Rui Mota, cidadão do mundo com um objetivo: «Quero treinar em Portugal»

Já passou por dez países diferentes, para lá de Portugal, um espírito aventureiro que desenvolveu ainda em criança, à “boleia” da mãe, que era comissária de bordo. Rui Mota não enjeita uma boa aventura, mesmo que as saudades do país onde nasceu cresçam a cada dia.

Das experiências que viveu, é do Irão que diz sentir mais saudades. Os anos que passou ao lado de Ricardo Sá Pinto fazem dele uma das suas principais referências enquanto treinador, mas não a única, sendo que por si passaram vários jogadores que hoje são referências nacionais, como João Palhinha ou Francisco Trincão.

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PARTE I: «O nome Rui Mota já diz alguma coisa ao futebol português»

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PARTE III: Os portugueses do Noah: «Teve de ser muito à base da confiança deles em mim»

PARTE IV: «Vejo todos os dias o monte Ararat, é algo de inspirador»

A estadia na Arménia resultou em mais um carimbo num passaporte recheado de destinos distantes, alguns deles exóticos. Sempre foi uma pessoa aventureira?

Sim. Saí cedo de Portugal, para Inglaterra, e acompanhava muito a minha mãe na profissão dela, que era comissária de bordo na British Airways. Andávamos sempre pelo mundo todo. Talvez por isso, ganhei esse “bichinho” desde cedo. Sempre me adaptei muito bem, nunca tive receio de ir para lado nenhum. Tenho esse dote aventureiro.

Vai no décimo país diferente na carreira, para lá de Portugal. Qual deles o surpreendeu mais?

O Irão foi um país que claramente me surpreendeu, por dois aspetos. Primeiro, enquanto país, que não conhecia a não ser do que vemos na comunicação social, que às vezes não reporta bem aquilo que é o país verdadeiramente. As pessoas são bastante modernas, têm uma forma de estar muito parecida com a dos europeus naquilo que é o dia a dia, claro que com questões religiosas completamente diferentes. Depois, o futebol no Irão é apaixonante, muito carismático. Tivemos jogos com o Persepolis ou com o Tractor em que o ambiente era carregado de vibração, de adeptos a cantarem e a festejarem do primeiro ao último minuto. Comparo-o um bocadinho ao ambiente nos jogos na Turquia, fervorosos, dentro e fora dos estádios. Nas ruas, éramos constantemente solicitados para fotografias e autógrafos. Eles respiram futebol por tudo o que é lado. É verdade que estávamos num clube grande (Esteghlal), mas surpreendeu-me bastante a qualidade do campeonato, como também o país em si, de que gostei muito. Fiquei com saudades.

Acompanhou durante muitos anos Ricardo Sá Pinto. Ele é mesmo aquele “furacão” que transparece para o resto do mundo?

O Ricardo é uma pessoa com uma força e uma alma muito grandes. Por vezes, parece que ele se resume a isso, mas não. Enquanto ser humano, o Ricardo é fantástico, com princípios que pouco vemos nos dias de hoje. É uma pessoa muito séria, direta, o que às vezes acaba por confundir-se com outro tipo de coisas. Enquanto treinador, é muito meticuloso, apaixonado pelo futebol e muito dedicado. Tive o prazer de beber dele a liderança quanto ao grupo de trabalho. O Ricardo é um treinador que trata os seus jogadores da mesma forma, seja o melhor ou aquele que é menos utilizado. É honesto, frontal, uma pessoa que só tem uma palavra e não anda com rodeios para tomar decisões. Isso é algo de que os jogadores gostam, porque não há nada como ter alguém com transparência e que os respeita. O Ricardo é também um treinador muito pragmático naquilo que elabora nos seus treinos. Ajudou-me muito nisso, a passar da teoria para a prática de uma forma eficiente. Hoje, temos pouco tempo para treinar. Temos de ser muito diretos naquilo que é o trabalho, e com ele aprendi a simplificar muito os exercícios e a torná-los práticos para aquilo que é a aprendizagem do jogador.

Continuam a ser próximos?

Sim, sim. Temos uma relação fantástica. Falamos frequentemente, não só sobre futebol. Somos muito amigos. Foram muitos anos juntos, de muita confidência, solidariedade e companheirismo.

Como se deu o clique para iniciar a carreira como treinador principal?

