‘O Brasil me ajudou a olhar com orgulho a cor da minha pele’, diz artista português Dino D’Santiago

Mas não foi sempre assim. O artista de 42 anos demorou a encontrar sua identidade, a aceitar e incorporar a mistura da qual é fruto. Teve uma educação “branca”. A música foi ponte para a transformação. Quando começou a cantar em crioulo, encontrou a voz que vem do coração. Até então, escrevia suas letras em português, e o canto vinha da razão. Ao assumir seu idioma ancestral, acessou um sentimento que revolucionou sua arte e sua vida. Nesse processo, Criolo, o cantor brasileiro, teve importância crucial.

Dino D’Santiago — Foto: Leo Aversa

Era 2012, o português nem tinha incorporado o “D’Santiago” da ilha cabo-verdiana ao nome e andava desiludido com os 20 anos dedicados ao hip hop sem retorno, dando voz a histórias que não eram a sua. Numa viagem para Cabo Verde, ouviu “Nó na orelha” e se inspirou ao saber que Criolo gravara aquele disco como última tentativa antes de jogar a toalha, mas que acabou por projetá-lo de vez.

Os caminhos dos dois se cruzaram a ponto de gravarem um disco juntos. O álbum, que traz ainda o pianista Amaro de Freitas, sai em março (com arte de Vik Muniz). O trio foi indicado ao Grammy Latino 2024 pela canção “Esperança”. Um segundo projeto está prestes a sair do forno embalado por feats com Rincon Sapiência, Emidica, Luedji Luna, BaianaSystem e Bia Ferreira. Outro marco da relação de Dino com o Brasil. Uma relação regada ainda pela Bahia, onde Dino passou o carnaval no Fundunço e no Navio Pirata do BaianaSystem.

Todas essas referências encorpam o caldo de sua música, que funde o universo do soul, hip-hop com o batuku e o funaná e renova a sonoridade de cabo verde. O artista também foi a grande influência de Madonna por trás do disco “Madame X”. À cantora, ele apresentou a sonoridade lusófona e africana, ensinou línguas, além de ter treinado com ela a parte em português de “Faz Gostoso”, cantada com Anitta, e de ter feito um dueto histórico em “Sodade”, de Cesária Évora, para um Coliseu dos Recreios (Lisboa) lotado.

Uma das principais vozes decoloniais de Portugal, membro da Comissão de Igualdade do Governo contra a Discriminação, eleito pelo jornal Expresso como uma das 50 figuras que podem vir a definir o futuro do país e considerado uma das cem pessoas afrodescendentes mais influentes pela lista Most Influential People of African Descent em 2021, o artista conversou com o GLOBO durante um almoço no Nova Capela, na Lapa.

Dino D'Santiago — Foto: Leo Aversa
Dino D’Santiago — Foto: Leo Aversa

Só encontrou a sua verdade quando incorporou África na música e na vida?

Quando ouvi “Nó na orelha” pensei que Criolo soube ressignificar sua música e tornou-se bem mais do que só hip-hop, tornou-se música do Brasil. E, aí, deu o abraço à minha origem. Não sou só português. Também sou caboverdiano, tenho o direito de misturar esses mundos com legitimidade sem achar que estou me apropriando. Começou aí a minha metamorfose.

Tinha dificuldade em aceitar?

Tinha vergonha de cantar e falar crioulo. A cultura do hip hop é forte, mas foi desvalorizada. Hoje, no Brasil, em Portugal, em Cabo Verde, Angola, Moçambique, Guiné, São Tomé é a expressão artística que voltou a conectar pessoas desses países cantando na língua mãe. Pude contar a minha história através dessa gênese. Materializei no funaná e no batuko, ritmos proibidos pela colonização. Só quando Cabo Verde se tornou independente, se tornaram patrimônio nacional. São ritmos de resistência que transformei no meu hip-hop.

Se achou quando misturou tudo, na diversidade.

Me encontrei e o mundo também. Vieram turnês. Em Nova York, o momento mais transformador. Descobri que quando canto em crioulo, vem da alma. Quando canto em português, minha mente que processa. Como minha criação traz dogmas da igreja, cristalizações e castrações, na língua portuguesa, nunca consegui ser interventivo. Em crioulo, veio tudo. Até amores e desamores que nunca tinha partilhado. Um segurança me disse: “Não entendi nada, mas senti África sem nunca ter ido lá”. E aí decidi honrar, me apropriar do meu direito.

Em “Esperança” você diz: “Vim realizar os sonhos dos meus ancestrais e deixar para trás o pesadelo que os faz”. A fala ancestral vem antes da sua letra? Como é que é trazer tanta gente junto?

