“Quando canto, sinto que estou a trazer um pedacinho de Cabo Verde e Guiné comigo”, Kiara Timas

No coração de Lisboa, no Rossio, onde a multiculturalidade se entrelaça com a história da cidade, encontramos Kiara Timas e Rycardo Gomez. Naquele espaço que funde o antigo e o moderno, os dois ajustavam os últimos detalhes dos outfits para o lançamento de “Miúda”, o mais recente single da artista. Rycardo, como diretor artístico e um dos criativos por trás do videoclipe, ajudava na seleção das peças enquanto conversávamos sobre processos criativos.

Entre provas de roupa e ajustes, os provadores transformaram-se num autêntico confessionário. Três jovens afrodescendentes, com vivências distintas, mas interligadas por experiências comuns, refletiam sobre a indústria da música, a construção de carreiras independentes e, inevitavelmente, sobre identidade e pertencimento. E assim nasceu esta conversa.

Quem é Kiara Timas e como iniciaste o teu percurso artístico?

Desde muito nova, sempre fui apaixonada pela música, e o meu percurso artístico começou quando comecei a cantar e a envolver-me de forma mais profunda com a música. A música sempre foi uma forma de expressão para mim, mas com o tempo percebi que queria partilhar essa arte com os outros. Foi aí que decidi apostar no meu trabalho e seguir a carreira de cantora. Ao longo dos anos, fui aprendendo, evoluindo e descobrindo o meu próprio estilo, que, no fundo, é uma fusão de vários géneros que se combinam para formar a minha identidade musical. Cada passo deste caminho tem sido uma descoberta, e, hoje em dia, posso dizer com muito orgulho que estou a viver o meu sonho

Como foi a tua jornada até entrares no grupo Just Girls?

Foi bastante eclética. Desde cedo, tive várias paixões e segui diferentes caminhos. Estudei e trabalhei na área da moda, participei em muitos desfiles e fiz anúncios publicitários. Durante esse período, também comecei a cantar e, para me aperfeiçoar, tive aulas com uma professora particular. Ao mesmo tempo, continuei a trabalhar como modelo, o que me permitiu ter experiências únicas e aprender muito sobre a minha própria expressão artística. A entrada para as Just Girls representou um novo ciclo na minha vida. Foi um verdadeiro reposicionamento para mim, porque passei a trabalhar com pessoas que eu nunca tinha encontrado antes, nem mesmo nos castings. As minhas colegas de grupo eram todas novas para mim, o que tornou o processo ainda mais desafiador, mas também muito enriquecedor. Juntas, passámos horas e horas a trabalhar em equipa, a enfrentar os desafios e a criar algo muito especial.

Sendo artista solo e parte de um grupo pop, como equilibras essas duas facetas?

Equilibrar as duas facetas da minha carreira – ser artista solo e parte de um grupo – é como dançar entre duas melodias diferentes. Como artista solo, tenho a liberdade de explorar a minha essência mais íntima, de dar voz às minhas emoções e de criar músicas que refletem quem sou. É um espaço de descoberta pessoal, onde a minha identidade se torna o centro da minha expressão artística. Por outro lado, ser parte das Just Girls traz uma dinâmica completamente nova. Trabalhar em grupo exige um espírito de união que nem sempre é fácil encontrar, onde o resultado final é maior do que a soma das partes. É um espaço onde cada uma de nós traz a sua individualidade, mas todas juntas formamos uma harmonia.

O segredo está em saber quando deixar a minha voz brilhar sozinha e quando abraçar momentos de estar em conjunto seja com Justgirls ou com outros projetos/músicos com quem tenho o prazer de pisar o palco. Há momentos em que me entrego completamente ao meu lado individual, e outros em que me perco na sinergia de trabalhar em equipa. Ambas as facetas se alimentam uma à outra, e é esse equilíbrio que me permite crescer, tanto como artista e como pessoa.

Que influências cabo-verdianas trazes para a tua música?

A minha música é uma mistura de muitas influências que marcaram a minha vida e claro que a minha herança cabo-verdiana tem um lugar muito especial nesse processo. A minha mãe é de Cabo Verde, e cresci a ouvir as melodias e os ritmos que vêm dessa terra cheia de calor, amor e histórias de luta. Para mim, é importante que essa ligação se reflita na minha música, mesmo dentro do universo do pop português.

Quando canto, tento trazer o balanço da morna, a suavidade da coladeira e a força do funaná. São sons que falam diretamente ao coração e que, mesmo em um contexto pop, consigo integrar de forma a manter a autenticidade da minha cultura. O toque da percussão, o groove envolvente, as melodias que fazem o corpo querer dançar – tudo isso está presente, porque não há como negar as raízes que me ligam a Cabo Verde.

