Como doutoranda PcD e uma eterna aprendiz na beirada do abismo, tenho acompanhado de perto as nuances da inclusão de pessoas com deficiência no ensino superior brasileiro. Sou da geração que aprendeu a fazer festa no caos, e o doutorado me deu as lentes para enxergá-lo criticamente. Minha jornada na academia me permitiu conquistar um espaço que o salão de beleza apenas abriu, e acredito que esse é um caminho possível para muitos: encontrar na Academia o seu espaço.
Minha experiência e pesquisas têm me levado a questionar onde estão, de fato, os 5% de vagas obrigatórias para pessoas com deficiência nos concursos públicos brasileiros. Essa importante medida de inclusão, estabelecida pelo artigo 37, inciso VIII da Constituição Federal de 1988 e regulamentada pelo Decreto Federal nº 9.508/2018, determina que no mínimo 5% das vagas oferecidas sejam reservadas a candidatos com deficiência, podendo chegar a 20% dependendo do total de vagas. Embora a lei preveja essa cota, a realidade nas instituições ainda é um desafio. O Inep nos mostra um dado animador: mais de 1 milhão de pessoas com deficiência estão com matrículas ativas em universidades pelo Brasil. Isso é uma vitória dos movimentos, um testemunho de que a luta por acesso tem surtido efeito. Mas, por trás desses números, reside um problema fundamental: a falta de integração sistêmica e de formação crítica em nossas instituições.
Lutamos Por Acessibilidade Como Atribuição Transversal, Não Setorial
O que ainda vemos em nossas políticas institucionais é a acessibilidade sendo tratada como uma atribuição técnica e setorializada, centrada exclusivamente nos núcleos de acessibilidade das universidades. Como bem pontuou o Professor Teófilo Galvão Filho (durante o 4º Seminário em Rede da UFSB realizado on-line e com link no final da matéria), a acessibilidade deve ser uma dimensão transversal da universidade, e não responsabilidade apenas da área de inclusão. Ela precisa perpassar toda a estrutura acadêmica.
Para mudarmos esse cenário, precisamos de políticas institucionais que inscrevam a acessibilidade nos Projetos Pedagógicos de Curso (PPCs). Não basta ter um núcleo de apoio; é fundamental que a acessibilidade e a tecnologia assistiva estejam contidas nos currículos, nos planos de ensino, nas avaliações e nas estratégias pedagógicas de cada curso.
Formação Docente e Corresponsabilidade
A formação continuada para docentes, com abordagem técnica e pedagógica, é crucial. Embora já exista em muitas universidades, a maioria dos professores não recebeu essa base sobre inclusão e acessibilidade. Sem ela, a acessibilidade será sempre percebida como algo extra, um “favor”, ou uma especialidade técnica, e não como um direito. É aqui que iniciativas como os cursos específicos se tornam valiosas, e precisamos ativamente divulgá-las e ativá-las.
Precisamos promover a corresponsabilidade entre os setores. Isso se constrói criando espaços de escuta e coautoria, incluindo docentes e estudantes com deficiência. É desse diálogo democrático e coletivo que nascerá a mudança de paradigma.
Do Desenho Universal para Aprendizagem à Lei Brasileira de Inclusão
É urgente substituir a lógica da adaptação pontual por um planejamento universal. Retomo aqui o Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), que precisa ser implementado nos PPCs. O DUA transforma a acessibilidade de exceção em um pressuposto pedagógico da prática docente, perpassando todo o perfil de estudante. Essa mudança de postura não virá apenas por norma, mas por um senso de pertencimento e uma convicção que realmente transforme nossa cultura institucional e acadêmica.
Segundo a educadora Liliane Garcez, a acessibilidade é um conceito-ação central na luta das pessoas com deficiência pela equiparação de oportunidades em todas as esferas da vida, pois aproxima o pleito dessa parcela da população aos da sociedade como um todo. Ou seja, como todas as pessoas têm direito de acesso a bens e serviços, investe-se na melhoria das condições de ambientes e contextos, ainda que esses fatores, por vezes, não constituam barreiras para as pessoas sem deficiência. Na perspectiva social da deficiência, disposta na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada com status de emenda constitucional em nosso país, torna-se um equívoco avaliar as possibilidades de desenvolvimento e aprendizagem de uma pessoa com deficiência a um tipo de apoio ou ajuda técnica específicos e pré-determinados, pois são justamente as experiências entre diversas pessoas nos diferentes contextos que definem e redefinem a acessibilidade, compreendida como a gama de intervenções nos atributos dos ambientes. O foco é a participação plena com autonomia no acesso à informação, à mobilidade, à realização de procedimentos e à participação de atividades desenvolvidas por diversas áreas e nos diferentes espaços.
