Os 101 dias de angústia que a Grã-Duquesa Charlotte passou em Portugal

Por mais que Charlotte soubesse que o Luxemburgo podia ser ocupado a qualquer momento pelas tropas alemãs, a entrada da Wehrmacht foi de tal forma rápida e cirúrgica que a fuga da família real do país aconteceu às pressas, em total aflição. Um jardineiro alemão que trabalhava para o banqueiro Carlo Turk, e que pertencia às forças de Hitler, lançou o aviso a 9 de maio de 1940: a invasão nazi aconteceria no dia seguinte. E assim foi, de facto.

Cumprem-se agora 85 anos desses dias de angústia. Às três da manhã do dia 10 de maio, a Grã-Duquesa Charlotte, o marido e os filhos enfiam-se à pressa num Fiat que o príncipe herdeiro Jean havia recebido de presente meses antes e partiram pela estrada de Rodange. Às 04h35, os soldados nazis entraram no país. Mais de 90 mil pessoas tiveram de fugir apressadas da região de Esch-sur-Alzette: 47 mil partiram para França, 45 mil para as florestas do norte. Ao fim da tarde, o país estava ocupado.

A fuga de Charlotte levá-la-ia a Portugal – e é disso que esta história trata. Foi ali que, ao longo de 101 dias, a Grão-Duquesa teve de tomar uma decisão dificílima: voltar a casa, onde seria tolerada se aceitasse o domínio alemão, ou resistir a Hitler. Esta semana, o Grão-Duque Henri vai a Cabanas de Viriato, terra-natal de Aristides de Sousa Mendes, visitar a recém inaugurada casa-museu do cônsul português de Bordéus. Foi ele que, além de ter salvo milhares de judeus e refugiados de guerra, assinou os vistos de entrada da família e do governo grão-ducal. E foi em parte a ele que se deve a escrita desta página da História de que agora falamos: de como o papel do Luxemburgo na Guerra foi decidido em Portugal.

A família grã-ducal não viajou sozinha. Acompanhou-a quase todo o governo do país, com exceção do ministro da Instrução Pública e da Agricultura, Nicolas Margue, que não conseguiu escapar.

© Créditos: Arquivo LW

Houve um compasso de espera em Longwy, e uma certa expetativa que as tropas francesas chegassem para defender o Luxemburgo. Mas isso nunca aconteceu e a fuga continuou para oeste. Ao chegarem a Paris, ainda na noite de 10 de maio, os membros do governo luxemburguês no exílio instalaram-se na Legação do Luxemburgo, no 36 da Avenida Hoche, em Paris, enquanto a família grã-ducal ficou inicialmente em Celles-Saint-Cloud, e depois no castelo de Bostz, junto ao rio Allier.

“No dia 18 de junho, o novo governo francês presidido por Pétain deu, porém, conta ao seu homólogo luxemburguês que já não podia garantir a sua segurança”, conta ao Contacto a historiadora portuguesa Irene Flusner Pimentel, autora de vários estudos e livros sobre o papel de Portugal na II Guerra Mundial e especialista no registo dos refugiados que chegaram ao país nesses anos negros da História.

“O governo no exílio, bem como a família grão-ducal e a sua corte decidiram então atravessar os Pirenéus e procurar refúgio em Espanha”, continua Pimentel, “mas Franco ordenou a saída da delegação luxemburguesa em 48 horas.” O cerco apertava-se.

O diplomata luxemburguês Paul Schmit, que foi embaixador do Grão-Ducado em Lisboa e hoje cumpre as mesmas funções em Varsóvia, lançou em novembro de 2024 um livro onde retrata o exílio do governo e da família grão-ducal em 1940, chamado “Mon coeur dit oui, mais ma tête dit non” – e esteve a apresentá-lo na semana passada na capital portuguesa.

A obra refere-se precisamente à frase que Charlotte proferiu em Portugal, mostrando a decisão difícil que tinha em mãos, quando lhe foi proposto o regresso a casa: “o meu coração diz que sim, a minha cabeça diz que não.” No livro, percebe-se o tumulto daqueles dias. Há uma altura em que se estuda a possibilidade de Jean, príncipe herdeiro, rumar à Suíça, para reduzir o risco da monarquia luxemburguesa capitular toda junta, caso Hitler avançasse pela Península Ibérica. “Todas as possibilidades estavam em cima da mesa por esses dias”, diz Schmit. Mas a rota que acabaria por ser seguida era para sudoeste.

A família real do Luxemburgo a banhos de sol no telhado do Palácio Santa Maria, em Cascais. © Créditos: Maison du Grand-Duc

Salazar tinha já dado instruções para que a família real fosse recebida em Portugal como ponto de passagem para os Estados Unidos, “desde que não houvesse qualquer atividade política anti-germânica, preservando a neutralidade de Lisboa”, diz Pimentel. O que o primeiro-ministro português provavelmente não contava é que Aristides de Sousa Mendes assinasse também o visto a toda a delegação e a todos os membros do governo no exílio para se instalarem em solo lusitano.