Já tinha tido a experiência, durante vários anos, enquanto treinador principal, mas num nível abaixo do futebol profissional. Quando fui trabalhar com o Ricardo (Sá Pinto), já tinha em mente onde queria chegar. Percebi que tinha de tomar os meus passos, até porque há uma diferença entre ser alguém que vem do meio académico ou ser um antigo jogador profissional (de futebol). Senti que precisava de aperfeiçoar as minhas ideias, ver coisas novas, melhorar e aprender para poder perceber o futebol como um todo. Na minha formação, académica e pessoal, passei por várias funções no futebol, e todas elas foram muitíssimo ricas, até para o projeto em que estou atualmente. No meu primeiro projeto com o Ricardo (Sá Pinto), no Sporting, estava no gabinete de observação e análise, porque achava que era importante ter um domínio nessa área. Para tomar decisões, o treinador tem de perceber os conceitos do jogo. Depois, voltei a trabalhar com o Ricardo como treinador adjunto, mas desde o primeiro dia que lhe disse que queria acompanhá-lo, ajudar ao sucesso dele, mas que haveria uma altura em que eu iria querer assumir as rédeas como treinador principal. Foi uma situação normal. Depois do projeto no Irão, senti que era a altura certa para dar esse passo. Nunca é fácil, por variadíssimas razões, mas senti que o tinha de fazer, nem que fosse para provar a mim próprio que tinha as condições, que achava que tinha, para ser treinador principal.

E quem eram as suas referências enquanto treinador?

Claramente, muito daquilo que era a ideia de jogo, os exercícios e toda essa filosofia vinha do Ricardo (Sá Pinto). Depois, tenho as minhas referências, como o José Mourinho, o Jurgen Klopp e treinadores com quem trabalhei, como o mister Jorge Jesus, o Marco Silva, o Leonardo Jardim ou o Jesualdo Ferreira. Também o José Peseiro, que foi meu professor na Faculdade. Foi ele, do ponto de vista teórico, que me ensinou o futebol. Isso foi muito importante, até pela questão da forma como temos tudo sistematizado. Acabo por ser um produto de várias experiências, com variadíssimos treinadores, dos quais fui recolhendo o que fazia sentido tendo em conta a minha ideia de jogo, de treino e de liderança.

Concluído o trajeto enquanto treinador adjunto, decidiu aceitar o convite para orientar o Dila, da Geórgia. O que encontrou lá?

É um campeonato muito competitivo. Na Geórgia, o último classificado pode ganhar ao primeiro. Encontrei muito boas condições de trabalho, bons estádios, com bons relvados para se jogar. O jogador georgiano é muito interessante, do ponto de vista técnico.

Quem o sucedeu no Dila foi Ricardo Costa. Sente que ajudou a abrir as portas de um mercado até então estranho aos treinadores portugueses?

Penso que sim. Não tenho a certeza se fui o primeiro treinador português na Geórgia, mas tenho a noção de que o trabalho feito foi muito apreciado pelos donos do Dila. Aliás, hoje continuamos a ter uma relação muito boa. Na altura (da saída), eles pediram-me alguns conselhos e queriam claramente um treinador português para dar continuidade ao trabalho.

O que é que os clubes procuram num treinador português?

Em primeiro lugar, a exigência. Nós, treinadores portugueses, somos muito exigentes, e a vários níveis, seja com os jogadores como com o staff que está à volta da equipa e com as condições de trabalho. Até na própria organização, pela experiência que aportamos por termos um país superdesenvolvido nas várias áreas do futebol. Para mim, somos os melhores, e isso não é por acaso. Toda a escola da formação do treinador português tem uma razão. Depois, somos pessoas que rapidamente nos ambientamos e com capacidade para resolver problemas. Estes contextos não são ainda superprofissionalizados, mas o treinador português tem a capacidade de chegar, adaptar-se e, mesmo que não tenha as melhores condições, acaba por tentar fazer muito com pouco.

Consegue exemplificar essa ideia?

Dou o exemplo do orçamento que tinha para contratar jogadores no Dila, que era uma coisa surreal. Na altura, o meu melhor jogador ganhava cinco mil dólares. O orçamento era muito reduzido e mesmo assim, com a ajuda de todo o trabalho desenvolvido pelos donos do clube, pessoas com um olho clínico, acabámos por construir uma equipa muito competitiva. Quando saí do Dila tínhamos cinco pontos de avanço para o Torpedo e nove para o Ibéria, que acabou por ser campeão. E tínhamos uma forma de jogar muito positiva. Num futebol quase semiprofissional, nem todos os treinadores, de outros países, estão preparados para dar a volta a estas pequenas coisas. Nem me posso queixar, porque até tinha algumas condições de trabalho do ponto de vista de treino, mas conheço outros treinadores (portugueses) que não as têm e mesmo assim conseguem fazer pequenos milagres. Acho que o treinador português tem essa capacidade.

