Um tipo de coronavírus diferente das linhagens já conhecidas, inclusive da que causou a pandemia da Covid-19, foi descoberto pela primeira vez após análises laboratoriais de um morcego capturado no Ceará. A conclusão faz parte de um estudo publicado em janeiro deste ano no periódico Journal of Medical Virology, que traz artigos científicos sobre vírus que podem afetar humanos.
O trabalho identificou sete coronavírus (CoVs) distintos em morcegos, incluindo um “intimamente relacionado” ao causador da MERS – doença respiratória viral que matou mais de 900 pessoas em diversos países, desde 2012 –, com 82,8% de cobertura genômica. Para a análise, foram aplicados ensaios moleculares, sequenciamento de RNA e análise evolutiva.
A projeção revelou “altas similaridades” com cepas de CoV relacionadas ao MERS encontradas em humanos e camelos. Além disso, análises da proteína spike do vírus indicaram a presença de resíduos que podem interagir com o receptor DPP4, o mesmo utilizado pelo MERS-CoV para entrar nas células humanas.
“Essas descobertas destacam a extensa diversidade genética de CoVs, a presença de novas linhagens virais e a ocorrência de eventos de recombinação entre CoVs de morcegos que circulam no Brasil, ressaltando o papel crítico que os morcegos desempenham como reservatórios de vírus emergentes e enfatizando a necessidade de vigilância contínua para monitorar os riscos à saúde pública”, aponta o estudo.
A pesquisa teve colaboração da médica veterinária Larissa Leão Ferrer de Sousa, que conversou com o Diário do Nordeste. Ela é especialista em Vigilância Sanitária, mestre em Saúde Pública e responsável pelo diagnóstico da raiva no Laboratório Central de Saúde Pública do Ceará (Lacen-CE).
A investigação ocorreu em parceria com a Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM-Unifesp), liderada pelo professor Dr. Ricardo Durães-Carvalho e a aluna de doutorado Bruna Stefanie Silvério, dentro da rede de vigilância laboratorial da raiva.
Segundo Larissa, o processo já faz parte de uma rotina de diagnóstico dessa doença para morcegos e outros mamíferos. As amostras para análise são enviadas pelos municípios do Estado do Ceará a fim de investigar a circulação de outros agentes virais com potencial zoonótico em morcegos.
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De onde são esses morcegos?
Larissa Leão explica que a coleta dos espécimes foi realizado nos anos de 2022 e 2023. Ao todo, foram analisadas 423 amostras de swabs orais e retais de 16 espécies distintas de morcegos, coletadas em vários locais do Ceará.
Os espécimes que testaram positivo para coronavírus foram capturados nos municípios de Pindoretama, Iracema e Sobral, pertencendo às espécies Molossus molossus (insetívoro) e Artibeus lituratus (frugívoro, se alimenta de frutos). Eles não são hematófagos, ou seja, não se alimentam de sangue.
Segundo Larissa, o coronavírus semelhante ao MERS foi encontrado em um morcego da espécie Molossus molossus.
“As análises genômicas revelaram que ele compartilha uma história evolutiva com o MERS-CoV, sugerindo que vírus dessa linhagem circulam na América do Sul”, destaca.
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Foto:
Morcegos são catalogados e estudados em monitoramento do vírus da raiva
Larissa Leão Ferrer de Sousa
Humanos podem ser infectados?
Mesmo com o esforço dos cientistas, não foi possível obter o genoma completo do vírus, o que impede qualquer afirmação de que ele possa causar infecções em humanos.
“Apesar de apresentar semelhanças com o MERS-CoV, sua identidade genômica foi de apenas 71,9%, o que indica que se trata de um vírus relacionado, mas distinto. Dessa forma, não há evidências para afirmar que esse coronavírus seja o mesmo que causou o surto de 2012”, afirma a pesquisadora.
Para confirmar essa hipótese, serão necessários testes laboratoriais, incluindo ensaios de ligação ao receptor e estudos em cultura celular.
Esses experimentos devem ocorrer ainda este ano, projeta ela, na Escola de Saúde Pública da Universidade de Hong Kong, sob liderança do professor Leo Poon, virologista reconhecido internacionalmente por pesquisas sobre coronavírus e outros vírus respiratórios há mais de 20 anos.
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O que é o coronavírus?
Segundo informe técnico do Ministério da Saúde, o coronavírus (CoV) faz parte de uma grande família viral, conhecida desde meados dos anos 1960, que causa infecções respiratórias em seres humanos e em animais.
Geralmente, infecções por coronavírus causam doenças respiratórias leves ou moderadas. Porém, alguns coronavírus podem causar síndromes respiratórias graves, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG), ou SARS, na sigla em inglês.
O que é MERS?
O mesmo documento explica que os primeiros casos de SARS associadas ao coronavírus (SARS-CoV) foram relatados na China, em 2002, e se disseminaram para mais de 12 países na América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia, infectando mais de 8 mil pessoas.
Já em abril de 2012, foi isolado outro coronavírus, distinto do que causou a SARS-CoV. Ele foi identificado inicialmente na Arábia Saudita e, depois, em outros países do Oriente Médio, na Europa e na África, totalizando 27 nações.
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mortes foram provocadas pela infecção ou complicações do MERS, conforme a Organização Mundial da Saúde (OMS), até maio de 2024. Ao todo, foram registrados 2.614 casos no mesmo período.
Devido à localização dos casos, a doença passou a ser designada como Síndrome Respiratória do Oriente Médio, ou MERS, sigla em inglês para “Middle East Respiratory Syndrome”.
Legenda:
Foto:
Imagem colorizada mostrando partículas do coronavírus causador da Síndrome Respiratória do Oriente Médio, que foi identificado em 2012
National Institute of Allergy and Infectious Diseases/NIAID
Segundo o Ministério da Saúde, além de em humanos, o MERS-CoV já foi isolado de camelos no Catar, Egito e Arábia Saudita, e de morcegos na Arábia Saudita.
Por fim, o SARS-CoV-2 foi um coronavírus identificado pela primeira vez em Wuhan, na China, no final de 2019. Ele foi a causa da Covid-19, que se espalhou por todo o mundo e matou milhões de pessoas.
É preciso ter medo dos morcegos?
Embora sejam reservatórios de vírus, a médica veterinária Larissa Leão ressalta que os morcegos desempenham papeis essenciais nos ecossistemas, como controle de insetos, polinização e dispersão de sementes. Por isso, eles não devem ser caçados nem mortos.
Eliminar morcegos pode aumentar o risco de contato humano com outros animais infectados e até favorecer a dispersão viral.
Por isso, o controle deve focar na vigilância epidemiológica com abordagem genômica através do monitoramento viral. É preciso ficar atento a mudanças de comportamento dos animais caso eles apareçam próximos a residências.
“Por exemplo, se o morcego, um animal de hábito noturno, aparece de dia e com dificuldade de locomoção, a gente indica que a população entre em contato com os serviços de vigilância e controle de zoonoses do município”, recomenda.
A pesquisadora reforça que os animais silvestres vivem no habitat deles, então é preciso fortalecer a conscientização da população sobre a importância dos morcegos na natureza e formas seguras de convivência com a fauna nativa.
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