O processo foi inverso: eles me deram voz. Quando cheguei a Cabo Verde, tive contato com o que me incomodava na Igreja Católica. Como minha família não entende que não estão representados em nenhuma daquelas imagens? A missa é em português e não em crioulo. Quando saem na rua, se expressam alto. Na igreja, estão num silêncio ensurdecedor. Pesquisei sobre como as matrizes africanas celebram a religião. É com vida, dança, louvor, canto, grito. Quando comecei a cantar em crioulo, diziam: “Esse nasceu no interior de Santiago”. Era só de ouvir meus pais falarem. Minhas mensagens saíram com crioulo antigo. Já não sou a interpretação do Marvin Gaye, nem do Bob Marley. Encontrei a minha voz, meu som. Sou um canal.

Como o diálogo entre os povos que falam português, os diferentes sotaques, linguagens e cadências desaguam na sua música?

Meus pais falam crioulo comigo, respondo em português. Nossa família sempre assistiu às novelas da Globo. Conheço sotaques do Nordeste, Sul… Aqui, tive que falar pausadamente para ser entendido, o que ajudou na minha linguagem. A não ser só um repetidor, a pensar e sentir. Tenho fascínio pelo Brasil, a dança, a musicalidade. Na música, misturo português, crioulo e expressões do quimbundo, de Angola.

O mundo decolonial leva a língua para frente. A maior parte de falantes da língua portuguesa é brasileira, o que modifica a língua o tempo todo. Como vê essa influência? A diversidade da língua é capaz de acabar com a xenofobia?

A diversidade dessa língua é o meu tesouro. Meu superpoder foi entender a verdadeira riqueza que nasce da tragédia. Essa língua chega a esses locais de forma invasiva, corrosiva, desumana. Ao mesmo tempo, deixa uma célula poética nesses lugares, que nunca abdicaram das outras línguas que já existiam, mas perceberam que ela é o nosso maior elo.

No Brasil entendi tudo. Meus livros da diáspora africana foram comprados aqui, autores que nunca foram traduzidos em Portugal. O Brasil valorizava escritores africanos. E em Portugal, não há isso.

Academicamente, o Brasil tem muito mais arquivo do que é uma religião de matriz africana do que o próprio continente africano. Se não fosse a Academia brasileira, talvez, conhecesse ainda menos meu continente. Vivo num país que não edifica a ideia de ser africano. Cresci vangloriando que Portugal e Espanha dominaram o mundo. Era um corpo negro com uma mente branca. O Brasil me ajudou a olhar a cor da minha pele com orgulho.

Mas o racismo aqui é pesado…

A discriminação é evidente, mas o fato de ter tanta gente negra, de origem africana, de povos originários, os obrigou a ter representatividade, mesmo que imposta. Isso nos chegou lá como esperança. A atriz negra no papel principal, o protagonismo no esporte. Tudo isso são bandeiras da cor que foram empoderando o negro que não havia em mim. Minha família dizia: “Dino, não vai tanto à praia para não ficar muito escuro”. Essas coisas vão te poluindo, destruindo a tua identidade. Diziam: “Dino não é um preto como os outros”. Achava um elogio. Sempre que me aproximava intelectualmente ou do comportamento do Ocidente, era considerado menos selvagem.

O perverso apagamento e anulação de uma identidade…

O mais grave é que eu não sentia que estava me anulando. Senti orgulho de ser português, mas sinto mais orgulho do português que estou me tornando, que se apropria da própria história. Ao honrar a minha raiz africana, olho para Portugal de outra forma. E vejo melhor do que nunca, com a quantidade de brasileiros angolanos e cabo-verdianos que estão lá.

Mas a diversidade se expande na mesma medida em que a xenofobia.

A sociedade hierarquiza, há o controle, a dominação através do medo. É mais fácil não valorizar outra cultura para governar na tua. Portugal entende que o Brasil é muito mais poderoso em todos os níveis: da mutação da língua, da continuidade. Acho que Camões está aplaudindo o Brasil, ainda bem que não estamos presos só nos “Os lusíadas”.

Portugal tem medo do Brasil?

Para conservar o seu hipotético poder sobre os países que expressam a língua portuguesa, tenta demonstrar a importância do território e aliança portuguesa nesses lugares. Se olharmos para a história contemporânea, quem conserva e é poder da língua portuguesa no mundo é o Brasil. Ele fez com que língua portuguesa tivesse a relevância que nunca teria se fosse só com os territórios africanos e Portugal, porque seria muito residual a presença.

Só vai ser possível acabar com a xenofobia quando os xenófobos morrerem. Mesmo deixando raízes em seus descendentes, essa ideia vai com ele. E as outras pessoas se vão transformar, perceber que é impossível num mundo como hoje, nessa crioulização. Numa escola há mais de cem nacionalidades. A cultura e a educação portuguesa vai ter que transpor para a forma como ensina essas realidades para começar a haver menos xenofobia. Portugal sempre foi um território aberto, já foi habitado por mais de 16 povos durante milhares de anos. A ideia de ser português é que tem que mudar.

