O desabafo de Luighi, do Palmeiras, após ter sido vítima de racismo em partida do clube na Libertadores Sub-20, contra o Cerro Porteño, questiona o que a Conmebol fará sobre isso. Em breve nota, a entidade repudiou a discriminação e disse que vai prever medidas disciplinares. Entre a responsável pelo futebol sul-americano, Fifa e CBF, o órgão presidido por Alejandro Domínguez é a que menos prevê sanções a casos de racismo.
A Fifa desenvolveu um protocolo para essas situações, apresentado em maio de 2024, no 74º Congresso Anual da entidade. Junto disso, o órgão impôs como obrigatório que suas filiadas adotassem artigos específicos para aplicar sanções nesses casos, sendo a mais grave a suspensão da partida, com derrota para o time associado às ações racistas.
A sugestão é que fosse aderido o gesto de braços cruzados em “X” para que um jogador denuncie a prática discriminatória. O árbitro, verificando a situação, também faria a sinalização, parando o jogo. Persistindo, o juiz pode optar por uma suspensão temporária, última decisão antes da sanção mais grave.
Luighi foi vítima de racismo e desabafou cobrando responsabilização após jogo da Libertadores sub-20. Foto: Fabio Menotti/Palmeiras
No mesmo documento em que explica as regras, a Fifa defende que o racismo seja encarado como crime “em todos os países do mundo”. Onde já há esse reconhecimento, como no Brasil, a entidade disse que luta por uma ação penal “com a severidade que os casos merecem”.
“Isso é um protocolo da Fifa que vale para o mundo inteiro. E, se vale para o mundo inteiro, vale para as categorias de base e para a categoria principal. Então o juiz (da partida do Palmeiras sub-20) errou. Ele deveria ter seguido esse protocolo, que todas as outras entidades têm de cumprir”, explica o mestre em direito desportivo, Higor Maffei Bellini.
A determinação da Fifa é válida, independentemente de racismo considerado crime no determinado país. No caso do Paraguai, a Lei 6.940 de 2022 estabelece sanções para a prática, com penas que variam de multas entre 50 e 100 salários mínimos diários.
O valor base é de 107.627 de guaranis (R$ 78,62), o que faz a punição ir de 5,3 milhões a 10,7 milhões de guaranis (de R$ 3,93 mil a R$ 7,86 mil). Reincidentes podem ter de pagar o valor dobrado. Na interpretação de Bellini, a lei qualifica racismo mais como uma infração administrativa do que crime.
O Palmeiras, como clube ao qual Luighi é vinculado, pode solicitar um procedimento desportivo, apontando que o juiz não cumpriu o protocolo da Fifa. A punição prevista em caso de aplicação, porém, era a derrota para o Cerro Porteño, o que já aconteceu, com o placar de 3 a 0 para os palmeirenses.
“Aqui é uma situação em que as penas que a Fifa impõe aos clubes, como perda da partida, não trazem resultado prático, pois eles já saíram derrotados. Na decisão junto a justiça desportiva, a análise deve ser restrita ao que está na normativa da Fifa, não pode entrar na ocorrência de crime”, analisa Bellini sobre o caso.
A CBF pediu para que o clube paraguaio seja expulso da competição. O apelo foi formalizado em um documento de 29 páginas elaborado pelas Diretorias Jurídica e de Governança e Conformidade. A entidade se baseia no protocolo global da Fifa para casos de discriminação, que não foi cumprido pelo árbitro da partida.
Presidente da Fifa, Gianni Infantino foi um dos destinatários do documento. A entidade ainda não se manifestou sobre uma ação concreta para o caso, mas o presidente da entidade máxima do futebol publicou uma nota de apoio a Luighi.
A denúncia da CBF também chegou ao presidente da Conmebol, Alejandro Domínguez, o qual havia ignorado as ligações de Leila Pereira, presidente do Palmeiras, para falar sobre o caso, segundo a própria dirigente. “Não conseguir falar com ele. A Conmebol está sendo muito displicente. Estou tentando desde ontem e não consegui”, contou.
No Brasil, como a lei penal prevê o crime de racismo, a Justiça comum pode agir nesses casos. O Código Brasileiro de Justiça Desportiva também interpreta desta forma. Não é o caso do Paraguai, em que apenas a Justiça Desportiva deve prosseguir com o caso.
Berlinque Cantelmo, advogado criminalista e sócio do RCA Advogados, reitera o papel da arbitragem. Augusto Menéndez ignorou e deixou o jogo seguir. Para que a Conmebol possa tomar novas medidas, pode ser necessário que a situação tenha sido registrada em súmula.
“O que se espera é que minimamente a Conmebol, valendo-se de seu poder punitivo, independente do Estado paraguaio, julgue o caso de acordo com seu regulamento desportivo que, além de prever aplicação de multas que variam entre 30 a 100 mil dólares aos clubes cujas torcidas deram ensejo aos atos discriminatórios, traz também a previsão de suspensão de mando de campo ou até mesmo desclassificação de determinadas competições”, explica Cantelmo.
“Por meio de uma das suas Comissões Disciplinares, eles podem processar e julgar a situação por meio de provocação em súmula da arbitragem ou através de qualquer meio idôneo por onde tenha tomado conhecimento dos fatos”, conclui.