A Lei Brasileira de Inclusão (LBI), aprovada em 2015 (e não 2024, como mencionei anteriormente) e que tem como base a CDPD, é um marco legal importante. Ela reconhece a acessibilidade como condição estruturante de permanência estudantil com equidade e reposiciona a tecnologia assistiva como parte integrante dessa política. Contudo, percebemos que a LBI concentrou grande parte da responsabilidade nos núcleos de acessibilidade, sobrecarregando-os e desviando do foco de uma política transversal.
O Programa Incluir (2005–2011), vital no acompanhamento estudantil, precisa ser fortalecido, não com um olhar assistencialista, mas de forma estratégica para garantir o direito à educação desses estudantes com deficiência no ensino superior. A assistência estudantil, muitas vezes ligada à renda, ganha um novo contorno com a LBI, que reconhece a acessibilidade como elemento fundamental da permanência. Programa Incluir representou um marco na política de educação inclusiva do Brasil, buscando eliminar barreiras pedagógicas, arquitetônicas e de comunicação para que pessoas com deficiência tivessem o direito de acessar e usufruir plenamente do ensino superior. Ele ajudou a institucionalizar a pauta da acessibilidade nas universidades federais, mas, como discutido na matéria, ainda há desafios para que essa responsabilidade se torne verdadeiramente transversal e não apenas centralizada em núcleos específicos. Pode parecer pouco hoje, mas o investimento à epoca foi de R$ 11 milhões.
Financiamento e Formação: Gargalos Atuais
Os artigos 27 a 32 da LBI são claros sobre o direito à educação da pessoa com deficiência. E, como bem saliento, se discriminamos ou excluímos, estamos cometendo crimes, com penas previstas nos artigos 88 a 92 da própria LBI.
É fundamental fortalecer estruturas como o CONAES (Comissão Nacional de Avaliação da Educação Superior), que discute as condições para o fortalecimento setorial. Precisamos integrar os núcleos de acessibilidade com as pró-reitorias de assistência e assuntos estudantis, de graduação, com as coordenações de curso e, crucialmente, com os próprios docentes e os estudantes com deficiência, que devem ser protagonistas desse processo. Se não agirmos proativamente, a mudança não acontecerá.
Finalmente, é imperativo abordar a questão dos recursos orçamentários para tecnologia assistiva. Existem políticas públicas de concessão de produtos (cadeiras de rodas, próteses), ampliadas pelo programa “Viver Sem Limite” (2011, e segue em 2023), que investiu bilhões em direitos da pessoa com deficiência. Há também políticas de acesso a crédito subsidiado e isenção fiscal para importação.
Na educação básica, a política das salas de recursos multifuncionais implantou 40 mil salas, que inicialmente recebiam kits. Contudo, percebeu-se que kits fechados não atendiam à vasta gama de necessidades. A política atual permite que as escolas reivindiquem recursos específicos para cada aluno, diretamente.
Ainda assim, a formação é o grande gargalo. Quantos sujeito elencados pelas marcas sociais da diferença compõe seu panteão in-formativo? Esse é o reflexo da sua forma(ta)ção e o quanto as políticas de diferença e equidade são de fato constituidoras daquilo que chamamos de sua/nossa produção acadêmica. Não adianta ser expert em Freud e ignorar a aluna trans, essa é a questão desse século e talvez, alguns de nós de fato, vivemos no século passado (com as empregas nas cozinhas, os LGBTI no exterior ou expulsos de casa e com PcDs trancados nos quartos).
Muitos professores, mesmo com salas de recursos e AEE, recebem formação superficial e não têm retaguarda de suporte (como profissionais de tecnologia assistiva) para avaliar e reivindicar as soluções mais adequadas. O Brasil, apesar de ter uma legislação de referência internacional sobre os direitos da pessoa com deficiência, está muito atrasado na formação superior nessa área.
A mudança de paradigma só virá pelo pertencimento, por uma convicção profunda, e por uma política que realmente transforme a cultura institucional e acadêmica, indo além dos procedimentos administrativos. É tempo de agir e garantir que o direito à educação seja uma realidade plena para todos.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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