A artista guineense Karyna Gomes apresentou ao vivo recentemente “Aio Titina”. A canção, além de um tributo, é o resultado de quase duas décadas de investigação e de um profundo trabalho de resgate cultural, inspirado na figura histórica de Titina Silá, símbolo da resistência, da emancipação feminina e da luta pela independência da Guiné-Bissau.
A canção original foi escrita em 1975 por José Carlos Schwartz, poeta e músico guineense, como homenagem a Titina Silá, combatente do PAIGC e figura central da luta de libertação nacional. Titina morreu a 30 de janeiro de 1973, emboscada enquanto atravessava o rio Farim, a caminho de Conacri para assistir às cerimónias fúnebres de Amílcar Cabral. O seu corpo nunca foi encontrado, mas o seu legado transformou-se num símbolo de coragem, intelectualidade e liderança feminina em África. “José Carlos Schwartz, em ‘75, já depois da independência, resolveu fazer um poema sobre a Titina Silá, em que ele diz que se as mulheres quisessem perceber como tu [Titina] percebeste, como tu entendeste a luta, saberiam que o cativeiro não acaba se o povo não for libertado. Se as mulheres pudessem compreender, perceber, conceber, como tu o fizeste, saberiam que não há trabalho para homem, não há trabalho para mulher, para o nosso povo basta o trabalho que vale a pena. Se as mulheres pudessem entender como tu entendeste, saberiam que o seu direito não é estar atrás do homem, mas ombro a ombro na luta. Se as mulheres pudessem entender como tu pudeste entender, Titina, saberiam que podiam estar com os sentidos no lugar, ou seja, também podiam cultivar a intelectualidade e estar na frente, ou seja, dirigir, coordenar, orientar, assim como os homens fazem”, explicou-nos Karyna Gomes.
O reencontro de Karyna com esta história começou em 2005, quando trabalhava na formação de rádios comunitárias na Guiné-Bissau. Durante um projeto de recuperação de arquivos antigos, guardados em bobinas deterioradas pelo clima tropical, encontrou um pequeno trecho da música. Desde então, iniciou uma pesquisa exaustiva que durou 19 anos, envolvendo músicos, historiadores e intérpretes da música tradicional e urbana guineense para reconstituir a melodia, a métrica e o espírito original do tema.
Foi apenas em 2024, durante a abertura da Casa da Cultura e no âmbito do projeto Hora di Canta Tchiga, que Karyna conseguiu concluir a sua investigação. O projeto baseia-se no livro Hora di Canta Tchiga, da escritora Moema Parente Augel, que reúne as poesias de José Carlos Schwartz e dos seus companheiros. O acesso a estas novas fontes permitiu-lhe não só consolidar a letra e a melodia de “Aio Titina”, mas também compreender a profundidade política e emocional da mensagem.
Este trabalho contou com o apoio de músicos como Guto Pires e outras figuras ligadas à música moderna guineense, surgida após a independência. Essa geração de artistas, profundamente marcada pelas ideias de liberdade e autodeterminação, revelou-se essencial para o resgate do espírito original da composição. “Portanto, esta versão é minha e pronto, a melodia é o que está aí. Afinal, tínhamos um grande gumbé da Guiné-Bissau que desconhecíamos, e foi graças a esse trabalho de resgate que fiz com a ajuda destes músicos que me acompanharam na cidade da praia que consegui dar forma a uma canção que só tinha um trecho que encontramos numa bobina já estragada”, recordou a artista.
“Aio Titina” foi apresentada ao público pela primeira vez ao vivo durante a edição de 2025 do Atlantic Music Expo (AME), na Cidade da Praia, Cabo Verde, num momento de grande carga simbólica e emocional. A performance ao vivo consolidou a força do tema, agora integrado tanto na gravação de estúdio como nas apresentações em palco.
Quem foi Titina Silá
Nascida em 1943, na região de Tombali, no sul da Guiné-Bissau, então colónia portuguesa, Ernestina Silá, conhecida como Titina Silá, foi educada de forma rigorosa pelo pai, desenvolvendo desde cedo uma personalidade combativa e determinada. Aos 16 anos, terminou o ciclo escolar e formou-se em enfermagem, uma conquista notável considerando o contexto para uma jovem guineense daquela época.
Em 1959, muda-se para Bissau para estudar e testemunha um dos eventos mais traumáticos da história do país: o massacre de Pindjiguiti, onde dezenas de marinheiros e estivadores foram mortos pelas forças coloniais portuguesas. O choque e a indignação causados por este episódio despertaram em Titina uma profunda consciência política.
Inicialmente ligada ao Movimento para a Libertação da Guiné (MLG), Titina encontra no PAIGC, liderado por Amílcar Cabral, o seu espaço de luta. Em 1961, com 18 anos e o diploma de enfermagem na mão, torna-se oficialmente membro do partido. Destacando-se rapidamente pela sua liderança e compromisso, foi enviada para a União Soviética para formação política.
Com o início da luta armada em 1963, Titina integra a frente de combate, assumindo funções de grande responsabilidade, nomeadamente a liderança do Comité da Milícia Popular no norte do país, coordenando operações estratégicas para o abastecimento das forças de resistência. À frente de um esquadrão de mais de 200 homens, a sua coragem e inteligência tornaram-na uma referência nacional.
Após o assassinato de Amílcar Cabral em janeiro de 1973, Titina tentou deslocar-se a Conacri para participar nas cerimónias fúnebres, mas foi vítima de uma emboscada das tropas coloniais enquanto atravessava o rio Farim. Morreu aos 30 anos e o seu corpo nunca foi recuperado.
Apesar de não ter vivido para ver a independência, proclamada a 24 de setembro de 1973, Titina Silá tornou-se um dos maiores ícones da história da Guiné-Bissau. O dia 30 de janeiro, data da sua morte, foi consagrado como o “Dia da Mulher Guineense”, em homenagem não só a ela, mas a todas as mulheres que lutaram pela libertação da Guiné-Bissau e de Cabo Verde.
“Aio Titina” representa, nas palavras de Karyna Gomes, um projeto que dignifica a canção, o artista negro e a história de África, reafirmando o papel da música como veículo de resistência, memória e construção identitária.
Crédito: Link de origem