É assim que vê o futuro do país?

Só vejo com a mistura. Portugal só vai se valorizar e se ressignificar na História assumindo que somos mesmo um país de mistura. E não vangloriar a mistura só quando acontece com Celtas, Norte da Europa, vikings, França, Espanha e Inglaterra. As alianças com os territórios africanos, Brasil, Timor, Índia têm de ser canonizadas de forma bela. Quando essas pessoas vão para Portugal, têm de ser recebidas com todo o amor e respeito.

Qualquer português que esteja no Brasil, Cabo Verde, Angola, Moçambique está numa posição de ascendência e conforto. Nunca será miserável. Não vai haver um português caucasiano nesses territórios dormindo na rua ou em posição de submissão. Mas um corpo negro, vai ser miserável em qualquer país.

Fomos obrigados a um acordo ortográfico. Não obrigas que esse acordo te torne esquecido. Portugal está envelhecendo. Quem vai manter a língua daqui a 100 anos? Só penso para frente. Minha história não é de lamento, é de glória, louvor, concretização.

O fato de muita gente do Brasil estar em Portugal vai dar o Portugal que a gente precisa. Nos últimos 10 anos, o Brasil é outro. Nunca as vozes dos povos originários e negros estiveram tão presente. Não há mais vergonha, há orgulho.

A canção “Maria”, que gravou com Emicida, traz a frase ‘lugar de mulher é onde ela quiser’. Há de ser um aliado para ecoar esse pensamento, não é?

Essa música mexeu comigo e reverberou em Portugal. Escolas de dança usaram em coreografias. Quando escrevi, pensei “nem preciso dizer isso”. Mas senti responsabilização de, como homem, aceder esse lugar e dizê-lo. Ressignificar nossas células para alterar. É como uma oração. Quanto mais disser, mais vai sentir. É recodificar, processar e sentir que, realmente, sim. Ainda é preciso dizer até acreditar que é verdade.

Você também é um realizador, está à frente de vários projetos, como o “De dentro para fora”, que vai lançar um disco com canções de internos da prisão do Linhó…

Não reclamo dos governos e da política parado, sou ativo. Tenho exercitado o cidadão que há em mim para compreender meus direitos e deveres. Meu passaporte vale mais que a minha existência. É a mesma coisa da carta da alforria. Posso me deslocar para qualquer parte do mundo porque o passaporte português tem um peso, a minha cor não. Chego nas fronteiras, me pedem mais informação. Minha pele também é um passaporte. Minha cor é a que temem na hora dos assaltos no Brasil.

É diferente a forma como o racismo opera no Brasil e em Portugal?

Completamente. Aqui, se está de chinelo e bermuda e entra em um restaurante, onde é o único negro, é abordado na entrada. Já perguntam o que vai consumir. Tem que puxar o dinheiro e colocar na mesa numa operação grotesca. Em Portugal, é mais sutil. Dizem na loja, “olha, isso custa isso” e você tem que dizer: ‘Sim, mas eu quero experimentar’. Mais do que a cor, o dinheiro consegue-te dar voz. Mas dizer que a sua voz vale é outra coisa. Porque a legitimidade que uma pessoa branca tem… Propus reflexão sobre as palavras bélicas do hino português. Choveu ódio. “Vai escrever o hino da Guiné, de Cabo Verde”, disseram. Um intelectual Miguel Esteves Cardoso (branco) me defendeu e houve um silêncio. Se eu tivesse dito o que ele disse teria sido crucificado.

Você fez um discurso para a Whoopi Goldberg, no Festival de Cinema em Tribeca, que viralizou porque muita gente se sentiu representada. Qual foi a importância daquilo?

Sabia que ela me conhecia pelo trabalho com Madonna, prêmios e todos esses lugares que me vangloriavam. Senti que não era a minha história. Isso é olhar quando o sol bate, mas quando choveu e a árvore teve que cair, ninguém viu. Era o que eu queria passar, porque sei que ela também passou por isso com pele negra e com o corpo que tem. Queria que soubesse minha origem para que percebesse que não importa se está em Portugal, Estados Unidos, Brasil ou África, nossa história é de dor. E de resistência. Contei meu processo de como cresci não me identificando com a minha cor, meu conflito com Jesus Cristo. Reverberou. Há muita gente silenciada ainda. Há mil Dinos em cada esquina de onde vim. Fui um que, talvez, por não reivindicar tanto a minha negritude, consegui espaço. Também por trazer o lado da igreja, acreditar no Somos Todos Irmãos, consegui que meu mundo fosse feito de irmãos.

E, aí, quando você se tocou de quem realmente é, já tinha voz e espaço para trazer toda essa responsabilidade.

