Novo papa não trará ‘retrocesso’ e tráfico é a ‘guerra’ da América do Sul, diz cardeal da CNBB

Foto: Thiago Leon/Santuário Nacional

Jaime SpenglerCardeal-arcebispo de Porto Alegre

O cardeal-arcebispo de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, estava exausto. Passara o dia em meio a conversas em Roma e tinha pouco mais de 15 minutos para conversar com o Estadão na noite de sexta-feira, 25. Um dos sete brasileiros que vão participar do conclave que escolherá o futuro papa começou explicando as mudanças na governança, prestação de contas e transparência na Igreja segundo o que ficou expresso no documento do recente Sínodo dos Bispos. O franciscano Spengler passou a tratar do meio ambiente, do acolhimento aos pobres e perseguidos e da paz, temas que marcaram o pontificado do papa chamado Francisco.

Foi ali que revelou a principal preocupação atual dos bispos do cone sul: o narcotráfico, que ele vê como uma “guerra” enfrentada nas ruas, mesmo nas cidades do interior. “É impressionante: a sociedade vive com medo.” E lançou uma advertência: não é cristão um governo se recusar a acolher refugiados, como nicaraguenses, venezuelanos e haitianos. Os 15 minutos se transformaram em 50.

O cardeal-arcebispo de Porto Alegre, dom Jaime Spengler, em encontro com o papa Francsico Foto: Vatican Media – 13/01/22

Aqui está a entrevista do cardeal de 64 anos, nascido em Gaspar (SC), que preside a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e o Conselho Episcopal Latino-Americano e Caribenho (Celam).

O documento do Sínodo dos Bispos, de outubro de 2024, do qual o senhor participou, traz questões importantes para o futuro da Igreja, como a questão da sinodalidade (governança participativa) da Igreja. Ele trata desde o papel do papa até chegar ao dos leigos…

Sim, envolve toda a comunidade eclesial.

Há um capítulo próprio para a questão da transparência, da prestação de contas, da valorização, isso tudo dentro do processo decisório das coisas da Igreja. Como é que isso está se manifestando nas diversas dioceses?

Várias dessas indicações que nasceram ou que estão elaboradas ou apresentadas no documento final do sínodo são uma realidade em muitos espaços da igreja latino-americana. O continente americano tem uma prática eclesial já bastante avançada. Nesse sentido, o sínodo não traz grandes novidades para nossa realidade. Quando falamos de prestação de contas, usualmente relacionamos somente à questão financeira. É um aspecto, mas, quando o Sínodo trata dessa questão, está relacionado a tudo o que envolve a vida eclesial. Também na parte do que chamamos pastoral. Na linguagem da sociedade em geral, a gente poderia dizer revisão, feedback. Existe uma proposta, linha de ação, ao longo da aplicação e da vivência, quando, constantemente, somos chamados a fazer uma avaliação, revisão, e, se for o caso, correção de rota. Nisso se expressa também a prestação de contas. É verdade que também está relacionada à questão econômica. Ou, se quisermos, a administração dos bens, o que já é exigência do direito canônico: que toda diocese, toda paróquia, tenha o seu Conselho de Pastoral, formado de leigos, pessoas que participam da comunidade. Chamamos, no Sul, onde estou, Conselho de Assuntos Econômicos. O bispo ou o pároco não é senhor absoluto da sua comunidade ou diocese. Está ali a serviço da comunidade e, na medida em que desenvolve a atuação que lhe é própria, deve prestar contas à comunidade também.

O parágrafo 134 do documento do Sínodo fala sobre redefinir o que é assunto ‘reservado ao papa’ e os temas que podem ser ‘restituídos’ aos bispos. Qual seria o alcance efetivo disso? E como isso pode se projetar sobre o próximo papado?

Resumiria em uma palavra. Descentralização. Sem esquecer o princípio da corresponsabilidade. Essa corresponsabilidade dá base para a autoridade maior, mas também dá autoridade maior em relação à base. No sentido de tornar a comunidade, local ou diocesana, em termos universais, corresponsável pela condução da vida ordinária da Igreja.

Isso pode afetar, por exemplo, questões como a das igrejas do rito oriental, de não ser preciso nenhuma prévia autorização para a consagração de homens casados?