Nas redes sociais do Noah há um vídeo em que o Rui Mota corre para chegar a horas a um treino. É esse respeito pelas regras do grupo que faz a diferença no fim?

É uma linha condutora. Essas regras acabam por facilitar o que é o dia a dia de um grupo, Estamos a falar de 25, 26 homens, cada um com a sua forma de pensar e a sua personalidade. Se não houver um fio condutor, em que todos saibam claramente onde têm de andar, é muito difícil mantermos a energia positiva do grupo. Se cada um souber as regras que tem de cumprir, fica mais fácil. Depois, para nós, treinadores, fica muito mais fácil gerir o balneário. Tomamos decisões em função do que são as regras. Assim, os jogadores sabem quando metem “o pé em ramo verde” e que são penalizados por isso. A disciplina é um dos meus maiores marcos.

Tem saudades de Portugal?

Claro, muitas. Adoro o meu país. Fui-me habituando, ao longo dos últimos anos, a estar fora, mas o país, a família e os amigos fazem-me falta. Sinto muitas saudades, mas é o nosso trabalho. Escolhi uma profissão que tem esta caraterística de andar por vários cantos do mundo. Também tem coisas muito boas, porque nos permite ter uma cultura e uma história de vida muito interessante.

É um objetivo seu treinar na Liga portuguesa?

Tenho esse objetivo, claro. Quero treinar em Portugal. Vai ser um trajeto natural, porque o que estamos a fazer acaba por espoletar curiosidade. Já tivemos algumas situações para Portugal. Com naturalidade, e com gosto também, poderei vir a participar no campeonato português.

Acompanha a Liga portuguesa? Ela está ao rubro…

Claro que sim. Sou um fervoroso adepto do nosso futebol. É pena que a diferença horária seja tão grande, o que nos obriga a algumas noitadas, mas eu e a minha equipa técnica, constantemente, vemos jogos (da Liga portuguesa). Até por ser um mercado muito interessante para nós, porque tem jogadores com muita qualidade que poderemos recrutar.

Do que viu até aqui, quem é o candidato mais forte ao título em Portugal?

Acho que se vai resumir ao confronto direto. Com maior ou menor dificuldade, Benfica e Sporting vão ganhar os jogos que terão pela frente e vai ser o dérbi que vai ditar quem vai ser campeão esta época (esta entrevista foi feita antes da 31.ª jornada da Liga). Também acho que é muitíssimo bom para o futebol português que haja esta competitividade, não só pelo título, porque o Sp. Braga está a disputar com o FC Porto o terceiro lugar. Tudo isso faz com que o futebol português saia vitorioso.

Quando era mais novo, jogou futebol?

Joguei, sempre a um nível não profissional. Era lateral-direito. Na altura, tinha o Dimas como referência, mas também o Ricardo, o Rui Costa ou o Figo. Quando passei para o futebol sénior, percebi que o que realmente queria era o treino. A minha qualidade enquanto jogador não me permitia alcançar o futebol profissional. Rapidamente deixei de jogar e foquei-me no que era a minha formação para poder ser treinador. Agora, adoro futebol e continuo a jogar. Vai ser sempre algo que me correrá no sangue.

Dos jogadores com quem trabalhou, houve algum que o tenha surpreendido pela evolução que registou?

Sobre o João Palhinha, quando ainda era júnior, lembro-me de haver algumas reticências sobre se ele iria chegar ao mais alto nível, mas era alguém que eu já nessa altura apreciava muito, pela sua maturidade, foco e forma de estar em campo. Com muito agrado, ele voltou a ser meu jogador no Sp. Braga e alcançou um patamar de excelência. Também o Trincão, que era um menino quando estávamos no Sp. Braga. Lembro-me ainda do Djenepo, que quando fomos para o Standard Liège estava na equipa B, mas cresceu connosco e acabou por chegar à Premier League, pelo Southampton.

O que é o futebol lhe deu e que mais nenhuma atividade lhe poderia ter dado?

Uma vida. O futebol marcou o meu trajeto de vida. Estou-lhe muito grato. Vou respirar sempre futebol.

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