Muita. Meu filho é resultado de um negro com uma branca. Me fez olhar ao redor e pensar: “Que lado ele vai escolher? Precisa escolher?”. Ele tem o direito de ser os dois, é a mistura. A alma dele vai escolher um partido. Meu exercício na terapia, foi: “Como posso me deseducar?”. Se lhe der a minha educação, vai ser branco. No máximo, verá pessoas negras e dirá: “Aquela é minha prima”. Não vai querer conhecer África. Vai querer comer bife com ovo. Estamos Portugal. Na escola dele, quase todos são brancos. Essas questões começaram a vir e com elas, a dor. Comecei a me deseducar, silenciar o programado, ser genuíno. Só observo meu filho. Raramente, digo: “Não faças isso”. Não obrigo meu filho a nada. Como me separei da mãe dele, ainda veio o lugar do homem negro que abandona a mulher e os filhos. Toda essa dor que faz voltar lá atrás e pensar: “Durante séculos, homens negros só serviam para acasalar e dar mais filhos para, de repente, o homem branco”.

É muita coisa pra curar, né?

Qual homem negro exercitou o romance de Shakespeare? Nenhum. Que lia romance? Como dar romance a uma pessoa que nasce da pedra, do soco. Uma pessoa que é exercitada na condição de ter família e o sistema colonial a afasta, onde é que está o exercício de família? Há toda uma Europa a crescer em romances, em arte, a se desenvolver e não há uma representatividade negra e a exercitar a questão do amor, porque até lá não se falava de amor. O amor vivia-se de outra forma, ou seja, era a entrega e a devoção. Nunca o trabalho de amor. Temer a Deus, não amar a Deus. Quando nasce a era do amor, mudam as igrejas, começam os vitrais e as luzes, para os negros, só houve sombra. Há muitos pais que perderam, muitas mães solteiras que ficam em Cabo Verde com filhos e os maridos foram e não voltaram mais. Existe muito esse trauma, mesmo em África, quase como que o homem negro não sabe ser romântico. Eu sou muito romântico. Mas tenho a noção que também sou muito romântico porque precisei de sobreviver. As novelas alimentaram aqueles sonhos. Desenhar, ver ilustração. Vivi muito no mundo imaginário. Para não sentir a dor da minha realidade.

Muitas camadas de traumas…

Bia Ferreira, quando assistiu ao meu concerto, disse: “Nunca pensei ver tanta gente branca cantar em crioulo”. Um afro-brasileiro e um afro-europeu têm histórias distintas. Há menos trauma. Vocês nascem no território europeu e sabem que sou europeu. Eu não estou pensando que sou preto. Eu já nasço com essa propriedade. Minhas conquistas vêm desse lugar. Tipo, me assumo e não deixo que ninguém me pise. No sentido de, por ser negro, não vou entrar aqui. É o oposto. Sei que este é o meu espaço. Sei que posso dizer o que precisar dizer porque não te vou ofender, mas não vou deixar que tu me pises. Comecei a trabalhar aos 13 anos, servia mesas em restaurante. Crianças tocavam o dedo na pele para ver se a cor saía. Eu percebia. Mas se alguém vomitava e falavam “Dino, vai limpar”. Não limpo. Diziam: “Preto com capricho?” Ouvi essas coisas. Tirei a minha roupa e tchau. Nem quis ir receber meu dinheiro. Minha mãe também é assim. Por nenhum motivo, ia jogar futebol, e ouvia “preto filho da puta, vai pra tua terra”. Eu levava aquilo na esportiva. Mas quando cresci, entendi: “Poderia me chamar só filho da puta, mas traz a cor”. Nunca vou poder competir nessa desumanização. Crescia levando paulada, e o corpo ficou casca grossa que aquelas pauladas. Na terapia, as palavras começaram a ter muita força.

E o corpo armazena também.

Foi a partir daí que a questão do hino veio. Quando vi minha sobrinha, gritar “as armas”, falei: “Sabe o que é uma arma? Um canhão?”. Pensei: “Não vou mais cantar essa parte”. Quando me convidaram para cantar o hino no MOTOGP, pedi para trocar para “com amor, marchar, marchar”. Mas alterar o hino pode dar condenação. Passei a silenciar as partes com que não me identifico. E isso mexe com o teu corpo. Minha missão não é julgar, mas criar um novo hino. Nossos corpos também são pátria (diz uma canção que compôs). Cada canção é um hino. Vão ser milhares de pessoas a cantar. Em vez de tentar apagar o passado, é construir um futuro em que está tudo certo. E tu constróis o futuro no presente. Ele não existe, é uma utopia. Não posso apagar o passado, mas consigo desenhar um novo passado. A música que eu fiz hoje, amanhã já é passado. E já desenhei um novo passado. Então é sobre isso.

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