Num artigo de opinião publicado no Santiago Magazine, Eleutério Afonso, Professor e co-criador do programa do 10º ano de língua cabo-verdiana, defende que a língua cabo-verdiana, o berdianu, como o autor a designa, não está em processo de padronização, mas sim de didactização e tece críticas à forma como o processo de ensino da língua cabo-verdiana tem vindo a ser conduzido. O escritor e ensaísta José Luís Hopffer Almada fala em “aberração linguística”.
Para este professor, que está a desenvolver a sua tese de doutoramento em linguística pela Universidade de Santiago de Compostela, o manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana que está a ser utilizado nas aulas do 10º ano de escolaridade e que está disponível online “apresenta, em boa medida, aquilo que foi o programa do 10º ano proposto em 2022 pelos especialistas que nele trabalharam”.
No entanto, este especialista defende que há a possibilidade de que o manual “possa estar com excesso de conteúdos” resultado “da densidade do próprio programa que, por ser experimental, teria de ser reduzido, caso esse excesso se confirmasse junto às turmas de experimentação”.
“Esse re-doseamento de conteúdos não chegou a ser feito pois, o Ministério da Educação não organizou para que os especialistas seguissem o processo da experimentação”, acrescenta.
Eleutério Afonso defende no mesmo artigo que actualmente “era suposto estar a ocorrer, tão simplesmente, experimentação de um programa de uma disciplina que nunca existiu antes. Os dados a serem experimentados são muitos, mas não incluem, por mais urgente que possa parecer, a experimentação de um novo sistema de escrita”.
Defendendo que a criação da disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana “obedece a valores plasmados na sua finalidade”, Eleutério Afonso refere que há a necessidade de destacar o que diz serem “as suas nuances mais importantes” por forma a esclarecer a sociedade: “A desocultação da língua em todas as suas variedades. Tal desiderato não se realiza com a apresentação de uma escrita que, oculta em vez de aumentar a familiaridade dos alunos com a diversidade de sua língua; Desmistificar preconceitos, promovendo a compreensão interdialectal; e Apresentar a língua ensinando as regras e suas variações favorecendo uma padronização participada e consensual. Este valor está sendo violado flagrantemente, pois, a escrita já apresenta uma variedade padrão forjada pelo Ministério da Educação, cujo Ministro já tinha dito na Televisão de Cabo Verde (TCV), por ocasião da abertura do ano Lectivo 2022/2023, que não se vai colocar em causa nenhuma variedade e que os objectivos de padronização não são imediatos”.
O autor do artigo defende mesmo que “o programa manda ensinar todas as variedades no sentido de formar a sociedade para que ela venha a participar desse processo, de um modo mais democrático, em lugar de uma abordagem de cima para baixo como acabou de ser feita nesse manual”.
“Violação dos valores da democracia”
Eleutério Afonso, no artigo publicado no Santiago Magazine, defende mesmo que “a escrita pandialetal se mostra inoportuna e inadequada” e acrescenta que a mesma “viola, de modo sorrateiro, os valores de democracia e participação plasmados na Constituição e demais leis da República (Decreto-Lei n.º 28/2022 , art.º 15.º, que cria a disciplina), principalmente nos valores e princípios de base da criação da disciplina, e, ainda, o processo de didatização de um conteúdo nunca dantes constituído em formato de disciplina, processo cujos princípios científicos precisam ser observados”.
No entender de Eleutério Afonso, a fase actual do ensino da língua cabo-verdiana devia “propugnar é que os alunos possam, primeiro, entender as variedades que não a sua (tanto na oralidade como na escrita) para poderem respeitá-las, estudar e compreender a sua variedade materna e escrevê-la… e pouco mais que isso”.
“Para começar”, acrescenta, “enquanto autores, vazamos muitos conteúdos no programa do décimo ano, para que os professores experimentassem à vontade; fossem seguidos e capacitados, de modo contínuo, para que se pudesse vir a reformular tudo e dar indicações para o alargamento dos conteúdos para os anos letivos anteriores e posteriores e demais medidas curriculares essenciais”, aponta.
No entanto, critica, o Ministério da Educação “foi incapaz de gerir o processo neste sentido, mas não se coibiu de raptar o processo, afastando-o da comunidade e redireccionando-o para rumos inaceitáveis”.
“A criação desta disciplina não é para afastar os cabo-verdianos de sua língua”, defende Eleutério Afonso e nem tão pouco “abrir a oportunidade para que uma elite imponha uma língua de ninguém como sendo “a Língua” dos cabo-verdianos, por dificuldades em fazer uma política que, verdadeiramente, leve os cabo-verdianos a se unirem e se respeitarem na sua diversidade”, conclui.
Aberração linguística
Também José Luís Hopffer Almada tece críticas ao manual da disciplina de Língua e Cultura Cabo-verdiana.
