O regresso do Banco de Portugal – Observador

As relações entre o governador do Banco de Portugal e o ministro das Finanças nem sempre foram pacíficas, ao longo da nossa história económica em democracia. O caso mais dramático foi o da demissão do vice-governador António Borges, liderava o banco Miguel Beleza, quando o então ministro das Finanças Jorge Braga de Macedo resolveu criticar a estratégia na altura conhecida como de “escudo forte” que impunha juros elevados.

Mais recentemente, o governador do Banco de Portugal Carlos Costa não teve uma tarefa fácil durante o tempo em que, o agora seu sucessor, Mário Centeno foi ministro das Finanças. E as relações entre Governo e ex-governador atingiram um patamar inédito com o ex-primeiro-ministro António Costa, por causa do livro “O Governador” de Luís Rosa, que culminou com ameaças mútuas de processos judiciais.

Vivemos depois um tempo de paz absoluta já com Mário Centeno na Rua do Comércio e enquanto João Leão ocupava o gabinete da Praça do Comércio para depois, com Fernando Medina nas Finanças assistirmos a pequenas picardias para entendidos.  Como no dia em que Mário Centeno se antecipa e, logo pela manhã, anuncia que a dívida pública em 2023 tinha ficado abaixo dos 100% do PIB. O que acabou por obrigar Fernando Medina a dar uma conferência de imprensa, ou veria este sucesso a aparecer com a imagem de Centeno.

Com um novo Governo de cor política diferente da do governador, a rua do Comércio e a Praça do Comércio voltam a estar animadas por debates, intermediados pelas notícias. É certo que quem começou foi o ministro das Finanças, através do que disse sobre as contas do Banco de Portugal, o que naturalmente se podia entender como sendo uma mensagem dirigida ao governador. Mas também sobre o que Joaquim Miranda Sarmento e até o primeiro-ministro têm afirmado sobre as contas públicas.

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Disse o ministro das Finanças no Parlamento, a 11 de Abril, que foi com “surpresa e espanto” que soube do prejuízo do Banco de Portugal em 2023, no montante de 1054 milhões de euros. Na apresentação das contas, a 16 de Maio, Mário Centeno evitou o confronto sobre este tema – foi menos poupado nas contas públicas como veremos -, recusando-se a dizer se tinha reunido com o ministro antes ou depois de 11 de Abril, e limitando-se a afirmar o que todos os que acompanham esta área sabiam: este prejuízo já era esperado.

É exactamente porque já se esperava esta perda que é difícil entender a declaração do ministro das Finanças, até porque já outros bancos centrais tinham tido prejuízos no ano anterior. O banco central alemão já tinha registado prejuízos em 2022 e no ano passado perdeu 21,6 mil milhões de euros, ficando praticamente sem provisões para a cobertura dessas perdas, como se pode ler numa notícia de 11 de Fevereiro. E o banco central da Holanda perdeu 3,5 mil milhões de euros. A Morgam Stanley espera que as perdas dos bancos centrais do euro voltem a subir este ano, começando a descer em 2025. Mário Centeno prevê que só em 2026 o Banco de Portugal poderá voltar a ter lucros.

Como se percebe não é surpresa para ninguém e não o devia ser para o ministro das Finanças. A partir do momento em que a política monetária se tornou mais restritiva, com a subida das taxas de juro, os bancos centrais começam a registar perdas: pagam juros aos bancos, neste momento de 4%, quando os activos que têm no balanço rendem muito menos. O oposto do que tivemos no passado e que permitiu generosas distribuições de dividendos.

E podemos admitir que o ponto que Joaquim Miranda Sarmento quis fazer foi esse: terá o Banco de Portugal, primeiro sob pressão do Governo no tempo de Carlos Costa e depois para facilitar a vida ao Governo da mesma cor política de Mário Centeno distribuído demasiados dividendos, não se acautelando devidamente para este tempo que se sabia que ia chegar? Questionado sobre este assunto na conferência de imprensa de apresentação dos resultados, Mário Centeno disse obviamente que não.

Mas foi no tema das contas públicas que o governador do Banco de Portugal deixou recados, digamos, mais assertivos. Primeiro contrariou o Governo ao dizer que as contas públicas entraram no ano de 2024 melhor do que os números finais de 2023 (um excedente de 1,2% do PIB) e não pior, porque existem uma série de despesas do ano passado, da ordem dos mil milhões de euros, que já não serão feitas este ano.

A seguir Mário Centeno faz um conjunto de raciocínios que nos levam a concluir o seguinte: se não se registarem excedentes da ordem de 1% a 1,5%, estaremos a usar o dinheiro que é para pagar pensões no futuro. Ou seja, estamos a pôr em causa as pensões dos futuros reformados.

O raciocínio é simples. Quando falamos de excedente orçamental estamos a referir-nos às administrações públicas que incluem a Administração Central, a Administração Local e Regional e os Fundos da Segurança Social. Se olharmos para as contas públicas (por exemplo, neste documento do INE), o excedente do ano passado (de 3,2 mil milhões de euros) é obtido graças fundamentalmente  ao excedente da Segurança Social (5,6 mil milhões de euros), já que a administração central registou um défice de 2,3 mil milhões de euros. Claro que estamos a fazer um brilharete nas contas públicas graças às contribuições, que por sua vez reflectem o momento historicamente positivo do emprego.  Mário Centeno diz assim, para quem está na Praça do Comércio, que se não registar excedente de 1% a 1,5% está a ameaçar as pensões de quem está hoje a descontar.

Em suma, o governador do Banco de Portugal, no dia em que apresenta prejuízos acaba a condicionar (ou tenta) a margem de manobra do Governo em matéria de gestão das contas públicas. E se por um lado desconstrói a dramatização que o governo fez sobre a herança das contas – ao afirmar que se começou o ano com menos mil milhões de euros de despesa -, por outro diz-nos, pela primeira vez, que os excedentes que têm existido (pressupõe-se que incluindo o seu) são graças ao dinheiro das pensões e isso não pode continuar.

Está aberta uma nova fase das relações entre os inquilinos da Praça do Comércio e da Rua do Comércio em Lisboa, deixando para trás os poucos anos pacíficos entre o Banco de Portugal e o Governo. Mário Centeno acaba o seu mandato no próximo ano. Até lá vamos assistir a debates (indiretos) muito interessantes e que vão contribuir para percebermos melhor as escolhas do Governo. O que mostra como é importante um banco central independente e livre, um contributo para uma sociedade plural com capacidade critica. É pena que Mário Centeno só o faça agora, mas antes tarde do que nunca, mesmo que se mobilizado por razões partidárias. É o regresso do Banco de Portugal, porque é também para isso que também tem de servir, para apoiar a comunidade no escrutínio dos eleitos.

P.S. Aqui fica também o elogio ao Presidente da Assembleia da República, pela posição que tomou em defesa da liberdade de expressão. É incompreensível como é que um partido como o PS, uma referência na nossa história no combate pela liberdade e pela democracia, esteja disponível para abrir uma autêntica caixa de Pandora, limitando a liberdade de expressão, que realmente só existe quando se permite que se diga aquilo com que discordamos e até que consideramos, no limite, sem sentido e insultuoso. Se há crime é à Justiça que devemos recorrer.

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