No domingo, 23 de junho, uma comitiva de 17 viaturas largou de San Sebastian, no País Basco espanhol, em direção a Portugal. A bordo seguiam 72 luxemburgueses em fuga, incluindo a corte e os membros do governo. Na manhã seguinte, entraram sem problemas em Portugal, parando uma noite. Uma parte da comitiva ficou no Luso e outra no Buçaco. Depois há este pormenor delicioso: “No Luso, a mãe de Charlotte, Maria Ana de Bragança, tem a honra de passar a noite no mesmo quarto onde tinha vivido a rainha dona Amélia”, lê-se no livro de Paul Schmit. As raízes portuguesas da Grã-Duquesa-mãe foram essenciais para a receção dos luxemburgueses. Charlotte fica em terras do Buçaco. E, nesse dia, 24 de junho de 1940, começava verdadeiramente o exílio português da monarca.

Um tormento em Portugal

Depois de uma paragem nas Caldas da Rainha, a comitiva seguiu em direção a Lisboa. Charlotte e a família real instalaram-se no Palácio Santa Maria, propriedade do banqueiro português Manuel Espírito Santo, cônsul honorário do Luxemburgo em Portugal. Os membros do governo, esses ficaram mais afastados, ocupando toda a Pensão Royal, na Praia das Maçãs.

“Estes foram verdadeiramente os primeiros tempos em que a região de Lisboa começou a acolher grande parte das monarquias europeias e dos refugiados judeus que daqui partiriam nos cruzeiros para o outro lado do Atlântico”, conta a historiadora Irene Flusner Pimentel.

Pela região de Cascais e do Estoril, desfilavam reis e figuras de proa. “Nesta altura estavam por ali o Conde de Barcelona e o Rei Karol da Roménia. Pouco antes tinham saído os Duques de Windsor, que tinham sido alvo de uma tentativa de rapto pela Gestapo. O rei Umberto de Itália também se mudou para esta região. E, ao mesmo tempo que chegava toda esta gente, chegava também a espionagem dos dois lados da barricada”, esclarece a historiadora portuguesa.

A historiadora Irene Flusner Pimentel acredita que Charlotte viveu dias de grande aflição em Portugal. © Créditos: Anouk Antony

Pimentel acredita que Charlotte tenha passado os dias em Cascais fazendo várias reuniões, mas está igualmente certa de que fê-lo da forma o mais secreta possível.”Teve de haver muitas reuniões para tomar decisões, mas sabemos que a PIDE fazia uma vigilância apertada, tanto à família real como sobretudo ao governo luxemburguês no exílio. Não podemos esquecer que o compromisso era não exercer qualquer atividade política.”

Da cidade do Luxemburgo, entretanto, tinham chegado notícias. O presidente da Câmara dos Deputados havia escrito a Charlotte pedindo-lhe o seu regresso – e prometendo a segurança da família real desde que a ocupação alemã fosse assumida. É daí que vem a famosa citação de Charlotte: “O meu coração diz sim, a minha cabeça diz não.”

No seio do Executivo a divisão era grande, assume Paul Schmit. “Houve aliás membros do governo que decidiram voltar ao Grão-Ducado depois da crise estar ultrapassada. Organizaram-se inclusivamente transportes de regresso.”

No Palácio Santa Maria os dias eram de indecisão. “Não é difícil imaginar o tormento que aquela mulher carregava às costas”, admite Irene Flusner Pimentel. Havia demasiados pratos em cima da mesa, afinal de contas. Era preciso cuidar do país, era preciso cuidar da família e era preciso cuidar de si própria. Charlotte mostrava-se irredutível: “A minha prioridade são os luxemburgueses”, disse repetidas vezes.

A 15 de julho de 1940, o Grão-Duque consorte parte de Lisboa com os filhos para os Estados Unidos, num navio de guerra das tropas norte-americanas. Charlotte fica no seu palácio, com a sua cabeça, a tomar as suas decisões. A segurança da família era prioritária mas ela tinha de ficar para trás.

Charlotte no porto de Lisboa, a bordo do Excalibur para se despedir de luxemburgueses que partiam para os Estados Unidos, a 25 de setembro de 1940. © Créditos: Coleção Aschman-Bodson

O pedido do Parlamento tinha chegado três dias antes, e anos mais tarde a própria Charlotte admitiu que vacilou. Mas, no dia 25 desse mês, há um novo elemento que entra em jogo e faz mudar tudo.

A Alemanha designa Gustav Simon governador-civil do Luxemburgo. Membro destacado do Partido Nazi, Simon deixa claras as posições germânicas desde o primeiro dia: o objetivo é anexar o Luxemburgo e torná-lo parte da Alemanha, deixando de respeitar a integridade política ou territorial do país.

