19 Julho 2024
Dezoito meses depois de um dos mais graves episódios de violações em massa dos direitos humanos na história recente do Peru, em que 50 pessoas e um polícia foram mortos e mais de 1400 ficaram feridos durante manifestações entre dezembro de 2022 e março de 2023, as provas apontam para a possível responsabilidade criminal da Presidente Dina Boluarte e podem revelar-se essenciais para as investigações em curso.
Num novo relatório, denominado “Quem deu a ordem? A responsabilidade da cadeia de comando pelas mortes e ferimentos nos protestos no Peru”, a Amnistia Internacional descreve em pormenor as principais decisões tomadas pela Presidente enquanto comandante suprema das forças armadas e da polícia peruana que justificam que os procuradores avaliem a sua responsabilidade criminal individual nas investigações em curso.
“A presidente, os ministros, os comandantes da polícia e as forças armadas do Peru tomaram decisões que acabaram por ter consequências letais. Centenas de vítimas e sobreviventes esperam por respostas sobre o que os altos funcionários sabiam, ou deveriam saber, e o que não fizeram para impedir os assassinatos”, afirma Ana Piquer, diretora da Amnistia Internacional para as Américas.
“A presidente, os ministros, os comandantes da polícia e as forças armadas do Peru tomaram decisões que acabaram por ter consequências letais”
Ana Piquer
Uso excessivo da força premiado
Ainda que a Presidente Boluarte tenha negado, sob juramento, perante o Ministério Público, que tivesse tido contacto direto com os comandantes e tenha minimizado o seu papel na repressão estatal, o relatório mostra que, durante os três meses de manifestações em todo o país, Boluarte reuniu-se várias vezes com os comandantes das forças armadas e da polícia, o que lhe deu múltiplas oportunidades para condenar o uso generalizado e ilegítimo da força e ordenar uma mudança de táticas no terreno.
Em vez de utilizar as suas frequentes reuniões com ministros, polícias e comandantes militares para este fim, a Presidente continuou a elogiar publicamente as forças de segurança, e acusou os manifestantes de serem “terroristas” e “criminosos” sem apresentar provas. Além disso, decidiu promover funcionários-chave a posições mais elevadas, apesar de terem supervisionado diretamente as operações policiais e militares que causaram várias mortes.
A Presidente Boluarte continuou a elogiar publicamente as forças de segurança, e acusou os manifestantes de serem “terroristas” e “criminosos” sem apresentar provas
No caso da Polícia Nacional do Peru (PNP), os comandantes da polícia assinaram planos de operação que classificavam os manifestantes como “terroristas”, enviaram forças especiais altamente armadas para os confrontar, autorizaram o uso de força letal e repetiram estas mesmas ordens durante meses, mesmo com todas as mortes que foram sucedendo.
Além disso, a PNP não foi capaz de fornecer à Amnistia Internacional pormenores sobre qualquer ação disciplinar contra os agentes envolvidos, uma vez que tinha encerrado pelo menos 18 investigações disciplinares abertas contra agentes da polícia. Depois de supervisionar e assinar todos os planos operacionais que tiveram consequências letais durante os protestos, a Presidente Boluarte promoveu o general da polícia responsável por esses planos a comandante-geral da PNP.
A Amnistia Internacional obteve os planos operacionais internos da PNP e descobriu que, para além de manter a ordem pública enquanto as ruas e instalações públicas estavam bloqueadas pelos manifestantes, a polícia recebia ordens vagas e abrangentes, tais como “remover barreiras humanas”. Para o efeito, a polícia foi munida de espingardas e os planos permitiam que as unidades com estas armas letais disparassem sob as ordens de um comandante operacional.
Este quadro permissivo para a força letal violava tanto a legislação peruana como o direito internacional em matéria de direitos humanos, que estabelece que as armas de fogo são inadequadas para o controlo de multidões. Os planos operacionais também deixavam claro que os superiores da cadeia de comando estavam constantemente informados e conscientes do que estava a acontecer.
Este quadro permissivo para a força letal violava tanto a legislação peruana como o direito internacional em matéria de direitos humanos, que estabelece que as armas de fogo são inadequadas para o controlo de multidões
Operações policiais letais
As operações policiais revelaram-se letais desde os primeiros dias do seu destacamento para as manifestações. Em Andahuaylas, a 12 de dezembro de 2022, as forças especiais da polícia dispararam munições letais de um telhado para uma colina onde dezenas de pessoas assistiam a uma disputa entre a polícia e os manifestantes cerca de 200 metros abaixo. Os agentes mataram a tiro dois jovens na encosta e feriram vários outros. A Amnistia Internacional constatou que os comandantes responsáveis pela operação se encontravam a apenas dois quarteirões de distância do local onde ocorreu o incidente.
