Um autor “extraterrestre” inspirado por cães

A perpetuação do regime de Hugo Chávez pelo sucessor Nicólas Maduro gerou no então professor de Letras Rodrigo Blanco Calderón o mesmo desejo que em milhares de venezuelanos: abandonar o país. Foi o sentimento a partir de 2012 e que se concretizou com um exílio em França e depois em Espanha, onde vive atualmente. Esteve recentemente no encontro literário das Correntes d’Escritas, na Póvoa de Varzim, para apresentar o seu segundo romance, Simpatia, uma narrativa que à primeira vista parece principalmente preocupada com os cães abandonados por um êxodo massivo dos seus donos daquele país, mas rapidamente se entende que essa temática se entrelaça com a dos cidadãos venezuelanos.

Para Calderón, o assunto que ocupa o seu segundo romance nasce do amor por esses animais e, em paralelo, entendeu que as relações entre as pessoas faziam parte natural do romance. É em muito diferente do primeiro livro que publicou, The Night, como explica: “Sim, o Simpatia é um romance mais tradicional e linear, com menos personagens e tramas secundárias. É um livro que se preocupa com as relações pessoais e num espaço mais restrito. O The Night era muito mais complexo, com inúmeros personagens e as suas histórias decorrem em várias épocas e países.”

A origem de Simpatia deve-se em muito a essa situação de abandono dos cães pelos donos que imigram. Não foi por acaso, como justifica: “O romance foi escrito no último verão que vivi em Paris, antes de me mudar para Málaga, durante um tempo em que para ganhar algum dinheiro extra tomava conta de cães em minha casa. Ao mesmo tempo, soube que na Venezuela estava a acontecer essa situação de um êxodo massivo dos habitantes e do abandono dos seus cães, e foi a partir dessa situação que nasceu a ideia deste livro.”

Ao contrário do seu primeiro romance, Simpatia foi escrito em apenas três meses. Quando se questiona a razão, diz: “Não sei bem explicar porque o meu hábito é demorar mais tempo. O primeiro romance levou-me três anos, no entanto este impôs outro ritmo, tanto que escrevia o dia inteiro.” Mesmo com esta velocidade, Simpatia acabou por demorar quase tanto tempo como o anterior para ser publicado: “Tinha a primeira versão pronta em 2020, só que aconteceu a pandemia e as editoras pararam durante um ano. Essa interrupção fez com que voltasse a reescrever o livro durante esses meses, mesmo que não fizesse alterações radicais.”

O empenho no romance deu frutos pois foi incluído na lista inicial da edição de 2024 do Prémio Booker Internacional. Calderón foi surpreendido, como recorda: “Foi uma grande emoção quando a editora britânica me informou. Era uma situação inimaginável e logo percebi o impacto que o prémio tem na comunidade de leitores e na crítica, ou seja, deu-se uma segunda vida para o Simpatia. Tinha sido publicado em 2021, houve interesse em ser traduzido, mas a nomeação fez crescer o interesse de outras editoras, como aconteceu em Portugal, que foi traduzido (por Helena Pitta) e lançado muito rapidamente, além de se dar o convite para apresentar o romance nas Correntes d’Escritas.”

Calderón não se espanta quando se lhe diz que é uma espécie de extraterrestre em Portugal por não existirem livros de autores venezuelanos. Não lhe é difícil encontrar uma explicação: “A literatura venezuelana permaneceu limitada ao país até aos anos 1990, pois bastava aos autores publicarem lá, no entanto com a chegada de Chávez ao poder a Venezuela tornou-se num assunto de interesse internacional e, mesmo que muitos escritores tenham emigrado, a realidade política do país fez com que se tornassem mais conhecidos fora do seu país.” Reforça a razão: “Também em Espanha era raro existir um escritor venezuelano publicado, contudo nos últimos anos tudo mudou. Portanto, posso considerar-me um extraterrestre aqui em Portugal, mas creio que vai ser cada vez mais comum encontrar outros como eu.”

Simpatia é um romance que liga em catadupa o êxodo dos habitantes da Venezuela, o abandono dos animais e as relações pessoais. Logo à página 7, a personagem a Paulina declara que se vai embora do país. Esse é um desejo que percorrerá toda a narrativa porque, refere, “são muitos os que pensaram igual a partir de 2012, quando Maduro ganhou a primeira eleição, por ser uma impossibilidade viver lá”. Dá exemplos da degradação: “É um país cada vez mais complexo, com apagões de eletricidade diários, sem liberdade de expressão, com um sistema de saúde muito precário e uma atividade cultural reduzida ao mínimo.” Mesmo assim, não deixa de existir uma presença recorrente dos telemóveis e das redes sociais no romance, pois, diz, “hoje é impossível não incluir esse elemento do quotidiano no tempo em que vivemos. Se não incluirmos essas novidades tecnológicas deste novo século, os personagens não serão credíveis. Tudo depende da intenção do autor, tanto que agora estou a escrever um romance distópico em que as redes sociais raramente aparecem”.

Será que o leitor exige a um autor venezuelano que o cenário seja o desse país é a questão que se lhe coloca e a que responde: “Sempre escrevi sobre o que está mais perto e que conheço. Fui professor e essa atividade reflete-se em muito na composição dos meus personagens e na escolha das suas opções de vida. Se tivesse sido engenheiro, então os meus personagens teriam essa profissão. Quanto ao cenário, não pude fugir de todas as tragédias que acontecem no meu país, até porque geram uma quantidade de histórias que me ajudam na escrita. Aliás, a quantidade de episódios que tenho sobre a Venezuela daria para escrever uma dezena de livros, como são os da minha experiência dramática enquanto professor, com uma universidade sem meios e os estudantes desmotivados devido à dificuldade em sobreviver no dia-a-dia. Não era por acaso que tinha esse emprego de professor e mais três”.

Quanto ao universo literário de Simpatia, Rodrigo Blanco Calderón faz questão de deixar claro que não é apenas um romance sobre cães abandonados mas também sobre pessoas abandonadas: “Os cães foram uma primeira preocupação, que logo exigiu um retrato da situação do país, das pessoas e famílias, também abandonados. Se de início não tinha essa clareza em relação às pessoas, rapidamente essa preocupação entrou pela narrativa.”

Faz-se uma última pergunta para entender melhor o tema, o da sua exata relação com os cães. Esclarece que “não é só um tema literário, porque sou louco por cães. Em Paris, era muito pobre e vivia num apartamento pequeno, e como não podia ter cães meus tomava conta dos de outros. E já é uma tradição familiar, porque a minha família criou uma fundação para resgatar cães abandonados na Venezuela, um dos motivos que me levaram a escrever assim este romance”.

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