Ingerência na soberania, contenção migratória e pouca transparência: um balanço da USAID no Haiti 

(Arquivo) USAID lança “Haiti INVEST”, para abrir acesso a crédito e capital para empresas haitianas, em cerimônia em Porto Príncipe, em 23 de maio de 2019 (Crédito: Embaixada americana no Haiti)

Quarto da série “Atuação e sombras da USAID na América Latina”  

Por Camila Feix Vidal e Larissa Gheller* [Informe OPEU] [USAID] [Haiti] 

O governo dos Estados Unidos é o maior contribuinte na área de assistência humanitária ao Haiti por intermédio da Agência dos Estados Unidos para o Desenvolvimento Internacional (USAID, na sigla em inglês). Com uma história permeada pela violência fruto de um dos mais brutais processos escravagistas, de incontáveis guerras civis, de invasões externas, dos esquadrões da morte de François Duvalier e de desastres naturais, o Haiti é o mais populoso país do Caribe e, também, o mais pobre.  

Nesse contexto de instabilidade, a USAID desembolsou, entre 2001 e 2021, quase US$ 5 bilhões para projetos de assistencialismo no território. É o país que mais recebeu fluxo financeiro da agência em toda América Latina e Caribe. Para se ter uma ideia, apenas em 2021, a agência foi responsável por mais de 85% da assistência financeira enviada por Washington ao país, segundo informações de 2022 coletadas do site institucional (no momento indisponível, por ter sido retirado do ar pelo governo de Donald Trump). De acordo com o próprio Departamento de Estado, em publicação on-line em janeiro de 2025, não há planos para o encerramento do fluxo de assistência ao Haiti, de forma que “… a reconstrução e o desenvolvimento do país continuarão por muitos anos”.  

O interesse estadunidense pelo Haiti teve início ainda no período pós-Guerra Civil dos Estados Unidos (1861-1865), quando o governo de Washington passou a reconhecer a posição estratégica que o Haiti tinha na região do Caribe. As negociações em torno do estabelecimento de uma base naval em Santo Domingo em fins do século XIX não obtiveram sucesso, porém. Com isso, os EUA voltaram a demonstrar interesse no país somente a partir do início do século XX, quando outras nações buscaram exercer influência sobre o país caribenho. Em um contexto permeado por sucessivos golpes e interferência externa, o país se tornou insolvente em 1910. No livro Upholding Democracy, John R. Ballard (Bloomsbury Publishing, 1998, p. 17) explica:  

… o secretário de Estado Americano, Philander Knox, exigiu com sucesso que os Estados Unidos estabelecessem com a França e a Alemanha uma administração aduaneira tripartida dos bens do Haiti. Se as bases haitianas não estivessem disponíveis para os Estados Unidos, pelo menos esse controle econômico garantiria que a posição estratégica do Haiti não fosse dominada pela França […] ou […] pela Alemanha. 

Em 1915, após trocas anuais de presidentes nos cinco anos anteriores e a demonstração de descontentamento por parte da população haitiana, a Casa Branca ordenou que fuzileiros navais estadunidenses ocupassem o Haiti “por preocupação com a agitação civil generalizada e com os interesses comerciais americanos” (Hippel, 1995, p. 12) que estavam sendo ameaçados pela crescente presença comercial alemã e francesa. Sendo assim, desde 1915, o Haiti foi-se tornando cada vez mais dependente dos EUA e se constituindo como “laboratório” para “paternalismo social, econômico, político e administrativo” (Ballard, 1998, p. 25) exercido pelos Estados Unidos.  

A assistência humanitária estadunidense para o Haiti, por intermédio da USAID, tem início já na década de 1960 e foi utilizada como uma ferramenta de pressão política a partir do apoio (ou rejeição) a Cuba. Anos mais tarde, em meio a uma crescente migração haitiana para os EUA, o governo Ronald Reagan buscou ampliar o papel da USAID no Haiti, mediante compromisso do então presidente Jean-Claude Duvalier em controlar a imigração haitiana. A “ajuda” assistencial não permaneceu muito tempo, entretanto. O Exército, no papel de “árbitro tradicional da política haitiana”, recebeu apoio dos EUA para a derrubada desse governo (Ballard, 1998, p. 41) e controlou o Haiti a partir de governos militares interinos.  