Quero que os meus fãs, especialmente aqueles de Cabo Verde, sintam o amor que tenho pela terra da minha mãe, também um pouco minha, mesmo quando estou a cantar um pop português. É uma forma de mostrar que, independentemente de onde estamos, as nossas raízes estão sempre presentes, e a música tem o poder de unir culturas. Quando canto, sinto que estou a trazer um pedacinho de Cabo Verde e Guiné comigo, e essa mistura é a minha forma de celebrar a minha identidade.

Como é ser uma artista afrodescendente na indústria musical portuguesa?

É, ao mesmo tempo, enriquecedora e desafiante. A música tem o poder de transcender fronteiras e, por isso, sempre procurei ser fiel a mim mesma e à minha herança, independentemente do contexto em que me encontro. No entanto, não posso negar que, como artista cabo-verdiana, por vezes enfrento certas diferenças no tratamento, especialmente em contextos onde a minha identidade cultural se torna mais visível.

Lidar com a dualidade de ser parte de três culturas diferentes – a cabo-verdiana e a portuguesa mais a guineense, pode ser complicado. Em algumas situações, como em sessões de autógrafos ou outros eventos, senti, por exemplo, uma certa surpresa nas reações das pessoas, talvez por estarem à espera de algo diferente do que é esperado de uma artista com as minhas raízes. Houve momentos em que senti que o público e os meios de comunicação, de forma indireta, esperavam de mim algo mais “exótico”, como se a minha música fosse definida apenas pela minha origem, quando, na verdade, quero ser reconhecida pela minha arte, pela minha voz e pela minha mensagem.

Mas, por outro lado, a indústria portuguesa tem sido muito receptiva e, aos poucos, também estou a ver que o público começa a compreender que a nossa identidade é multifacetada. Não somos apenas aquilo que as pessoas esperam, mas o que escolhemos ser. Sinto que a minha história, o meu percurso e as minhas influências cabo-verdianas e não só fazem parte de quem sou e, embora existam desafios, cada vez mais vejo que há uma abertura para a diversidade e a valorização de múltiplas culturas dentro da música portuguesa. Quero mesmo muito acreditar nisso. Essa é a mensagem que quero transmitir: a beleza da mistura, da aceitação e do respeito por todas as nossas origens.

Sentes que a tua identidade influencia a forma como és percebida na música e pelo público?

Sim, sem dúvida, porque cada uma destas origens traz consigo uma bagagem de tradições, valores e formas de ver o mundo. Cada uma dessas culturas tem a sua própria história, e isso pode gerar, por vezes, uma sensação de pertencimento múltiplo, que é ao mesmo tempo enriquecedora e desafiadora.

O grande desafio é, por vezes, encontrar o equilíbrio entre essas três culturas e a forma como me relaciono com elas no meu dia a dia e na minha música. Cada uma delas traz consigo uma linguagem própria, seja no sentido literal ou simbólico, e exige uma adaptação constante para que eu possa respeitar e integrar todas essas influências sem perder a minha identidade pessoal. No entanto, a beleza disso tudo é que, em vez de me sentir dividida, percebo que estas culturas se complementam e se somam para criar uma identidade única, que sou eu.

Equilibrar essas heranças não é algo linear, mas sim um processo constante de aprendizagem e de aceitação. Tenho orgulho das minhas raízes e tento, através da música, fundir essas influências de uma forma que as respeite, sem deixar que nenhuma delas se sobreponha às outras. A música, para mim, acaba por ser o ponto de encontro dessas três culturas, onde encontro liberdade para expressar a minha vivência, as minhas emoções e a minha visão de mundo.

No fundo, acredito que o equilíbrio entre essas heranças se dá através da aceitação plena de quem sou, da minha origem e do caminho que decidi seguir. É preciso celebrar essas diferenças e perceber que, mais do que um desafio, essa diversidade é uma força que me torna única, tanto como pessoa como artista.

Como vês a representatividade de artistas afrodescendentes na cena musical portuguesa?

A verdade é que a representatividade de artistas afrodescendentes, na área musical portuguesa, ainda deixa muito a desejar. Embora tenha havido algumas melhorias nos últimos anos, a realidade é que, por muito tempo, artistas dessas origens foram marginalizados ou relegados a um espaço limitado dentro da música em Portugal. Muitas vezes, as pessoas querem colocar os artistas afrodescendentes em caixinhas, associando-nos automaticamente a um estilo musical específico ou esperando que representemos apenas uma cultura ou um género.

No entanto, a área musical portuguesa tem vindo a mudar, e é bom ver cada vez mais artistas de origem cabo-verdiana, guineense e africana em geral a alcançar visibilidade. Ainda assim, falta muito para que essa representatividade seja genuína e natural. Quando olhamos para os principais palcos e para os media, vemos que a diversidade, embora em crescimento, ainda não é totalmente valorizada. Continuamos a ser uma minoria e, muitas vezes, somos apenas convidados para representar a ‘exotismo’ ou a ‘diversidade’ de forma estereotipada, sem sermos verdadeiramente reconhecidos pelo nosso talento e pela nossa música de forma plena.