Temos uma distinção entre aquilo que, dizemos, é a constituição hierárquica da igreja e a questão comunitária. Existem aspectos, a partir da compreensão hierárquica da Igreja, em que sempre necessitaremos da – deixa escolher bem o termo– da licença…. E existem, nesse âmbito da corresponsabilidade e descentralização, pontos que você não precisa recorrer à autoridade maior. Por exemplo: questões do aspecto econômico. Uma paróquia, para empenhar determinado valor X, não precisa recorrer ao bispo. Mas passando de uma faixa (de valor), precisa recorrer ao bispo. O mesmo vale da diocese em relação à Santa Sé. Depois, a questão de homens casados serem acolhidos para o exercício do ministério presbiteral. Isso, em princípio, é uma lei positiva da Igreja, faz parte da disciplina da Igreja, não é um princípio, que é parte da Revelação. Em qualquer momento da história, talvez, o papa poderia suprimir esse princípio. O papa Francisco, em mais de um momento, disse que não trataria dessa questão. Temos na igreja latina e também nas igrejas orientais, nas quais homens casados participam. Eu mesmo, na diocese, tenho uns 70, 80 homens casados – com família, emprego, carreira – e são diáconos.

Conclave: Como é eleito o novo papa? Quem são os cotados para suceder Francisco?

Dos 135 votantes, 108 foram escolhidos durante o papado de Francisco. Veja como é o processo da eleição.

Se for explicar a um leigo a diferença entre o diácono e o padre: quais sacramentos o diácono pode celebrar?

O diácono, em primeiro lugar, é o ministro da caridade. Pode celebrar o batismo e abençoar matrimônios. Pode realizar o ritual de exéquias. Basicamente. Exéquias não é um sacramento. Batismo e matrimônio são sacramentos. No sacramento do matrimônio, quem o celebra são os nubentes; o ministro ordenado, seja ele papa, cardeal, bispo, presbítero ou diácono, abençoa o matrimônio. O ideal é que seja sempre um ministro ordenado. Mas, em algumas realidades eclesiais, há leigos que presidem a celebração do matrimônio onde falta o ministro ordenado. Isso é comum no contexto latino-americano e brasileiro, sobretudo, nas regiões carentes de clero.

Outra coisa que me pareceu importante nessa parte do documento é a preocupação com a unidade da igreja. Isso é real?

É, a ideia da sinodalidade é uma forma de tentar garantir essa unidade. Até diria mais um pouquinho: o grande tema de todo o Sínodo foi a comunhão na igreja. A unidade da igreja, se quisermos. E o próprio termo sínodo é uma palavra que vem do grego. Acertar o passo, caminhar em sintonia ou, se quiser uma tradução: caminhar juntos. Isso começou lá em 2021, logo depois da crise da covid, e teve um alcance que, talvez, nunca teve na história da Igreja. Qualquer pessoa podia participar.

Nem mesmo em (no Concílio de) Niceia (realizado pela Igreja Católica em 325)?

Uma abrangência como essa nunca tivemos na história. Foi, talvez, o maior processo de escuta do povo em geral, não só ao católico. Toda pessoa que se dispusesse a participar dos espaços onde essa consulta foi apresentada podia livremente participar. Extraordinário, muito bonito. O coração da sinodalidade é a questão da conversão, que se desdobra em três aspectos: conversão das relações, conversão dos processos e conversão dos vínculos.

Conversão também internamente?

Quando falamos da conversão das relações é em uma pluralidade dos contextos, não só internamente. O papa Francisco tinha um conceito interessante. Ele falava que devíamos construir pontes. Não só internamente, mas com a sociedade como um todo. Na época do sínodo, todas essas questões delicadas – eu diria, polêmicas – vieram de forma bastante intensa. E aí você citou uma delas (padres casados), mas temos outras, como o papel das mulheres.

Caedeal será um dos sete brasileiros que vão participar do conclave que escolherá o futuro papa Foto: Reprodução/CNBB

O papel das mulheres, por exemplo, a questão de se ter ou não diaconisas?

Por exemplo. Foram criados 12 grupos de trabalho para tratar desses aspectos correlatos, mas que não estavam propriamente no centro do debate. Esse grupos de trabalho criados no ano passado devem apresentar em junho ou julho o resultado do seu trabalho em cada um desses 12 temas propostos. Estamos no aguardo do resultado do trabalho desse grupos para, depois, ver como podemos avançar.