Finalmente, em dezembro de 1990, foram realizadas eleições à Presidência do Haiti. Com uma política nacionalista e desenvolvimentista, Jean-Bertrand Aristide é eleito com cerca de 70% dos votos. E seria deposto logo depois por um golpe militar que estreitou os laços com os EUA. Em 1994, após o início da intervenção militar estadunidense no país por meio da Operação Uphold Democracy (ou Operação para Defender a Democracia, em tradução livre), a junta militar firma um acordo para deixar o governo haitiano. Em seguida, a USAID, em conjunto com o Banco Mundial e com o Fundo Monetário Internacional, prepara um aporte de US$ 800 milhões ao país caribenho para recuperar e (supostamente) democratizar o Haiti. Entretanto, apesar do discurso democratizante utilizado por Washington para justificar a intervenção no Haiti e a assistência por meio da USAID, as abordagens utilizadas pelo governo estadunidense estiveram repletas de controvérsias, contando com “… políticas inconsistentes, apoio encoberto a líderes militares e argumentos ilusórios” (Hippel, 1995, p. 14).  

Em dezembro de 2020, a USAID lançava o Quadro Estratégico (Strategic Framework) voltado para o Haiti. Nele, a agência informa que “a pobreza, a desigualdade e a instabilidade contínua no Haiti, um dos vizinhos mais próximos dos Estados Unidos, impactam diretamente os EUA, promovendo a migração irregular e exacerbando o tráfico ilegal de pessoas, substâncias e vida selvagem”. Como pode ser observado no gráfico 1, a USAID realizou desembolsos regulares ao Haiti, atingindo um ápice em 2010, logo após o terremoto que acometeu o país e matou cerca de 300 mil pessoas. No total, a agência desembolsou US$ 4,9 bilhões ao país entre 2001 e 2021. Desse montante, 25% foram destinados para o setor de assistência humanitária; 23%, para a saúde; 17%, para governança; e 9%, para alimentação (gráfico 2). Juntos, esses aportes correspondem a 73% do total disponibilizado pela agência para o Haiti. 

Gráfico 1: Recursos administrados pela USAID para o Haiti (2001-2021) 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Gráfico 2: Participação dos setores de investimento no total desembolsado pela USAID no Haiti (2001-2021) 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Cabe analisar a evolução dos recursos administrados pela USAID ao Haiti de acordo com os eventos domésticos no país e à luz dos acontecimentos políticos nos EUA. Nesse sentido, os governos de Bill Clinton (1993-2001) e de George W. Bush (2001-2009) reduziram o volume de recursos enviados ao país em comparação com os períodos anteriores1, ao mesmo tempo em que buscaram canalizar os fluxos financeiros da agência para ONGs estadunidenses e haitianas. A partir de 2005, no entanto, observa-se um aumento no volume de assistência, ocorrido logo após a saída de Jean-Bertrand Aristide da Presidência, em 2004. A renúncia do então presidente do país e adepto da Teologia da Libertação ocorreu devido tanto a pressões domésticas, como também estadunidense, que já vinha demonstrando desconfiança desde sua reeleição, em 2001, por conta do caráter nacionalista e reformista do seu governo. Para Hippel (1995, p.12), “havia um crescente movimento anti-Aristide entre os conservadores seniores nos Estados Unidos”, a exemplo de Henry Kissinger, Jesse Helms, Elliott Abrams, Bob Dole e Dick Cheney.  

Boniface Alexandre, presidente da Suprema Corte no Haiti, toma posse e aprova a criação de uma força multinacional interina (MIF, na sigla em inglês) liderada pelos EUA e que seria substituída, logo depois, pela Missão das Nações Unidas para a Estabilização do Haiti (MINUSTAH). Com recursos advindos, sobretudo, do governo estadunidense, por meio da USAID, houve aumento de 91% na assistência financeira da agência ao Haiti nos dois anos seguintes à saída de Aristide, bem como uma maior diversificação dos programas implementados no país.  

