‘No Uruguai, ainda há negacionismo sobre a ditadura’, afirma ministra da Defesa do país

Quando assumiu o comando do Ministério da Defesa, em 1º de março, a ex-senadora uruguaia Sandra Lazo encerrou seu discurso deixando claro que uma de suas principais referências políticas era o ex-presidente José “Pepe” Mujica. A nova ministra, a segunda a ocupar cargo num governo de esquerda (a primeira foi Azucena Berrutti, entre 2005 e 2010), falava sobre questões pendentes herdadas da última ditadura (1973-1985), entre elas a entrega por parte dos militares de informações sobre onde foram enterrados presos políticos assassinados durante os anos de chumbo. Para Lazo, como disse Mujica reiteradas vezes, é preciso saber a verdade para virar essa página nefasta da História uruguaia, e para que muitas famílias possam, finalmente, estar em paz.

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Agora, como ministra, pretende buscar caminhos para que os militares finalmente digam tudo o que sabem. A ministra, que foi jornalista e é uma elogiada cantora de tangos, recebeu O GLOBO em sua sala do Ministério da Defesa, em Montevidéu. “Pepe se reciclou depois de viver [na prisão] nas piores condições em que pode viver um ser humano. Isso ninguém pode discutir, embora ainda exista negacionismo sobre a ditadura no Uruguai”, enfatizou Lazo.

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como a senhora acredita que a morte de Mujica impactará na política uruguaia?

Ainda estamos processando. Não deveríamos estar chocados, porque era esperado. Mas, quando acontece, o impacto é grande. Nos últimos 30 anos, Mujica foi uma figura de consensos e de diálogos. Uma figura que dissesse o que dissesse, sempre gerava um movimento político. Era uma referência ética, porque se reciclou como ser humano. Não podemos esquecer que ele vinha das lutas históricas dos anos 60, da guerrilha dos Tupamaros. Pepe se reciclou depois de viver [na prisão] nas piores condições em que pode viver um ser humano. Isso ninguém pode discutir, embora ainda exista negacionismo sobre a ditadura no Uruguai

Ainda existem muitos uruguaios que negam o que aconteceu durante a ditadura?

Inclusive com a desclassificação de documentos feita pela própria CIA (agência de inteligência americana), dos ossos [restos de desaparecidos] que vão aparecendo, e dos depoimentos de centenas de ex-presos, há negacionismo. Uma pessoa [em referência a Mujica] que supostamente cometeu um crime deve ter todas as condições para sua defesa, não as teve. E ainda esteve nas piores condições possíveis. Saiu de tudo isso com um discurso absolutamente despojado de rancor, pensando em construir a partir da política, ajudar os mais humildes. Eu estava em Berlim quando soube de sua morte, num evento da ONU. No voo de volta, um tripulante se aproximou e me disse: “Nunca deixem de ser como são, de viajar como todo mundo viaja. Vocês são um exemplo de ética na política.” Isso era o Pepe. Isso foi o que ele projetou no mundo. Também a defesa de um sistema republicano sólido, no qual as pessoas acreditam nas instituições. Pepe convencia por suas próprias atitudes, seu modo de vida.

Uruguaios marcham em memória dos mortos e desaparecidos na ditadura, na chamada Marcha do Silêncio — Foto: Dante FERNANDEZ / AFP
Uruguaios marcham em memória dos mortos e desaparecidos na ditadura, na chamada Marcha do Silêncio — Foto: Dante FERNANDEZ / AFP

Em seu discurso de posse, a senhora mencionou Mujica e a dívida pendente dos militares, que até hoje não entregaram informações sobre onde foram enterrados os presos políticos que morreram na ditadura. Na véspera da morte do ex-presidente, três militares reformados foram presos, acusados de violações dos direitos humanos. Existe expectativa de que algum dia digam o que sabem?

As buscas [dos restos dos desaparecidos] continuam sendo feitas. O Ministério da Defesa tem de ser uma ferramenta para chegar à verdade. Existem diferentes linhas de trabalho. Em minha posse, estavam presentes associações de familiares de desaparecidos. Vamos colaborar com a Justiça, quando nos for solicitado. Quando as associações nos pedem alguma coisa, damos uma resposta imediata.

Os militares que poderiam ter informações já são idosos…

Estou convencida de que estes cinco anos de mandato presidencial [de Yamandú Orsi] são uma das últimas oportunidades que temos de que essa voz [a dos militares] seja ouvida. Sem essa voz, a verdade se saberá, mas será de forma mais lenta. Os militares que disseram que não sabiam de nada, até agora, mentiram. Alguns civis também. Nós tivemos uma ditadura cívico-militar. Temos de encontrar um mecanismo, que sabemos como não deve ser. Não deve ser como o que eles fizeram. Jamais usaríamos os mesmos métodos. Nós acreditamos no Estado de Direito. Os que estão presos por crimes de lesa-Humanidade têm todas as garantias, acesso a advogados, familiares. Como corresponde. Eu pergunto sempre quais são as condições sanitárias em que essas pessoas estão presas, se recebem boa alimentação, porque esse é seu direito.

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Existe um pacto de silêncio entre os militares?

Poderia haver, mas vejo mudança. Vejo as novas gerações mudando porque, de alguma forma, não querem carregar um peso que não lhes pertence. Aí está depositada nossa esperança, nos que hoje abraçam dignamente a carreira militar.

O Brasil sofreu uma tentativa de golpe em 2023, e o governo argentino de Javier Milei nega o golpe militar de 76 e fala em guerra, não em ditadura. Como a senhora avalia a situação em relação aos militares nesses dois países vizinhos?

Em 2022 estive no Brasil e quase perdi meu voo de volta por conta das manifestações dos que não aceitaram o resultado da eleição presidencial daquele ano. A direita internacional está investindo uma enorme quantidade de dinheiro para evitar a autodeterminação dos povos. O que acontece na Argentina deve nos fazer pensar em como deve ser sustentada uma democracia. Cuidar da democracia é saber que temos gente do outro lado que pensa diferente, mas que sempre é bom dialogar para ver que pontos de contato podemos ter e não estar em uma guerra permanente.

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O mundo militar é, em geral, machista. Como tem sido tratada pelos subordinados?

É um mundo machista, sim, absolutamente. Pelo menos masculinizado. Recebi mensagens que mandavam em grupos de WhatsApp e falavam sobre meu aspecto físico, se estava mais ou menos gorda, se devia mudar minha alimentação, fazer exercício. Não se debatia uma ideia, falava-se sobre mim. Vivo uma vida muito feliz, com altos e baixos, mas tenho um pensamento sólido. Tudo isso me pareceu insólito.

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