Significa que o novo papa deve receber o resultado desses grupos de trabalho?

Exato.

Como é que o sínodo, convocado pelo papa Francisco, que tinha também uma visão particular da Igreja, se projeta sobre o novo papado?

Tem um pressuposto que temos de ter presente: o futuro a Deus pertence. Impossível prever, né? Também é verdade que há um, dois meses, veio um documento, propondo um caminho até 2028 a respeito desse processo, iniciado lá em 2021. Temos etapas pela frente, em termos de implementação. Lá na frente se projeta um reencontro de todos estes que participaram das duas sessões do Sínodo para um processo de avaliação do caminho realizado.

Seria um novo sínodo?

Não estamos dizendo um novo sínodo; usamos a expressão ‘avaliação do caminho realizado’ até então, a partir das indicações deste sínodo. Em outras palavras, talvez mais simples, o sínodo está começando agora, viu?

E essa é uma realidade que seja qual for a o nome que saia do conclave não mudará?

Creio que é o caminho. Um retrocesso seria impensável.

Queria tratar de algumas questões que, normalmente, os jornalistas tratam mais com o senhor, como a questão da pastoral do papa Francisco, em relação aos divorciados, ao público LGBT, que devem estar presentes na cabeça de todos os que estiverem na Capela Sistina daqui uns dias. Há possibilidade de a marca de acolhimento de Francisco estar ausente de um futuro papa?

Diria justamente o contrário. Se partimos do Evangelho, Jesus acolhia a todos que Dele se aproximavam; todos que vinham eram acolhidos. Mas não era uma acolhida passiva, uma espécie de ‘vem aqui’. Ele também apresentava a proposta Dele. E cada um era convidado a corresponder à proposta. A questão da mulher encontrada em adultério. Jesus acolhe. Mas qual a palavra final? Não continue nesta vida. Aqui vem o desafio. Também, junto com esta passagem, recorri a outra. O que ele diz daqueles que se consideravam o suprassumo do comportamento moral? Quem dentro de volta está sem pecado atire a primeira pedra. Aqui há um desafio enorme. Entra todo o discurso, eu diria, da misericórdia, da compaixão, sem esquecer a exigência, que, segundo Jesus, é própria de um discípulo, de uma discípula.

Quem está fora da Igreja muitas vezes pensa que a Igreja deve dar um passo em direção a ela, mas não pensa em dar um passo em direção à Igreja? Seria isso?

Eu não diria nem tanto a igreja. É a mensagem que a Igreja conserva e promove. A igreja não é ONG, né? O papa repetiu isso muitas vezes. Também não é uma simples associação de pessoas. É muito mais do que isso. É uma comunidade de fé.

Outro tema importante, não só para a América Latina, é o meio ambiente. O senhor, que é franciscano, acredita que a ênfase do atual papado em questões como o meio ambiente, a pobreza e a paz serão mantidas?

Esses três pontos fazem parte do tesouro da experiência da fé. Parto de uma expressão simples que está no início da Sagrada Escritura. Quando Deus termina a criação, viu não só que tudo era bom, mas era muito bom. E essa bondade presente em cada coisa, somos chamados a descobrir. Temos o dever e a missão de trabalhar em prol do cuidado e da promoção do bem-estar. Em alguns setores, às vezes há empenho até vigoroso em torno desta dimensão, desse aspecto da vida social, mais por medo de, talvez, um dia morrermos atolados no lixo que produzimos do que propriamente pela beleza, pela dignidade da obra da Criação. E nós, na liturgia católica, até na na oração eucarística, temos uma expressão bonita que fala da beleza de todas as coisas criadas. E essa beleza somos chamados a respeitar. Até a questão da paz está relacionada com o meio ambiente. Creio que muitas das situações conflitivas mundo afora acontecem por interesses, exploração de aspectos do meio ambiente. Temos a mineração, por exemplo. No Brasil, a situação da mineração em várias regiões, o que que está por trás? São interesses. Diria que são questões correlatas. Não se pode pensar na questão da paz sem considerar o meio ambiente.

Como a Igreja acompanha o sofrimento das comunidades cristãs no Oriente Médio? Isso mobiliza a cristandade em defesa da paz?

