Turistas deveriam percorrer a trilha inca?




O lendário caminho que leva a Machu Picchu, no Peru, é uma das mais deslumbrantes trilhas do mundo

Foto: Alamy / BBC News Brasil

A 2.840 metros acima do nível do mar, a trilha se afasta do apressado rio Urubamba, que corta o Vale Sagrado de Cusco, no Peru. Ela segue seu caminho para subir as montanhas.

A trilha corta as florestas tropicais andinas até chegar a Warmiwañusca, a famosa “Passagem da Mulher Morta”. Aquele é o ponto mais alto da trilha, a 4.215 metros. Dali, ela desce até a antiga fortaleza inca de Machu Picchu, uma das Sete Maravilhas do Mundo Moderno.

Estamos falando da lendária Trilha Inca, o caminho mais popular da América do Sul e um dos mais belos e surpreendentes do mundo.

Engenheiros incas projetaram e construíram a trilha há mais de 600 anos. E, para tentar protegê-la, o governo peruano limita a quantidade de passes disponíveis aos visitantes no período de abertura da trilha, entre março e janeiro de cada ano. Em 2025, a trilha abre no dia 31 de março.

Com isso, as licenças para percorrer os 43 km de caminhada são rapidamente vendidas todos os anos, com os turistas tentando garantir um dos 200 passes alocados diariamente para os visitantes.

Ironicamente, a popularidade da Trilha Inca ocasiona frequentes protestos. Muitas vezes, centenas de turistas ficam bloqueados devido a essas manifestações.

Entre outras exigências, os carregadores responsáveis pelo transporte da bagagem dos visitantes pelas montanhas reivindicam melhores condições de trabalho.

Estes protestos raramente chegam à imprensa internacional, mas o Coletivo da Voz dos Carregadores – uma organização dedicada a promover os direitos dos trabalhadores da Trilha Inca – lançou um documentário em 2024, detalhando suas reivindicações.



Os carregadores contratados pelos visitantes na Trilha Inca sobem as montanhas andinas transportando 30 kg de bagagem ou mais.

Os carregadores contratados pelos visitantes na Trilha Inca sobem as montanhas andinas transportando 30 kg de bagagem ou mais.

Foto: Alamy / BBC News Brasil

Mas como um local de caminhada tão idílico pode gerar tanto conflito?

Os guias indígenas da trilha afirmam que o problema é o descumprimento da legislação existente, que protege as condições de trabalho dos carregadores.

Caminhar sozinho na Trilha Inca é proibido. Os turistas precisam obter uma licença e contratar carregadores através de uma operadora de turismo autorizada, como a Evolution Treks Peru ou a Intrepid Travel.

As mulas são proibidas na Trilha Inca – seus cascos destruiriam a antiga pavimentação de pedras e as escadas. É por isso que os visitantes precisam contratar carregadores para transportar seus equipamentos de camping.

O dia dos carregadores costuma começar às 5 horas da manhã e termina após as 22 horas.

Uma lei de 2022 determina que os carregadores devem receber 650 novos sóis peruanos (US$ 176, cerca de R$ 998) pela trilha de quatro dias. Mas muito poucas agências de turismo respeitam a legislação. Elas chegam a pagar até 350 novos sóis (US$ 95, cerca de R$ 539) por trilha.

Os advogados das agências de turismo questionam a lei desde a sua aprovação. E, enquanto isso, elas se recusam a pagar o valor oficial.

Além das agências de turismo não pagarem o valor devido aos carregadores, muitas delas exigem que eles transportem pesos acima do máximo de 20 kg, também estipulado na legislação.

“A maior parte dos carregadores [homens] transporta cerca de 30 kg e já vi bagagens de 40 kg”, conta Natalia Amao Huillca, guia de turismo na Trilha Inca desde 2007.

“Cerca de 80% das lesões dos carregadores que observo são de joelho. As outras são principalmente lesões nas costas. Eles me pedem analgésicos à noite com frequência.”



A guia Shandira Arque Lucana conta que muitas empresas de turismo fazem acordos com os responsáveis pela fiscalização dos limites de peso para os carregadores

A guia Shandira Arque Lucana conta que muitas empresas de turismo fazem acordos com os responsáveis pela fiscalização dos limites de peso para os carregadores

Foto: Heather Jasper / BBC News Brasil

Cenovia Quispe Flores trabalha como carregadora para a Evolution Treks Peru desde 2018.

“A lei para as mulheres é de 15 kg”, afirma ela. Mas Quispe Flores já viu mulheres carregando 25 a 30 kg para outras companhias.

Para contornar os limites de peso, muitas empresas enviam o equipamento sem passar pelo primeiro posto de controle, onde as mochilas dos carregadores são pesadas. Ou simplesmente subornam os responsáveis pela fiscalização dos limites.

“Teoricamente, o ponto de controle é rigoroso, mas, na prática, não para todos”, afirma Shandira Arque Lucana. Ela trabalha como guia de turistas na Trilha Inca desde 2016.

Arque Lucana explica que as grandes empresas fazem acordos com os funcionários dos pontos de controle, mas as pequenas agências não têm influência suficiente para evitar a fiscalização.