Num texto publicado no Facebook o escritor e ensaísta começa por referir que a introdução do ensino da língua cabo-verdiana no 10º ano de escolaridade, “pode ser interpretada como um sinal assaz positivo”.
Hopffer Almada refere, no entanto, que o manual está redigido “num denominado crioulo cabo-verdiano interdialectal” que “em vez de alegria, entusiasmo e euforia, suscita várias, sérias e graves preocupações”.
Entre essas preocupações, aponta o escritor, está o facto de “esse denominado crioulo interdialectal” ser um crioulo “completamente artificioso, pois que não existe, nem em forma falada por populações de nenhuma ilha ou diáspora cabo-verdiana, nem em forma escrita por qualquer escritor ou escriba cabo-verdiano, alupecador ou tradicionalista, além de banir qualquer forma de acentuação”.
Além disso, prossegue José Luís Hopffer Almada, no novo manual são introduzidas “regras avessas ao ALUPEC, pois que consegue banir qualquer forma de acentuação, recorrendo ao denominado contexto para adivinhar a pronúncia das palavras”.
O escritor defende ainda, no texto publicado no Facebook, que a língua cabo-verdiana presente no manual escolar “contraria frontalmente o consenso arduamente conseguido na sociedade cabo-verdiana e segundo o qual os alunos devem aprender a língua materna na respectiva variante dialectal, pois que é desta forma que, na ainda persistente ausência/inexistência de um crioulo padrão oficial, a língua cabo-verdiana se actualiza como língua materna dos cabo-verdianos das diferentes ilhas e diásporas”.
Além disso, acrescenta José Luís Hopffer Almada, “é uma infeliz tentativa de imposição de um crioulo sumamente artificioso com recurso a regras gramaticais originárias predominantemente das variantes de barlavento da língua cabo-verdiana, precisamente naqueles pontos que foram considerados pelo grande filólogo cabo-verdiano Baltasar Lopes da Silva como as suas insuficiências intrínsecas, isto é, a sua incompletude vocálica, e que, na óptica do festejado filólogo cabo-verdiano, acima referenciado, as desqualificam para servirem de crioulo literário padrão, em razão primacialmente dos choques consonânticos que engendra, dificultando a sua escrita”.
“Felizmente que a adopção desse tal Manual de Língua e Cultura Cabo-verdiana, por muitos qualificado como uma autêntica fraude e/ou aberração linguística, foi a título meramente experimental, podendo ainda o Ministério da Educação arrepiar caminho dessa malfazeja por demais perigosa encruzilhada, pois que a indignação entre os linguistas, os professores e os escritores (multilingues, bilingues e monolingues) em língua cabo-verdiana é deveras generalizada e tonitruante”, aponta ainda o escritor.
Nem tudo é mau
No entanto, nem tudo são pontos negativos. No seu conjunto, o novo Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas, anunciado pelo Ministério da Educação de Cabo Verde no passado dia 21 de Fevereiro de 2025, “contém partes assaz positivas, designadamente no que se refere à história da escrita da língua cabo-verdiana e à reprodução de textos em crioulo de importantes autores das várias fases da escrita em língua cabo-verdiana, com destaque para Eugénio Tavares, Sérgio Frusoni, B. Léza, Danny Spínola” a que acrescem, defende Hopffer Almada, “nomes de alguns autores e de algumas autoras de letras de composições musicais das novíssimas gerações”.
“Neste contexto, foram incompreensível e lamentavelmente omitidos nomes e textos de escritores bem como de intérpretes e autores de letras de composições musicais extremamente relevantes, designadamente nos domínios do batuco, da mazurca, da morna, da coladera, do funaná, da talaia baxo, entre outros géneros musicais tradicionais, tendo a contrário sido agregados nomes de autores que quase nada contam para a escrita e a literatura em língua cabo-verdiana. Um insano exemplo disso é o caso da poetisa e ficcionista lusógrafa Vera Duarte, de quem conheço somente um poema em crioulo, em contraponto a nomes de autores de obras relevantes em língua cabo-verdiana”
Duas soluções
Para Hopffer Almada há apenas “duas soluções possíveis para o imbróglio, inútil e desnecessariamente criado pelos autores intelectuais do estranho produto acima-referido: Correcção radical das insuficiências do dito Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas com total extirpação do artificioso, malfazejo e malfadado crioulo dito interdialectal; elaboração ex-novo de um novo Manual de Língua e Cultura Cabo-Verdianas”.
Em ambos os casos, conclui o escritor, “creio dever-se constituir uma nova equipa constituída por linguistas e professores cabo-verdianos, eventualmente aconselhados por renomados linguistas estrangeiros, como Juergen Lang, Dulce Pereira, Hans-Peter Heilmair (Lonha), Nélia Alexandre, entre outras, também com experiência nas áreas do ensino, da pedagogia e da escrita em e da língua cabo-verdiana”.
Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1214 de 5 de Março de 2025.
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