CREDN) da Câmara dos Deputados do Peru. Infelizmente, nenhum efeito resultou da medida. Na opinião dos parlamentares peruanos, ao acolher como exilada a ex-primeira dama, o Brasil estaria enviando ao Mundo uma imagem distorcida da Convenção de 1954.

A situação política do Peru vem recebendo diferentes traduções. O jornalista Ricardo Monzón, por exemplo, culpa o excesso de partidos eassegura que debaixo de cada pedra do Peru pode ser localizado uma agremiação. São 43 que irão concorrer nas eleições de 2026. O número não surpreende. O Brasil conta com 35 registrados na Justiça Eleitoral. Também não difere do nosso País a fórmula adotada pelo sistema peruano para redução do número de partidos: união, coalizão, aliança, federação… No bojo de cada sigla é fácil identificar a desinformação digital, manipulação, espetáculo e até conspirações bem nutridas. E não conhecemos nenhuma teoria, nenhuma moral e ética, nenhuma filosofia ou religião com capacidade de colocar atravanques ou limitações ao poder partidário.

Esse breve apanhado impõe um fecho perturbador: com a ausência de democracia no bojo partidário, com a estrutura essencialmente oligárquica, com um poder de decisão nas mãos de uma minoria e com o processo de corrupção se alastrando lenta e progressivamente, como é possível falar em direitos fundamentais? Não se deve esquecer que o Peru é um terreno fértil para o populismo e para figuras “outsiders” e que a quinta Constituição de 1993 já foi alterada diferentes vezes. Também nesse aspecto há identificação com a do nosso país.

No Peru, o poder abandonou o Executivo e ficou centrado no Congresso controlado por bancadas que mesclam interesses promíscuos com política e negócios. Eis o momento de recordar que, após altos e baixos, revoluções, golpes de Estado, ditaduras e regimes militares o país chegou à “Comisión de laVerdad y Reconciliación” (CVR) na esperança de haver instaurado a democracia liberal. Mas a democracia neófita logo percebeu que não é possível obter a paz e alcançar a justiça, dignidade humana, liberdade e igualdade sem erradicar os fatores de conflito e sem observância da herança cultural da sociedade. Por outras palavras, a vida de um povo é, tal como sucede com a vida do homem, produto das experiências adquiridas no ontem. Prescindir do passado é uma condenação ao suicídio. Resta saber se é esse o preço que a América do Sul deseja realmente pagar.

Dayse de Vasconcelos Mayer é doutora em ciências jurídico-políticas

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