O ex-presidente do Uruguai e líder Pepe Mujica, que faleceu nesta terça-feira (13/05) devido a um câncer no esôfago, deixa um legado incontestável para o progressismo não apenas em seu país, mas em toda a América Latina.
Na análise do professor Fabio Luis Barbosa dos Santos, do departamento de Relações Internacionais da Unifesp, a “projeção internacional do Mujica minimiza” quaisquer contradições internas ou críticas que teve pela sua Presidência, entre 2010 e 2015.
“Essa projeção tem muito a ver com as realizações do seu governo, que são associadas à agenda de direitos”, avalia. Durante o governo Mujica, uma série de leis foi aprovada, como a permissão do casamento igualitário, legalização do aborto, e do plantio e consumo da Cannabis, por exemplo.
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Para dos Santos, essa “projeção da imagem do Mujica” está diretamente relacionada com “a forma de vida que ele adotou”. O líder uruguaio chegou a ser definido como “o presidente mais pobre do mundo”, que dirigia um fusca e doava grande parte de seu salário como chefe de Governo.
“Há um encantamento em relação às suas escolhas individuais. Em um mundo em que a política é tão associada à corrupção e à busca de acumulação de fortuna pessoal, o Mujica claramente encontrou satisfação pessoal em outras dimensões que não têm a ver com a acumulação material. Isso é louvável e desperta encantamento”, pontua a Opera Mundi.
Na análise de dos Santos, com modéstia, frugalidade e simplicidade, Mujica apresentava “coerência” entre sua figura e personalidade pública. “E isso tem um apelo com aqueles que não se identificam com o mundo e o estilo de vida de acumulação”, reconhece.
Segundo o professor da Unifesp, esse estilo de vida de Mujica levou inclusive ao Uruguai a “ser um dos poucos” lugares onde a corrupção não se tornou uma bandeira alimentada pela oposição, como no Brasil ou Argentina, por exemplo.
Com Mujica, a ‘onda rosa’ na América Latina
No ano de 2010, Lula presidia o Brasil em seu segundo mandato. Na Argentina, Cristina Kirchner concluía seu primeiro governo sucedendo seu marido, Néstor Kirchner. Na Bolívia, Evo Morales era o presidente. Olhando este contexto na América Latina, dos Santos avalia que “em 2010 o progressismo parecia ser o futuro”.
Essa crescente progressista na região foi chamada de “onda rosa”, que segundo o professor da Unifesp e também autor do livro Uma história da onda progressista sul-americana (2018, Editora Elefante) pode ser entendida como “uma reação ao desgaste do neoliberalismo implementado em diferentes momentos e intensidades na história da América Latina”.
Segundo dos Santos, a agenda neoliberalista sofreu um “desgaste”, o que abriu “espaço para contestação” do modelo político. Esse movimento “abriu a possibilidade da eleição de governos não identificados com essa agenda e muitas vezes identificados com forças populares, ou seja, a esquerda”.
O especialista explica ainda que tais governos que foram eleitos então passaram a ter uma função de “reconstituir uma legitimidade da política institucional que estava desgastada”. “Na Bolívia, Evo Morales cumpriu papel de colocar uma política que estava nas ruas de volta para as instituições”, exemplifica.
“[Em 2011, Lula terminou a Presidência com altas taxas de aprovação, foi capa da [revista] The Economist, o [ex-presidente dos Estados Unidos Barack] Obama dizia que ele era o político mais popular da terra, o Partido dos Trabalhadores exportava políticas sociais para toda a América Latina”, relembra o professor.
“Naquele momento, a Colômbia sob o governo neoliberal de Álvaro Uribe estava isolada. A direita liberal parecia condenada a ser superada. Todos esses mandatários se alinharam em função de um projeto, que era de hegemonia política regional. Eles eram aliados políticos”.
Na avaliação do também doutor em História, o que caracterizou essa “onda rosa” no começo do século XXI foi a “sinergia entre os governos”. “Eles procuraram se articular e constituir a União de Nações Sul-Americanas (Unasul), por exemplo”.
Presidência controversa
É inegável dizer que o governo de Mujica impactou o Uruguai e a América Latina como um todo. Entretanto, dos Santos aponta políticas controversas ao associar a gestão do líder uruguaio no que diz respeito a medidas punitivistas, à postura frente as investigação dos crimes da ditadura, posições “indelicadas” aos servidores públicos e aos tratados internacionais, além de um sistema de desenvolvimento econômico fora do ponto de vista dos interesses populares.
Para o acadêmico, Mujica, que ficou 14 anos preso durante a ditadura militar, “pagou um preço pessoal alto” por sua militância. “Ele abraçou uma escolha política radical que teve consequências no plano pessoal, difíceis de mensurar por quem nunca viveu. Isso é um testemunho de coragem e de consequência política”, reconheceu o acadêmico, apontando para o período ditatorial do país que teve como característica os longos períodos de aprisionamento.

