Suspensão do financiamento dos EUA no Haiti pode levar ao aumento alarmante da mortalidade materna

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A suspensão de financiamento pelos Estados Unidos – que cobria 59% do plano humanitário no Haiti em 2024 – está a exacerbar a escassez de entidades humanitárias a trabalhar no país. Esta suspensão no financiamento enfraquece o acesso das pessoas a cuidados de saúde e pode levar ao aumento alarmante da mortalidade materna. A Médicos Sem Fronteiras tenta contrariar essa tendência.

Marx Stanley Léveillé

À primeira luz do amanhecer, a aldeia de Douillette começa a acordar. É mais um dia como todos os outros nesta pequena localidade aninhada na comuna de Chardonnières, no Sudoeste do Haiti, que faz parte da zona administrativa Sul do país: as bancas no mercado são montadas lentamente e as crianças apressam-se rumo à escola. Para Manita, de 39 anos e grávida de sete meses, o que está pela frente neste dia é uma grande caminhada – há que andar durante duas horas para chegar ao centro de saúde de Rendel, onde tem uma consulta marcada às 9h.

É naquele centro de saúde, onde equipas da Médicos Sem Fronteiras (MSF) prestam apoio, que Manita tem recebido acompanhamento pré-natal. E após cada consulta, há que fazer o caminho de volta à aldeia, mais cansativo, com a subida das montanhas e as dificuldades da gravidez.

“Demoro muito mais tempo no regresso a casa porque não consigo andar depressa”, conta ela.

O terramoto em 2021 afetou especialmente o Sul do Haiti, danificando muitas instalações de saúde na região.

“Não há centro de saúde em Douillette. O mais próximo de nós é em Rendel, e depois em Port à Piment, a muitas horas de caminhada de distância ou meia hora de moto. Chardonnières ainda fica mais longe. Tirando isso, não há mais nenhuma instalação de saúde nas proximidades”, descreve Manita.

A situação da saúde materna no Haiti continua a gerar muitas preocupações, como consta nos dados do relatório emitido em 2023 pelo Ministério de Saúde Pública e População. Nesse ano, a taxa de mortalidade materna chegou a 201 mortes por 100.000 nados-vivos – um aumento em relação às 155 mortes por 100.000 nados-vivos em 2022. A zona administrativa Sul do país é particularmente afetada, com uma taxa alarmante de 344 mortes por 100.000 nados-vivos, uma das mais elevadas em todo o país.

O cada vez maior domínio que grupos armados têm sobre as principais estradas de acesso isola a região Sul da capital haitiana e, com isso, perturba gravemente o abastecimento de medicamentos, de sangue e de outros recursos que são essenciais para as instalações de saúde.

Simultaneamente, o êxodo de profissionais de saúde haitianos para fora do país agravou ainda mais a falta de pessoal médico nas áreas remotas. E a suspensão de financiamento pelos Estados Unidos – que cobria 59% do plano humanitário no Haiti em 2024 – está a exacerbar a escassez de entidades humanitárias a trabalhar no país. Esta suspensão no financiamento enfraquece o acesso das pessoas a cuidados de saúde e pode levar a um aumento alarmante da mortalidade materna.

Sensibilizar para a importância das consultas pré-natais

A ala de maternidade em Port à Piment, que foi reconstruída e ampliada pela MSF após o terramoto de 2021, em colaboração com o Ministério de Saúde Pública e População, é uma das poucas instalações médicas na região que disponibiliza cuidados abrangentes em saúde materna: partos seguros, intervenções obstétricas de emergência, cuidados neonatais e ainda uma unidade de cuidados intensivos que é a única existente em toda a zona administrativa Sul.

Ali, as equipas da MSF fazem uma média de 120 partos por mês, incluindo 20 com complicações. Em 2024, foram prestados cuidados a quase 450 bebés nesta maternidade.

“A escassez de instalações de saúde a funcionar faz com que algumas grávidas tenham de percorrer longas distâncias para terem o parto em Port à Piment; às vezes vêm até desde Les Cayes apesar de aí haver um hospital. No Haiti, especialmente nas áreas rurais, os partos em casa continuam a ser muito comuns”, explica a supervisora da equipa de parteiras da MSF Mackencia Beaubrun.

Para mitigar os riscos relacionados com a gravidez, equipas de promoção de saúde da organização médica-humanitária organizam sessões diárias de sensibilização e consciencialização a nível comunitário nas aldeias dos arredores – o enfoque é a importância das consultas pré-natais. É também explicado que ter o parto num centro de saúde permite receber o apoio de profissionais médicos em prol do bem-estar das gestantes e dos bebés caso surjam complicações.

Oriunda de Grand Chemin, Yvane teve sozinha o parto dos primeiros seis filhos. Após participar nas sessões de sensibilização levadas a cabo pela MSF, decidiu que o sétimo filho nasceria no hospital.

“As conversas com a MSF persuadiram-me a evitar os riscos, porque foi por acaso que os meus partos anteriores decorreram sem complicações”, recorda. Sem meios de transporte, foram os vizinhos e um dos filhos de Yvane que a ajudaram a fazer a caminhada de uma hora até à maternidade.

“Apesar de ter muitas dores, não quis ficar em casa para ter o parto”, assevera. Agora, sente-se aliviada: “Recebi muitos cuidados e estou muito mais tranquilizada.”

Além da ala de maternidade em Port à Piment, a MSF presta apoio em três centros de saúde na zona administrativa Sul do Haiti para reforçar o acesso das pessoas a cuidados nas áreas mais isoladas: em Rendel, Tiburon e Chardonnières. Existem ainda duas ambulâncias da organização médica-humanitária para garantir o encaminhamento de partos com complicações desde os centros de saúde ou das comunidades até à maternidade em Port à Piment.

Muitos obstáculos no acesso a cuidados de saúde

Com a aproximação da época das chuvas, o acesso a cuidados de saúde irá deteriorar-se ainda mais. Para as mulheres como Manita e Yvane, os obstáculos são assustadores: os rios transbordam e isolam aldeias inteiras, e chegar a uma instalação de saúde é simplesmente impossível.

“Quando chove muito, mesmo que tenha um filho doente não o posso levar ao hospital porque não se consegue atravessar os rios”, frisa Manita.

Yvane e Manita não têm outra escolha que não seja a de arriscar a vida e a dos filhos a percorrer caminhos repletos de desafios para aceder a consultas pré-natais e pós-natais, e até mesmo para ter o parto.

“Se tivéssemos mais centros de saúde a funcionar, as grávidas podiam ter os partos em segurança, e tanto as crianças como os adultos que ficam doentes podiam receber tratamento a tempo”, sustenta Manita.

A zona administrativa do Sul vive uma situação de relativa segurança, sem os impactos da insegurança que afeta Port au Prince, mas sofre profundamente as consequências da crise que está a acontecer no Haiti.

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