Huawei, Baidu, Alibaba e Tencent se movem para reduzir a dependência externa e fortalecer o ecossistema nacional de IA
Um novo capítulo na guerra tecnológica se desenrola enquanto as principais empresas de tecnologia da China, como Alibaba, Tencent e Baidu, intensificam seus esforços para desvencilhar o desenvolvimento de inteligência artificial da dependência dos processadores da Nvidia. A urgência é palpável, impulsionada por um estoque cada vez menor dos cobiçados chips norte-americanos e por um aperto regulatório de Washington que redefine as regras do jogo no mercado global de semicondutores.
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Em um movimento estratégico que pode redesenhar o futuro da IA no país asiático, as maiores potências tecnológicas da China deram início a uma transição complexa e potencialmente custosa: adaptar seus ambiciosos projetos de inteligência artificial para operar com chips de fabricação doméstica.
Esta iniciativa, que já vinha sendo considerada, ganhou tração e urgência diante da escassez crescente dos processadores da gigante americana Nvidia e do recrudescimento das sanções comerciais impostas pelos Estados Unidos, que visam frear o avanço tecnológico chinês.
Fontes internas do setor, familiarizadas com as operações das gigantes, confirmam que nomes de peso como Alibaba Group Holding, Tencent Holdings e Baidu já estão em fase avançada de testes com semicondutores alternativos. O objetivo é claro: garantir a continuidade e a expansão de suas soluções de IA, tanto para atender à robusta demanda interna quanto para suprir as necessidades de seus vastos portfólios de clientes.
A pressão aumentou consideravelmente após a administração do ex-presidente Donald Trump, em uma de suas últimas ofensivas comerciais no mês passado, ter intensificado as restrições à venda do chip H20 da Nvidia. Este componente, uma versão com capacidade reduzida, havia sido especificamente desenvolvido pela Nvidia para contornar as regras de exportação previamente estabelecidas durante o governo de Joe Biden, mas acabou também entrando na mira dos reguladores.
A situação dos estoques é crítica. Informações de bastidores, obtidas junto a fontes com conhecimento direto do assunto, indicam que as reservas atuais de chips da Nvidia são suficientes para sustentar o ritmo de desenvolvimento de IA das empresas chinesas apenas até o início do próximo ano.
Considerando que novos pedidos de semicondutores de ponta podem levar de três a seis meses para serem processados e entregues – um prazo já apertado –, a incerteza sobre a capacidade da Nvidia de lançar um processador que seja ao mesmo tempo competitivo e compatível com as novas e mais rigorosas regras de exportação dos EUA coloca as companhias chinesas em uma verdadeira corrida contra o relógio.
Nesse cenário de urgência, Shen Dou, que comanda o grupo de negócios de IA em nuvem da Baidu, uma das pioneiras em inteligência artificial na China, expressou um otimismo cauteloso. Ele afirmou recentemente que a empresa dispõe de um leque variado de opções de chips, especialmente para o processamento de inferência – uma etapa fundamental na aplicação prática da IA para resolver problemas específicos – que podem, em tese, substituir os componentes da Nvidia.
“Acreditamos que, com o tempo, os chips desenvolvidos localmente, aliados a softwares cada vez mais eficientes, formarão uma base sólida para a inovação no ecossistema de IA da China”, declarou Shen, sinalizando uma aposta de longo prazo na capacidade de inovação doméstica.
A resposta das gigantes não se fez esperar. Em comunicados e aparições públicas recentes, os principais executivos das empresas chinesas têm sinalizado ajustes em suas estratégias de aquisição e desenvolvimento de hardware.
Eddie Wu, o CEO do Alibaba, conglomerado que abrange desde o comércio eletrônico até serviços de nuvem com uso intensivo de IA, destacou que a companhia está “explorando ativamente soluções diversificadas para atender à crescente demanda dos clientes”. Essa declaração sugere uma abertura para múltiplos fornecedores e tecnologias, incluindo as desenvolvidas internamente.
De forma similar, Martin Lau, presidente da Tencent, outra potência com vastos interesses em games, redes sociais e computação em nuvem, afirmou que a empresa está em um processo contínuo de otimização do uso de seus chips existentes, ao mesmo tempo em que avalia alternativas viáveis no mercado.
“Temos estoque suficiente de chips de alta performance para treinar nossos modelos por algumas gerações”, disse Lau, buscando tranquilizar o mercado quanto à capacidade de treinamento de modelos de IA, que exigem grande poder computacional. Ele acrescentou, no entanto, que a Tencent pode “utilizar outros processadores” para suprir a crescente demanda por inferência, um segmento que tem se expandido rapidamente com a popularização de aplicações de IA em diversos setores da economia chinesa.
