Por Que Escolheu Lisboa para Viver

Combinámos então encontrar-nos em Lisboa para me contar porque escolheu Portugal para viver com o marido e os dois filhos. Mas comecemos pelo início. Antoni nasceu na ilha filipina de Cebu – aquela onde Fernão de Magalhães foi morto em 1521. Filha de um empresário e de uma dona de casa que depois tirou um mestrado em Aconselhamento Matrimonial e Familiar, o gosto pelas artes já corria na família, ou não se tivessem os pais conhecido quando ambos participaram num musical. “Não eram profissionais, mas gostavam muito de música e de cantar. Nas Filipinas, estávamos constantemente rodeados de música. É uma grande parte da cultura”, conta Antoni.

Em criança, teve aulas de piano, durante sete anos. Mas quando chegou à adolescência convenceu a mãe a desistir, para passar mais tempo com os amigos. Isso não impedia que todos os dias se cantasse lá em casa, com Antoni ao piano e as três irmãs mais velhas a alinharem. Apesar disso, “nas Filipinas, nunca foi uma opção de carreira. Nem me ocorreu. Eu queria ser advogada, lutar pela justiça social”, recorda Antoni.

De origem filipina, espanhola e americana, o sonho de ir para os EUA sempre esteve em cima da mesa para os Mendezona. “O avô do meu pai era americano e mudou-se para as Filipinas em 1918. Casou-se com uma filipina, estabeleceu-se lá, tinha uma quinta. O meu pai tentou sempre obter a cidadania americana”, conta Antoni. E acrescenta: “Sempre soubemos que íamos mudar-nos quando obtivéssemos a cidadania.”

Foi o que aconteceu quando Antoni tinha 15 anos. A família mudou-se para a Califórnia. Mas, para a adolescente, a América não foi logo um sonho. “Eu estava tão deprimida!”, confessa, lembrando como os subúrbios de Sacramento, não podiam ser mais diferentes da vida nas Filipinas. “A cultura é tão diferente! Nas Filipinas as pessoas festejam, dançam, bebem. Ali era um bairro muito pequeno, muito branco”, recorda. Pela primeira vez, Antoni percebeu o que era a experiência de imigrante, apesar de a própria admitir que os pais “tinham algum dinheiro. “Não estou a comparar as dificuldades por que passaram com o que vivem os refugiados. Mas eles tiveram de começar de novo.”

Para Antoni, a música foi a salvação. No coro do liceu encontrou alguma felicidade e quando, aos 17 anos, teve de escolher para que faculdade ir, optou por Educação Musical, com a ideia de dar aulas. E foi todo um mundo novo que se abriu para ela. No momento de escolher o instrumento em que se queria especializar, Antoni não hesitou: escolheu a voz. “Eu cantava no coro, sempre cantei como soprano. E como sabia tocar piano, ajudava os outros músicos com os seus papéis. Sempre me destaquei. Por causa da minha voz”, explica.

Mas o momento de viragem só se deu com a tal ida à Ópera de São Francisco. Depois de uma audição para um espectáculo da escola, Antoni estreou-se com A Flauta Mágica. “Sou uma soprano ligeira. Na altura tinha uma voz pequena, porque não tinha formação clássica. E todos me diziam que eu devia cantar música barroca, mas eu não queria ouvir isso, porque achava que ainda estava a desenvolver a voz.”

Terminado o curso, ofereceram-lhe o primeiro papel profissional numa ópera – em Turn of the Screw, de Benjamin Britten. “Não podia ter tido uma estreia melhor. Fiz o papel de uma rapariga pequena. Eu era a Flora, porque era baixinha. Percebo os estereótipos. Eu parecia uma rapariguinha, mas sabia cantar. E era uma música difícil. E eu era boa música”, recorda.

Seguiu-se a entrada no Westminster Choir College, que fica na cidade de Princeton, apesar de não fazer parte da famosa universidade, e levou Antoni para a Costa Leste. Ali tirou o mestrado em Performance Vocal e Pedagogia. “Foi uma loucura. Nunca tinha estudado tanto na minha vida”, diz. E continua: “Era obrigatório cantar em coro, mas coro de orquestra. Então, cantámos com a Filarmónica de Nova Iorque. E cantámos Mahler com a Mahler Chamber Orchestra, no Carnegie Hall, no seu 75.º aniversário. E cantámos a 5.ª Sinfonia de Beethoven. E a 9.ª também, no Carnegie Hall. E estávamos todos a chorar. Todos nós, nerds, a chorar enquanto cantávamos.”

Nesses anos, ganhou o hábito de apanhar o comboio até Nova Iorque para ir às audições. E foi conseguindo alguns papéis. Às vezes com a sorte a ajudar, como quando a soprano de que era suplente ficou doente e a convidaram para atuar na Hungria ou, quando o mesmo voltou a acontecer, permitindo-lhe atuar na estreia de Hotel Casablanca, levando o crítico do jornal The New York Times a escrever como “roubou as cenas com a sua voz e a sua personalidade alegre”.