Nos dias seguintes, dois embaixadores americanos, que chegam a Lisboa do centro da Europa, encontram-se com Charlotte e tentam convencê-la a voltar ao Luxemburgo, que era inevitável a derrota. “Não o fizeram seguramente em nome do Departamento de Estado ou do Presidente americano, visto que nesta altura o país ainda assumia a sua neutralidade”, diz Paul Schmit. “Mas penso que falaram sinceramente, a voz própria.” Todos os caminhos pareciam apontar para o regresso. Mas Charlotte não podia permitir a queda voluntária do Luxemburgo. As dúvidas começaram a dar lugar às certezas. E, no início de agosto, a Grã-Duquesa percebeu que já só lhe restava um caminho: resistir.

Democracia sempre

Paul Schmit não quer fazer juízos de caráter sobre Charlotte, até porque não a conheceu. Mas é claro na opinião que formou, e nos depoimentos que recolheu de muita gente que contactou de perto com ela, sobretudo naqueles dias de angústia em Portugal. “Tinha uma enorme coragem”, profere.

Nos Estados Unidos, Felix, marido de Charlotte, exasperava. No final de agosto mandou um telegrama pedindo-lhe que se juntasse urgentemente à família e dizendo-lhe que a sua presença era essencial.

Paul Schmit durante a apresentação do seu livro sobre o exílio luxemburguês na II Guerra Mundial. © Créditos: Marc Wilwert

A família real havia entretanto decidido que ficaria exilada em terras canadianas. Felix conseguiu que os vistos de entrada fossem enviados para Lisboa, mas Charlotte recusou-se a arredar pé enquanto não soubesse que os seus compatriotas – os que estavam em Portugal e os que ainda permaneciam em França – podiam rumar a paragens seguras, se assim o entendessem.

A 29 de agosto de 1940, a Grã-Duquesa tomou as derradeiras medidas antes de se propor a um longo exílio que duraria até 1945. Viajou então para Londres, para se encontrar com o governo inglês e transmitir pelos microfones da BBC uma extraordinária mensagem de resistência. A monarca insistiu nos seus discursos na defesa dos ideais democráticos e impeliu o povo luxemburguês a aguentar firme os desafios que a Guerra provocava. Hitler não gostou e a repressão aumentou no pequeno país do centro da Europa.

Em 1942, o povo resistiria com uma greve geral e uma resposta negativa ao referendo que quis tornar o Luxemburgo alemão. A resposta nazi, como não é difícil de imaginar, foi bárbara. Perseguições, deportações e fuzilamentos foram resposta à insolência luxemburguesa.

Agora não havia sombra para dúvidas: a posição de Charlotte estava tomada e a Grã-Duquesa queria proferi-la a alto e bom som para que todo o mundo ouvisse. “E é aqui que acontece um episódio francamente caricato”, conta-nos a historiadora Irene Flusner Pimentel. Em Washington, o Grão-Duque Felix, do Luxemburgo, encontrou-se com o ministro português nos Estados Unidos, António de Bianchi, e referiu o facto de a Grã-Duquesa ler aos microfones da BBC em Londres a declaração de protesto contra a invasão do Luxemburgo.

Em 1945, a Grã-Duquesa Charlotte regressou do exílio ao Luxemburgo e visitou a população de Diekirch. © Créditos: Arquivo

“Felix afirmou compreender muito bem atitude do governo português ao não permitir que esse protesto fosse declarado em território português e que fora precisamente por isso que a Grã-Duquesa tinha ido a Londres, regressando depois a Portugal”, conta a historiadora.

Bianchi recebeu o protesto de Charlotte a 13 de setembro e enviou-o ao primeiro-ministro português. “Salazar respondeu telegraficamente, no dia seguinte, dizendo não ser conveniente acusar a receção do documento, reforçando que a Grã-Duquesa estava em Portugal a título meramente individual.” Tudo para manter as aparências de neutralidade.

Bianchi avisou Salazar de que ninguém acreditaria que Portugal não tinha recebido o protesto, pois se até mesmo a delegação germânica em Washington o tinha feito? Sem efeito – e talvez por isso a Grã-Duquesa pôde regressar a Cascais, depois da visita a Londres.

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Após esses dias na capital britânica, a comitiva luxemburguesa em Portugal começou a dispersar. Muitos embarcam para os Estados Unidos, outros regressam ao Grão-Ducado e Charlotte esperou até as coisas estarem resolvidas. A 3 de outubro de 1940, a monarca e a sua mãe, Maria-Adelaide de Bragança, embarcaram no porto marítimo de Cabo Ruivo no Yankee Clipper, um hidroavião americano que as levou a Nova Iorque.

Jean, o príncipe herdeiro, regressaria à Europa dois anos depois para se alistar no exército inglês e combater o nazismo – participando inclusivamente no desembarque das tropas aliadas na Normandia. Charlotte permaneceria do outro lado do Atlântico até 1945. Em Portugal, o Luxemburgo fez-se resistente a Hitler. E esse é um orgulho que serve os dois países.

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