Um relatório recente de um influente think-tank com ligações com o Ministério da Segurança do Estado da China trouxe uma perspectiva interessante sobre o impacto das sanções. O documento destaca que, embora as restrições impostas pelos EUA sejam, sem dúvida, prejudiciais no curto prazo, elas paradoxalmente “estimularam uma onda de inovação independente em chips de IA de alto desempenho, com a série Ascend da Huawei como principal exemplo”. De fato, segundo o China Institutes of Contemporary International Relations, diversas entidades chinesas já iniciaram um movimento de adoção em larga escala dos chips Ascend, desenvolvidos pela Huawei.
Inicialmente, os principais compradores desses processadores eram empresas estatais, como a gigante de telecomunicações China Mobile, e setores considerados estratégicos ou sensíveis, como defesa, saúde e o sistema financeiro. Contudo, a expectativa agora é que um espectro mais amplo de companhias de tecnologia, incluindo as grandes do setor privado, passe a disputar os chips da Huawei.
Apesar disso, um véu de cautela paira sobre essa transição. Muitas empresas evitam comentar publicamente sobre seus testes e planos de adoção dos processadores Ascend, especialmente após os Estados Unidos terem emitido alertas de que o uso desses componentes “em qualquer lugar do mundo” poderia resultar em penalidades criminais, elevando o risco associado à aposta na solução da Huawei.
Do lado da Nvidia, a situação também é delicada. A empresa americana, líder inconteste no mercado de chips para IA, vê um de seus maiores mercados sob severa restrição. Analistas da GF Securities projetam que a Nvidia possa iniciar a produção de um novo chip, compatível com as atuais regras de exportação dos EUA, por volta de julho.
No entanto, este novo processador, que seria baseado na mais recente arquitetura Blackwell da empresa, provavelmente não contará com memória de alta largura de banda (HBM), um componente crucial para o processamento ágil de grandes volumes de dados, essencial para tarefas complexas de IA.
Além disso, detalhes fundamentais, como a inclusão da tecnologia NVLink – utilizada para estabelecer conexões de altíssima velocidade entre múltiplos chips, otimizando o desempenho em cargas de trabalho paralelas –, ainda permanecem incertos.
Em uma conferência recente, Jensen Huang, o carismático CEO da Nvidia, admitiu abertamente as dificuldades enfrentadas pela empresa para atender ao mercado chinês sob as novas diretrizes. Sua declaração foi direta e um tanto desanimadora para os clientes locais: “No momento, não temos nada”, afirmou, sublinhando a ausência de uma solução definitiva e imediata.
A transição para chips de fabricação local está longe de ser uma tarefa simples ou indolor. Adaptar os complexos códigos de treinamento de modelos de IA, majoritariamente desenvolvidos para a plataforma CUDA da Nvidia – um ecossistema de software e hardware amplamente dominante na indústria –, para o framework CANN da Huawei, por exemplo, é um processo intrinsecamente demorado e que exige um suporte intensivo de equipes de engenharia.
Estes profissionais precisam realizar ajustes finos e otimizações profundas para garantir que os modelos de IA funcionem com eficiência e precisão nas novas arquiteturas de hardware. Um executivo de uma das grandes empresas de tecnologia, que preferiu não se identificar, estimou que essa migração poderia acarretar um atraso de aproximadamente três meses no desenvolvimento de projetos de IA.
Diante desses desafios, a maioria das empresas chinesas parece estar considerando uma abordagem híbrida como estratégia de transição. Isso implicaria continuar utilizando os chips da Nvidia, enquanto os estoques permitirem e para tarefas específicas como o treinamento de modelos de IA mais complexos, e, simultaneamente, adotar processadores locais para as tarefas de inferência. A demanda por inferência, vale ressaltar, disparou nos últimos tempos com a rápida expansão e adoção de aplicações de IA em toda a China.
A Huawei, por sua vez, está se esforçando para aumentar sua capacidade de produção, recorrendo a parceiros de fabricação e, segundo relatos, investindo na construção de uma nova fábrica. No entanto, a oferta de seus chips Ascend ainda não consegue acompanhar a crescente procura. Enquanto isso, outras fabricantes chinesas de semicondutores, como a Cambricon Technologies e a Hygon Information Technology, também estão sendo rigorosamente testadas pelas gigantes de tecnologia como potenciais alternativas.
Em paralelo, empresas como Baidu e Alibaba também investem no desenvolvimento de seus próprios processadores, em uma tentativa de reduzir a dependência de fornecedores externos e garantir maior controle sobre sua cadeia de suprimentos de componentes críticos.
A acirrada disputa pela soberania tecnológica está, inegavelmente, redefinindo as dinâmicas do mercado global de semicondutores. Enquanto a China acelera sua busca por autossuficiência e alternativas domésticas para alimentar suas ambições em inteligência artificial, as empresas ocidentais e seus governos monitoram atentamente os desdobramentos dessa complexa guerra comercial.
As decisões tomadas hoje, tanto em Pequim quanto em Washington, têm o potencial de moldar não apenas o futuro da inteligência artificial, mas também o equilíbrio de poder tecnológico nas próximas décadas. A corrida está lançada, e seus impactos serão sentidos em escala global.
Com informações de Financial Times*
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