Não temos outro líder político no nosso contexto, ao menos ocidental, que tenha tratado tanto da questão da paz quanto o papa Francisco nesses anos todos. Até mereceria um levantamento estatístico. Sugiro fazer levantamento das manifestações dele a cada domingo, na oração do Angelus. Nesses anos todos, em poucos domingos, ele não abordou a questão da paz, tocando numa ou noutra realidade conflitiva. Depois, falando desse conflito específico, diria que toda forma de fundamentalismo, terrorismo, não leva a lugar nenhum. Todos os radicalismos, fundamentalismos e terrorismos não levam a lugar nenhum. Quem acaba pagando a conta são os mais pobres. É o que estamos assistindo. Temos hoje, se não me engano, 59 conflitos armados mundo afora. Usualmente se fala muito da Ucrânia e da Palestina e se esquece o resto, até porque os outros, no contexto geopolítico internacional, são em regiões que não suscitam a atenção, seja da indústria ou do mundo financeiro.

Acredita que os brasileiros compreendem essa realidade?

Diria assim: nós do Brasil vivemos uma, eu chamo, uma guerra branca. Aqui me refiro ao narcotráfico, às nossas vilas, bairros. É impressionante: a sociedade vive com medo. Mesmo nas cidades mais interioranas o tráfico já está inserido no contexto no tecido social. É um aspecto tão grave e falta aqui, talvez, vontade política e capacidade, até política, para enfrentar a situação. E creio que as forças obscuras deste mundo já chegaram a ambientes da política e, por que não dizer, do Judiciário.

O senhor acredita que o narcotráfico impõe esse drama não só ao Brasil, mas a diversas outras comunidades da América Latina?

Estive recentemente num encontro do Cone Sul (da Celam), em Buenos Aires, e fazendo uma espécie de levantamento das coisas que promovem alegria, mas também preocupação nos países que compõem o cone sul – Paraguai, Argentina, Uruguai –, o tema que preocupa a todos é o narcotráfico. Aparece em primeiro lugar.

O senhor acredita que isso preocupa até mais do que a questão da imigração?

A imigração tem, na base, o radicalismo político. Temos a situação na América Latina, da Nicarágua, bem conhecida; o Haiti, abandonado pela comunidade internacional. E ali se tem uma tragédia humanitária. E, respeitadas as proporções, algo semelhante também na Venezuela, onde há o grande fluxo migratório em direção ao Brasil. Depois, é um dever cristão…

É dever cristão acolher essas pessoas que saíram de lugares onde viviam suas aflições e perseguição? Seria um dever cristão, principalmente, dos governantes, acolher em vez de rejeitar essas pessoas?

Basta recordar o que diz o capítulo 25 do Evangelho de São Mateus. Estava com fome e me deste de comer; estava nu e me vestiste. Era migrante, refugiado, me acolheste. Aqui já está a resposta completa.

Como será o futuro da Igreja nesse mundo cada vez mais cheio de muros e não de pontes, também com inteligência artificial, redes sociais, onde todos se acham cheios de opinião? Há muita ’doxa’ (opinião) no mundo? Como a Igreja vai se relacionar com esse mundo?

Duas palavras: fidelidade ao Evangelho. E, sem esta fidelidade ao Evangelho de Jesus, temos dificuldade de compreender o que é essencial da mensagem cristã e no que somos desafiados para corresponder a esse essencial. Se quisermos promover a vida comunitária, precisamos do Evangelho. Em Porto Alegre, temos o Instituto do Cérebro, ligado à Pontifícia Universidade Católica, a PUC. É considerado o maior instituto de estudos do cérebro humano de toda América Latina. Tempos atrás, o diretor do instituto, um homem com quem gosto muito de dialogar, de ciência, me dizia o seguinte: o jovem na faixa até 17, 18 anos possui outra lógica mental. Se você encontra um garoto, uma menina, dos 8, 10, 12 anos, a estrutura lógica mental deles é diversa. Nós mesmos temos dificuldade, às vezes, de interagir e compreender a dinâmica da gurizada. Entra no que você dizia: inteligência artificial e todos os avanços da tecnologia. É muito bonito de um lado. Temos de ter atenção, pois somos um pouco pessimistas, ácidos, mas isso tudo é fruto da construção do engenho humano. Um grande desafio pela frente é a transmissão da mensagem às novas gerações com linguagem e metodologia aptas a atingir este público.

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