Pouco depois, e seguindo o conselho do agente que lhe estava sempre a dizer para se mudar para a Europa, Antoni aproveitou uma oportunidade e foi viver uns meses na Suíça, numa aldeia chamada Savognin, no cantão de Grisões. Mas se estava no centro da Europa, a verdade é que as prometidas audições não surgiram e Antoni acabou por voltar para os EUA ao fim de quatro meses e meio.

Estávamos em 2009 e as coisas não estavam fáceis. Para se sustentar enquanto continuava a ir às audições, Antoni arranjou um emprego como rececionista numa agência de publicidade. E foi aí que conheceu o futuro marido, Murilo, que era o diretor da Pós-produção. Casaram-se.

Antoni começou então a entrar na cena musical filipina. E logo com a adaptação de um clássico da literatura filipina, Noli me Tangere, de José Rizal. “Há uma ópera escrita sobre ele nos anos 50 e um casal filipino-americano queria produzi-la em Nova Iorque, financiada pela empresária filipino-americana Loida Lewis”, explica Antoni, que foi escolhida para o papel principal. Mas a soprano sabia que aquele não era o papel certo para a sua voz, e quando quiseram levar o espectáculo para Washington, exigiu mudar de papel. “Disse-lhes: ‘Quero cantar o papel de coloratura, porque é o mais adequado para a minha voz’”, recorda agora, sublinhando que aquela foi a primeira vez em que se defendeu como artista.

Correu tão bem que a ópera foi levada para as Filipinas, dando a Antoni a oportunidade de voltar ao seu país natal, mas desta vez em Manila, onde conta: “Até a forma como falam é muito diferente.” Criada a falar inglês e bisaya, o dialeto de Cebu, o tagalog que foi obrigada a aprender na escola ganhou mais fluência quando teve de decorar o papel para esta ópera.

Casada desde 2014 com o brasileiro Murilo, mãe de Emilia, de 6 anos, e Álvaro, de 4, Antoni não esconde que ser mãe ainda pode ser um tabu no mundo da ópera. “As pessoas olham-nos de forma diferente quando decidimos ter filhos.” Mas não desistiu, continuou a ir a audições, levando a bebé ou deixando-a com amigos. E os trabalhos iam surgindo. Mas tudo mudou com a pandemia. “Fechou tudo”, recorda Antoni, admitindo que não teve disponibilidade mental para procurar as formas alternativas de chegar ao público que alguns artistas adotaram. Na altura, estavam a viver em New Jersey e Antoni estava grávida do segundo filho.

De Ponta do Sol para Lisboa

É neste mundo pandémico que Antoni e Murilo decidem mudar-se para Portugal. Mas porquê Portugal, pergunto? “Sempre quis viver na Europa”, responde a soprano. E vai dando razões, desde a fuga ao ambiente político que se vive na América, à segurança, ao estilo de vida mais descontraído, passando por saberem que, mesmo que não pudessem ter um seguro de saúde, o Serviço Nacional de Saúde existe.

Quando Murilo teve de ficar em teletrabalho, perceberam que o momento chegara. Estávamos em agosto de 2021 e a escolha foi a ilha da Madeira. “É linda e a internet é boa”, explica Antoni, negando ter sido convencida por amigos, mas admitindo que o facto de o marido ser brasileiro e falar português talvez a tenha influenciado. Instalados em Ponta do Sol, com os filhos e os dois cães que trouxeram da América, Antoni começou a trabalhar para uma agência, em Viena, que fazia Relações Públicas para artistas, especializando-se em maestros e cantores de ópera cuja promoção garante nas redes sociais – uma atividade que mantém até hoje. Mas isso não amenizou a sensação de perda por não poder cantar. “Foi como se algo tivesse sido cortado da minha vida, arrancado de mim”, tenta explicar. Até que um dia foi a um concerto barroco. E gostou tanto que, no final, se apresentou ao maestro e, dias depois, este convidou-a para cantar com eles.

Só com o fim da pandemia, em 2022, é que Antoni e a família se mudaram para Lisboa. Murilo teve de ficar para trás por causa das autorizações dos cães. E Antoni chega com duas crianças pequenas e dez malas de viagem. Ao ver o apartamento, vazio e sujo, decide ir comprar uma esfregona. Quando ia a caminho do supermercado viu uma loja de produtos filipinos – “e comecei a chorar”. “Tinha molho de soja. E tinha vinagre. E comida filipina. E gelado filipino. Tudo aquilo de de que eu estava a precisar”, continua. A dona da loja era Leilani Yu, presidente da Associação Filipina Portuguesa, e foi ela quem desafiou Antoni a ser jurada num concurso de canto por ocasião do Dia Nacional das Filipinas. Aí conheceu Sara Fonseca e José António Falcão, os organizadores do Festival Terras Sem Sombra, e surgiu o convite para atuar em Arraiolos. “Só quero fazer o trabalho de que gosto e quero trabalhar com pessoas que sejam boas e que também gostem do que fazem. E acho que posso encontrar isso aqui”, garante.

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