O que prevê a Conmebol para casos de racismo em jogos de futebol?
O conselho da Conmebol, em 2022, modificou o Código Disciplinar, na intenção de aumentar as penalidades em casos de discriminação. As punições estabelecidas foram de multa a partir de US$ 100 mil, além de imposição de jogos sem torcida ou com abertura parcial do estádio.
“Mas estamos falando de uma competição de base, que pode já não ter muito torcedor. Na prática, acaba não surtindo efeito prático. O que talvez pese é a aplicação de multa”, conclui Bellini.
O artigo 4b do estatuto da Conmebol cita como um dos objetivos da entidade “promover o futebol na América do Sul, respeitando os direitos humanos, em um espírito de paz, compreensão e jogo limpo, garantindo que não exista discriminação de um indivíduo ou grupo de pessoas por razões políticas, de gênero, religião, raça, origem étnica, nacionalidade ou qualquer outro motivo”.
Em casos como esse, o procedimento padrão prevê que, uma vez recebidos todos os documentos da partida, incluindo os relatórios de árbitros e oficiais de partida, e também outros que podem ser incluídos, como vídeos, é aberta uma investigação. Se for o caso, segue para a Unidade Disciplinar para as medidas cabíveis.
Quais as diferenças da Conmebol para a Uefa?
Assim como na América do Sul, a Europa prevê punições e ações a serem tomadas no caso de injúrias raciais durante as partidas. Álvaro Martin Ferreiro, advogado do CCLA Advogados, com mestrado em Direito Internacional do esporte, em Madri, explica que, em comparação com a Conmebol, a Uefa impões multa mais elevadas aos clubes nos casos de racismo.
“No caso de reincidências, essas penalidades podem ser significativamente aumentadas. Em vez disso, a Conmebol geralmente impõe multas baixas, que não representam uma punição significativa para os clubes infratores. Esse fator é fundamental para entender por que casos de racismo continuam ocorrendo com tanta frequência na América do Sul”, explica.
Além disso, nos casos de racismo, a Uefa prevê que clubes disputem partidas sem público – o que não ocorre na América do Sul – ou até proibir a entrada de torcedores específicos, que forem identificados, nas arenas, para sempre. “Na Conmebol, na maioria dos casos, os clubes não tomam medidas internas tão drásticas para punir os infratores, o que reforça a impunidade desses atos e passa a mensagem de que o racismo não tem consequências reais”, detalha o advogado.
O que prevê a CBF para casos de racismo em jogos de futebol?
A confederação brasileira ostenta ser a primeira a implementar punição desportiva em seu Regulamento Geral de Competições para casos de racismo. A referência no documento de 2024, por exemplo, é o parágrafo primeiro do artigo 135, que versa sobre punições em descumprimento de normas.
O texto aponta que infração de cunho discriminatório é “de extrema gravidade”. São 15 possíveis penas, aplicadas em ordem crescente de gravidade.
- Advertência
- Multa administrativa de até R$ 500 mil
- Vedação de registro de atletas
- Perda de pontos
- Suspensão
- Retenção de cotas
- Denegação/retirada de licença exigida para inscrição em competições nacionais e/ou continentais
- Desclassificação de competição em curso e/ou exclusão de futuras competições
- Retirada de título
- Devolução de prêmio
- Descenso para categoria inferior
- Afastamento temporário para exercer função relacionada com o futebol
- Proibição de acesso a vestiários e/ou ficar no banco de reservas
- Proibição de acesso a estádios
- Proibição temporária ou definitiva, de exercer toda e qualquer atividade relacionada com o futebol
O parágrafo quinto do mesmo artigo ainda determina que a perda de pontos pode ser aplicada administrativamente pela CBF, que encaminha o caso ao STJD, que julga e define se aplica a pena ou não.
O Cerro Porteño pode ser excluído por racismo?
A exclusão do Cerro Porteño da competição é possível e está prevista pela Conmebol. Entretanto, não é um desfecho comum. O caso mais emblemático aconteceu em 2014, quando o Grêmio foi desclassificado da Copa do Brasil após ofensas racistas da torcida gremista direcionadas ao goleiro Aranha, do Santos.
Na época, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), também multou o clube em R$ 50 mil pela discriminação, R$ 2 mil pelo arremesso de papel higiênico em campo e mais R$ 2 mil pelo atraso na entrada em campo, totalizando R$ 54 mil. Sem ter relatado o caso em súmula, o árbitro Wilton Pereira Sampaio foi suspenso por 90 dias e multado em R$ 1,6 mil, somados os dois artigos, enquanto os assistentes e o quarto árbitro pegaram suspensão de 60 dias e multa de R$ 1 mil.
Ainda segundo Bellini, o protocolo da Fifa pode funcionar em outros casos de discriminação, como homofobia ou xenofobia. “Muitos torcedores brasileiros, quando vêm estrangeiros, procuram ofender ou provocar o adversário com coisas relacionadas ao seu país”, ressalva o advogado, citando ofensas homofóbicas e atos como rasgar dinheiro, em referência a crise econômica.
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