Roosewelt Pinheiro/ABr/Wikicommons
Assim, dos Santos levanta um aspecto “sensível”, observando que Mujica foi muito criticado por grupos de direitos humanos por seu posicionamento em relação às investigações dos crimes cometidos durante a ditadura militar.
“Isso é difícil de compreender, vindo de alguém com o passado dele e que nomeou como ministro um Tupamaros, o Eleuterio Fernández Huidobro, que foi inclusive um dos responsáveis pela mítica operação que eles libertaram mais de 100 presos de Punta Arenas, uma prisão que hoje em dia é um shopping em Montevidéu”, disse. Huidobro se opôs à investigação dos crimes da ditadura e defendeu os militares, adotando posturas “muito ácidas” e difamando organizações de direitos humanos.
Assim, dos Santos sustenta a necessidade de desintegrar o seu legado pessoal, ou seja, realizar um balanço sobre o Mujica não em função das características pessoais “que podem ser inspiradoras para muitos”, mas pelos compromissos políticos que assumiu ou deixou de assumir durante sua Presidência, “um outro momento histórico”.
Apesar das medidas que se configuraram como grandes avanços no país, no âmbito dos direitos mencionados anteriormente, o professor aponta que Mujica abraçou essa agenda de direitos humanos em dessintonia com um anseio de setores importantes da sociedade, como por exemplo as mulheres, e de forma não consensual no próprio partido que ele militava.
“Mas ao mesmo tempo, do ponto de vista do alinhamento geral do governo, ele estava dentro da gramática do progressismo, que apostava em políticas sociais, em procurar fazer uma espécie de ganha-ganha. Em que o crescimento econômico facilitasse políticas sociais que promovessem algum nível de inclusão da população”, explicou.
Dos Santos reproduziu uma frase popular do líder uruguaio, que afirma o seguinte: “se o país fosse uma equação, eu diria que a fórmula que a gente deve buscar é agronegócio, mais inteligência, mais turismo, mais logística regional”. Nessa lógica, aponta que o termo chave do mandato de Mujica é a “inteligência”, uma vez que a proposta da Frente Ampla daquele tempo era “fazer mais do mesmo, mas de forma inteligente”.
“Então, agronegócio, turismo e logística regional são esteios da economia uruguaia há muito tempo, mas de maneira mais evidente na globalização”, afirmou o professor.
Com relação ao que considera como uma liderança uruguaia “não pautada pela cordialidade e pelos valores humanistas com os quais ele [Mujica] é geralmente identificado”, dos Santos exemplificou que na gestão daquele tempo, havia entrado em vigor uma lei que castiga quem dorme em espaços públicos, ou seja, podendo prender pessoas em situação de rua, o que elevou ainda mais a taxa de concentração carcerária no país, que já detinha o recorde na América Latina.
Apesar das contradições, Mujica transfere carisma político a Orsi
O último evento político que Mujica presenciou foi a posse do atual presidente uruguaio, Yamandú Orsi, a Frente Ampla, considerado seu “herdeiro político”. A vitória eleitoral do novo chefe de Estado se consolidou como um marco importante, uma vez que simbolizou a volta da esquerda ao poder.
Segundo dos Santos, Mujica guardou essencialmente “a ideia de transferir o carisma” político para a figura a quem apoia. “O carisma é um sintoma de maturidade política. É o endosso de uma política, usada pela da Frente Ampla, da qual Mujica se identificou”, afirmou.
Embora seja um governo progressista, dos Santos compreende que Uruguai “não foge da regra e que as expectativas em torno do progressismo foram significativamente reduzidas em relação às expectativas depositadas na primeira eleição da Frente Ampla, no começo do século 21”.
Para o professor, é esperado que Orsi preserve o país fora do “turbilhão” desencadeado pela extrema direita nos outros países da região, como na Argentina sob o governo de Javier Milei.
“É uma expectativa defensiva de resistência, não uma expectativa propositiva de que o Uruguai vá construir uma sociedade radicalmente diferente ou igualitária. É sobre como o ‘barquinho uruguaio’ navega sem afundar no mar agitado e turbulento da América do Sul?”, questionou.
Orsi faz parte de um novo grupo de mandatários progressistas na América Latina atual, juntamente com Lula em seu terceiro governo no Brasil, Gustavo Petro na Colômbia, e Claudia Sheinbaum no México.
Contudo, o acadêmico avalia que este o progressista atual é “defensivo” e diferente do quadro em 2011. “Lula, Chávez, Morales foram eleitos na época como esperança da mudança. Hoje em dia, eles são uma espécie de votos pelo mal menor”. Por isso, o professor resiste em chamar o quadro atual de “uma nova onda progressista”.
“Os tempos históricos, o tempo da possibilidade de consolidação do progressismo como alternativa de hegemonia política, se encolheu dramaticamente. Apesar de todas essas figuras, Chávez, Kirchner, Lula, Morales, 15 anos depois, já é visível que o progressismo é uma espécie de tigre sem dentes que não arranca o pedaço do capital. Os ventos na América do Sul já sopram para outro lado”, conclui.
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