A representatividade não se trata só de estar presente, mas de ser tratado com igualdade, de ter a oportunidade de estar no mesmo espaço e de ser ouvido pelo que realmente somos e fazemos. A nossa música, as nossas histórias e as nossas vozes merecem estar no centro da cena musical portuguesa, e é algo por que continuo a lutar, porque acredito que a verdadeira música portuguesa é, e deve ser, feita de várias influências e histórias que nos tornam mais ricos culturalmente.

Tens interesse em explorar mais as sonoridades de Cabo Verde e Guiné na tua música?

Com certeza, tenho um profundo interesse em explorar ainda mais as sonoridades de Cabo Verde e da Guiné na minha música. Essas culturas fazem parte de quem sou, e não há como ignorar a beleza e a riqueza dos ritmos, das melodias e das histórias que vêm dessas terras. A morna, a coladeira, o funaná, os sons da Guiné – são tudo sons que cresceram comigo e que sempre me tocaram profundamente. A minha música não é só sobre o presente, mas também sobre as minhas raízes, e quero continuar a trazer à tona essas influências, de uma forma que seja autêntica e que faça as pessoas sentir aquilo que eu sinto quando ouço essas músicas.

Vejo no futuro uma fusão constante entre os estilos e os géneros, explorando sempre mais a essência daquilo que somos como povo – e como povo africano, com as nossas tradições, os nossos sentimentos, as nossas lutas e as nossas alegrias. Quero que as pessoas de Cabo Verde, da Guiné e de Portugal sintam-se representadas, que possam ver a minha música como uma ponte entre essas culturas e o mundo. Porque, no fundo, acredito que a música tem esse poder mágico: de unir, de emocionar, de fazer o coração bater mais forte.

Estou apenas a começar, mas o meu objetivo é levar o que há de mais bonito dessas sonoridades, de uma forma moderna e global, sem perder a nossa essência. Porque, no fim de contas, somos um só povo, com histórias que merecem ser ouvidas. E é com todo o meu coração que vou partilhar essas sonoridades com o mundo.

Existe alguma colaboração com artistas africanos que gostarias de concretizar?

Com certeza! Sim, sem dúvida, existem muitas colaborações que gostaria de concretizar. A música da Guiné, tal como a de Cabo Verde, tem uma riqueza única, cheia de histórias, ritmos e emoções que tocam profundamente. Tenho um enorme respeito pela tradição musical desses dois países e, sem dúvida, há muitos artistas maravilhosos com quem adoraria colaborar.

Para mim, o mais importante é a conexão verdadeira através da música, onde conseguimos criar algo genuíno, que não seja apenas pela popularidade, mas que tenha verdadeira alma. Trabalhar com artistas de Cabo Verde e da Guiné, por exemplo, seria uma forma de celebrar essas culturas e de criar uma bela fusão, algo que possa falar diretamente ao coração das pessoas, representando as nossas raízes de forma autêntica. O futuro está cheio de possibilidades e estou ansiosa para explorar essas parcerias e criar algo muito especial com outros talentos de ambos os países.

Fala-nos do teu último álbum, o processo, o single já lançado. E o que podemos esperar de Kiara Timas nos próximos tempos?

Meu último álbum, Nu Tempo, foi lançado em 2017 e reflete muito da minha identidade artística. A sonoridade desse trabalho é uma fusão de soul, pop e jazz, que sempre foram influências que marcaram a minha trajetória e que procurei trazer à minha música de forma autêntica. Nu Tempo foi um marco importante na minha carreira, uma verdadeira expressão do meu estilo e da minha evolução enquanto artista. Cada música desse álbum foi criada com muito carinho e dedicação, e ainda é um trabalho que me orgulha profundamente.

Agora, o single Miúda surge como uma nova fase, uma amostra do que está por vir. Com uma pegada afrobeat vibrante e cheia de energia, Miúda antecede o meu próximo álbum, que será lançado ainda em 2025. Esta música tem uma vibe dançante, mas também carrega uma mensagem de empoderamento e força, especialmente para as mulheres. Acredito que Miúda é uma evolução do meu som, mantendo a minha essência, mas com uma sonoridade mais fresca e atual.

Nos próximos tempos, podem esperar muito mais de Kiara Timas! O álbum de 2025 vai trazer novas influências, novas colaborações e uma exploração ainda maior da minha identidade musical. Continuarei a trabalhar com profissionalismo, dedicação, sempre com a intenção de surpreender e emocionar quem gosta da minha música.

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