Apesar de o destacamento de unidades de forças especiais em Andahuaylas ter sido fatal, os superiores continuaram com as mesmas táticas durante meses, sem pôr termo ao uso excessivo, desproporcionado e desnecessário da força por parte dos seus subordinados. Um mês após as primeiras mortes em Andahuaylas, os comandantes superiores da PNP decidiram mobilizar os mesmos chefes das forças especiais para supervisionar as operações no aeroporto de Juliaca, onde se registaram protestos a 9 de janeiro de 2023. Dezoito pessoas morreram nesse dia em Juliaca e mais de 100 ficaram feridas.
Apesar de o destacamento de unidades de forças especiais em Andahuaylas ter sido fatal, os superiores continuaram com as mesmas táticas durante meses
Esta operação foi efetuada apesar de, nessa altura, vários organismos internacionais de defesa dos direitos humanos já terem condenado as ações das forças de segurança peruanas. O exército também já tinha sido mobilizado para uma operação noutra cidade, semanas antes, no aeroporto de Ayacucho, que fez dez mortos num só dia. No entanto, o alto comando da PNP decidiu voltar a envolver o exército na operação conjunta das forças militares e policiais no aeroporto de Juliaca.
A Amnistia Internacional também analisou a cadeia de comando e os planos operacionais relacionados com o destacamento das forças armadas em Ayacucho. Os comandantes das forças armadas enquadraram os manifestantes como “grupos hostis”, o que terá provocado uma resposta combativa dos soldados na operação de 15 de dezembro de 2022, resultando em dez mortos e dezenas de feridos. Os registos obtidos pela Amnistia Internacional mostram que os soldados dispararam pelo menos 1.200 balas nesse dia em resposta a “ordens verbais” dos seus superiores.
Em Ayacucho, os disparos contra manifestantes indefesos e transeuntes continuaram durante sete horas no dia 15 de dezembro de 2022, apesar dos telefonemas pessoais do provedor de Justiça para o chefe do comando conjunto das Forças Armadas e para o ministro da defesa a pedir um cessar-fogo.
Apesar de existirem amplas provas de que as ações do exército tinham sido excessivas, totalmente desproporcionadas e desnecessárias, a Presidente Dina Boluarte afirmou que as mesmas tinham sido legais numa conferência de imprensa dois dias após a operação letal em Ayacucho. Quatro dias mais tarde, promoveu o ministro da defesa a chefe de todo o seu gabinete. Nos meses que se seguiram às operações de Ayacucho, o exército apenas tomou medidas disciplinares internas contra oito soldados por “infrações menores”, embora existam provas suficientes de que os soldados tinham alegadamente disparado espingardas contra manifestantes desarmados, que em muitos casos fugiram deles ou pararam para ajudar transeuntes feridos.
Existem provas suficientes de que os soldados tinham alegadamente disparado espingardas contra manifestantes desarmados
Os ministros do gabinete da Presidente também não tomaram medidas para responsabilizar os indivíduos relevantes das forças de segurança. O Ministério do Interior respondeu a um pedido de informação pública da Amnistia Internacional, no qual confirmava que não tinha sido tomada qualquer medida disciplinar contra o general responsável pelas operações policiais durante as manifestações sociais. A organização obteve também cartas enviadas pelo Ministro do Interior ao Comandante Geral da PNP sobre as manifestações de janeiro de 2023, nas quais não fazia qualquer menção às 18 pessoas mortas em Juliaca durante operações policiais.
Dezoito meses depois, as investigações criminais sobre as violações dos direitos humanos cometidas durante os protestos estão a progredir lentamente. Apesar de terem convocado a Presidente e os ministros para interrogatório em várias ocasiões, de acordo com a informação disponível, os procuradores parecem ter conduzido até agora investigações superficiais: limitaram-se a fazer o que tinham a fazer sem chegar ao cerne dos factos, incluindo a possível responsabilidade criminal individual da Presidente enquanto chefe supremo da polícia e das forças armadas.
Por outro lado, os procuradores fizeram alguns progressos na identificação de vários agentes da polícia e militares como suspeitos em investigações criminais, mas continuam a ignorar funcionários-chave na cadeia de comando, especialmente comandantes seniores específicos da PNP, que a Amnistia Internacional destaca no seu relatório.
“O Peru não pode permitir que estas graves violações dos direitos humanos fiquem impunes. Muitas das vítimas são de comunidades indígenas e camponesas, cujas vozes têm sido historicamente ignoradas. Os responsáveis pela dor de centenas de pessoas que perderam entes queridos ou estão gravemente feridas têm de enfrentar a justiça, independentemente da sua alta patente”, afirmou Marina Navarro, diretora executiva da Amnistia Internacional do Peru.
“Muitas das vítimas são de comunidades indígenas e camponesas, cujas vozes têm sido historicamente ignoradas”
Marina Navarro
Recursos
Crédito: Link de origem
Comentários estão fechados.