A não ser que Donald Trump volte radicalmente atrás em seu projeto de impor tarifas a meio mundo, o Vale do Silício vai rachar. E feio. Porque a indústria da tecnologia se divide em dois pedaços muito distintos — hardware e software. Isso não mudou nem com a grande onda de inteligência artificial dos últimos dois anos. Sem máquinas não acessamos nenhum programa. Nem o aplicativo da rede social, nem o modelo de IA, nem mesmo o editor de texto mais banal. E máquinas já não são fabricadas nos Estados Unidos faz bastante tempo. Para se ajustar às novas tarifas trumpistas, a Apple precisaria aumentar o preço do iPhone em 40%. Isso quer dizer tirar modelos da faixa US$ 999 e lançá-los para algo próximo dos US$ 1.500. Não é trivial. A alternativa para a companhia é absorver uma queda brutal na margem de lucro.
O caso do iPhone, e da estratégia de negócios da Apple, diz muito sobre o impacto da política econômica do novo governo americano. Trump acredita que trará fábricas de volta aos EUA se tornar o que vem de fora caro. Mas de onde vem um iPhone? O processador é fabricado em Taiwan, o vidro na Coreia do Sul. As lentes e seus sensores são japoneses. O acelerômetro é construído na Alemanha e o giroscópio na Itália. Esses são apenas alguns dos componentes, e aqueles que trazem mais tecnologia. Não entram os lugares que exportam matérias-primas como o lítio das baterias. Um iPhone reúne itens que vêm de, literalmente, todos os continentes.
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Ao morrer, Steve Jobs recomendou que Tim Cook assumisse como CEO da companhia porque sua especialidade é logística. Parece chato; e é. Mas logística é o segredo da Apple: a habilidade de encontrar fabricantes ultraespecializados de pedaços mil, garantir sua capacidade de produzir em quantidade e com qualidade para, no fim, entregar no tempo certo. Navios cruzam os mares diversas vezes para que todas as partes cheguem a tempo a Zhengzhou, a “cidade do iPhone” chinesa, onde quase 90% dos aparelhos são fabricados anualmente. (Exatos 12% são montados na fábrica da Foxconn na Índia.) Porque chegou a um ponto quase perfeito de reunir fornecedores sofisticados e colocá-los numa linha de produção mundial, Cook transformou a Apple numa empresa de US$ 3 trilhões, em constante disputa com a Microsoft pelo posto de mais valiosa companhia do mundo.
Isso é globalização. A globalização não tornou os Estados Unidos mais pobres. O PIB americano saltou de quase US$ 10 trilhões, em 1990, para mais de US$ 22 trilhões, em 2023. O mundo enriqueceu com a globalização. No mesmo 1990, 36% de nós, humanos, éramos miseráveis. Hoje 8,4% população vive abaixo da linha da pobreza. Ao todo, 1,2 bilhão foram tirados da miséria segundo a ONU. A vida de operários piorou, é verdade, e esse é um problema. Aqueles empregos não existem mais e estão diminuindo, só que é mais em razão da automação que da globalização. Isso se resolve com políticas sociais, não interrompendo o comércio global.
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A lógica econômica da Apple não é nova. Foi primeiro desenhada, na virada do século XVIII para o XIX, pelo economista britânico David Ricardo. Para ele, se cada país se especializa no que faz melhor e importa o que não faz tão bem, a qualidade dos produtos acessíveis a todos melhora, e os preços caem. Se Portugal fizer vinhos e vendê-los à Inglaterra, se a Inglaterra fizer tecidos e vendê-los a Portugal, ambos ganham. (Era o exemplo que Ricardo tirava do bolso do colete naquele mundo pré-Napoleão.) Se cada um faz o seu melhor e compra o que não faz tão bem, todos enriquecem. Foi o que aconteceu nas últimas décadas. A desigualdade se acirrou? Verdade. Mas esse é um problema para resolver com política tributária, não abatendo na grosseria o mercado global.
Os Estados Unidos estão há cinco anos tentando botar para funcionar uma fábrica de microchips no Arizona. Está difícil. Os engenheiros sul-coreanos e taiwaneses reclamam que seus pares americanos não têm a disciplina necessária. O problema pode ser esse ou pode ser só preconceito oriental. Não importa. É tecnologia muito sofisticada, e realmente não basta um monte de dinheiro para implementar a coisa. Uma fábrica de iPhones com todos os componentes feitos localmente não brotará no Wisconsin em um ou dois anos. A Apple existe por causa das ideias de Ricardo. O mundo da alta tecnologia, não só dos computadores, está ancorado num planeta aberto.
É esse mundo que Trump quer fechar.
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