Mesmo as companhias que desejam respeitar as regras podem enfrentar entraves com o rigoroso limite de 500 pessoas permitidas diariamente na trilha (incluindo 300 carregadores e guias, além dos 200 turistas). Às vezes, o peso é maior, mas não há como acrescentar um carregador a mais.

“Já vi muitos carregadores trabalhando com hérnias e problemas nos joelhos e nos tornozelos”, conta o guia Pedro (ele pediu para não ser identificado pelo seu nome verdadeiro).

“Conheço um carregador que começou a sofrer de alcoolismo porque não conseguia tratamento para o seu joelho lesionado. Ele ainda trabalha na Trilha Inca e alivia suas dores com cañazo [aguardente de cana].”



A guia Liz Montesinos Pumayalle relembra que existem outros caminhos além da Trilha Inca, que permitem que os visitantes cheguem a Machu Picchu sem carregadores humanos.

A guia Liz Montesinos Pumayalle relembra que existem outros caminhos além da Trilha Inca, que permitem que os visitantes cheguem a Machu Picchu sem carregadores humanos.

Foto: Heather Jasper / BBC News Brasil

Os carregadores também sofrem com a desidratação. Eles bebem água não potável das fontes e torneiras para lavar as mãos perto dos banheiros, enquanto os clientes pagantes recebem água filtrada e fervida.

Com tudo isso em mente, o que os turistas podem fazer para caminhar até as ruínas mais famosas da América do Sul de forma ética e responsável?

Bem, segundo os guias locais, é preciso lembrar, em primeiro lugar, que existem outras trilhas que levam a Machu Picchu.

“A Trilha Inca não é a única opção”, afirma Liz Montesinos Pumayalle. Ela trabalha como guia na Trilha Inca há oito anos e destaca que, em todas as outras trilhas, são usadas mulas no lugar dos carregadores humanos.

“As pessoas que quiserem fazer conexão com as comunidades indígenas devem usar a Trilha Lares”, orienta ela. “E a Trilha Salkantay é melhor para pessoas que quiserem dormir em redomas ecológicas ou pousadas, em vez de tendas.”

A Trilha Salkantay tem duas opções que levam diretamente a Machu Picchu e outros caminhos indiretos.

Amao Huillca salienta que as empresas que contratam diversas mulheres carregadoras, muitas vezes, tratam seus funcionários melhor do que aquelas que têm apenas uma ou duas.

“Gosto de trabalhar com equipes de carregadores em que a metade são mulheres e que têm uma carregadora-chefe mulher”, explica ela. “A maioria das empresas envia uma ou duas mulheres carregadoras simbólicas.”

Ela conta que, como as mulheres carregadoras são mais dispostas a consultar um médico quando sofrem lesões do que seus colegas homens, os turistas que solicitarem mulheres, provavelmente, irão caminhar com profissionais mais saudáveis.



Turistas disputam os 200 passes alocados diariamente aos visitantes para caminhar pela Trilha Inca

Turistas disputam os 200 passes alocados diariamente aos visitantes para caminhar pela Trilha Inca

Foto: Heather Jasper / BBC News Brasil

“Uma forma de garantir que os carregadores sejam bem pagos e bem tratados é que haja mulheres carregadoras”, concorda o guia Edson Lucana Mejía, que também trabalha na Trilha Inca.

Ele explica que, historicamente, é comum que os carregadores homens durmam na tenda de jantar, que não têm piso e, muitas vezes, fica enlameada.

Mas as mulheres insistem em ter tendas individuais. Por isso, em uma equipe com mais mulheres, você pode ter a certeza de que mais carregadores têm um lugar decente para dormir.

Marco Antonio Carrión trabalha como guia de turismo na Trilha Inca há 20 anos. Ele oferece outras recomendações.

“Procure fotos de carregadores com mochilas ergonômicas e análises que mencionem algo sobre como os carregadores são tratados”, orienta ele. “Se uma empresa for sustentável e tratar bem os carregadores, isso irá aparecer nas críticas online.”

Carrión também destaca que os turistas devem perguntar se os carregadores são obrigados a usar os uniformes fornecidos pelo seu empregador. Este pode ser um pequeno detalhe em algumas culturas, mas, para muitos indígenas peruanos, as roupas quíchuas tradicionais são uma parte importante da sua identidade.

Muitas operadoras ainda exigem que os carregadores transportem pesadas tendas de lona, mesas e cadeiras. Na hora de escolher uma empresa, pergunte o peso do seu equipamento de camping e se eles têm opções mais leves.

Apesar de todas as críticas sobre o mau tratamento dedicado por algumas operadoras da Trilha Inca, muitos guias e carregadores se sentem satisfeitos. Eles ficam felizes trabalhando neste ambiente natural exuberante.

“Adoro este trabalho”, conta Quispe Flores. “Gosto das montanhas e de trabalhar com minhas amigas, as outras mulheres carregadoras. Trabalhar na agricultura é mais difícil e não paga bem.”



'Sem carregadores, não existe Trilha Inca'

‘Sem carregadores, não existe Trilha Inca’

Foto: Alamy / BBC News Brasil

Nem sempre é fácil determinar quais empresas respeitam a lei e quais não. Mas Lucana Mejía tem uma mensagem para os milhares de turistas que esperam poder caminhar pela trilha lendária – e ela quer que ninguém esqueça suas palavras:

“Sem carregadores, não existe Trilha Inca.”

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Travel.

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