Ainda no final de 2006, a lei de Oportunidade do Hemisfério Haitiano por meio da Lei de Incentivo à Parceria (HOPE Act, em inglês) foi aprovada pelo Congresso estadunidense, que, juntamente com as emendas a ele adicionadas nos dois anos seguintes, ampliou preferências comerciais ao Haiti e simplificou determinadas regras de origem dos produtos comercializados entre o país e os EUA. Nesse cenário, os indicadores passaram a mostrar uma dependência ainda mais forte de Porto Príncipe em relação a Washington, com significativo aumento da representatividade estadunidense nas exportações haitianas (Hirst, 2011). 

Tendo em vista a implementação dessa legislação e também a crise financeira global de 2008, o Haiti, a partir de 2009, passou a receber maiores fluxos financeiros oriundos da USAID, alavancados substancialmente pelo terremoto que acometeu o país em 2010. Os EUA, mais uma vez, ocuparam o lugar de maior doador no país, aumentando o volume de assistência financeira pela USAID. Como indicam Vijaya Ramachadran e Julie Waltz, o auxílio oferecido pela USAID ao Haiti após o terremoto de 2010 tem, no entanto, limitada prestação de contas, levando-se em consideração as poucas avaliações dos serviços prestados no país “beneficiário”.  

Ingerência na soberania haitiana 

Ainda no ano de 2010, de acordo com a reportagem de Jake Johnston, os EUA intervieram no processo eleitoral que concedeu a Michel Martelly o cargo de presidente do Haiti. Nesta ocasião, a USAID doou quase US$ 100 mil para o Mouvement Tét Kale (MTK), uma organização política que mantinha laços estreitos com o candidato eleito. De acordo com Johnston, “o dinheiro foi alocado logo depois que Washington ajudou a derrubar os resultados das eleições para levar Martelly ao poder”. Nesse contexto, cabe citar a Política de Assistência a Partidos Políticos da USAID (USAID Political Party Assistance Policy, em inglês) de 2003. Segundo essa política, “… os Estados Unidos podem apoiar seus amigos e aliados engajados na democratização em sociedades em desenvolvimento e em transição” (USAID, 2003, p. 1). Autoriza, assim, o “apoio” a grupos políticos, mas não a influência nos resultados eleitorais (como se fosse possível a separação entre um e outro). Durante sua gestão, Martelly substituiu prefeitos em todo o país por seus indicados políticos e, em 2015, passou a governar por decreto, pondo fim aos mandatos de todos os participantes da Câmara dos Deputados e da maioria do Senado. 

Após o alto influxo de recurso imediatamente posterior ao terremoto de 2010, a USAID reduz sua assistência ao país e, em 2014, retoma-se o patamar observado entre 2008 e 2009. O volume, entretanto, voltou a subir em 2015, durante o governo de Martelly, permanecendo no mesmo nível até 2017. Com o término do mandato do aliado, há um ciclo de governos provisórios até as eleições de 20 de novembro de 2016, quando Jovenel Moïses é eleito. Ele permanece no cargo de presidente do Haiti até julho de 2021, mês em que é assassinado.  

WHINSEC: Educar para desestabilizar?

Aprofunde-se no assunto com este Panorama EUA de Camila Vidal e Luciana Wietchikoski

Durante os anos do governo Moïses, o auxílio financeiro dos EUA com destino ao Haiti decresceu até o ponto em que, a partir de 2019, a Colômbia passou a ser o maior recebedor da assistência da USAID na América Latina. No último ano analisado, pode ser destacada a assistência da USAID à pandemia da covid-19 e ao novo terremoto que atingiu o Haiti em 2021, catástrofe natural que historicamente gera receio por parte do governo dos EUA em relação à possibilidade de um novo fluxo migratório. Atualmente, o volume de assistência financeira se encontra em um patamar semelhante ao de 2007, o que ainda mantém o Haiti em segundo lugar nas destinações dos desembolsos da USAID no continente americano. 

Além disso, é importante analisar a atuação dos parceiros da USAID no Haiti durante o século XXI, em especial das ONGs. Através do gráfico 3, pode-se observar que estas últimas representaram 38% do total desembolsado pela Agência no país, de forma que o Haiti é comumente chamado de “República de ONGs” (Al Jazeera, 2021). Em seguida, encontram-se os “empreendimentos” (ou, empresas) (com 30% do total), os organismos multilaterais (13%), os órgãos governamentais (11%), as igrejas e instituições baseadas na fé (6%) e, por fim, as universidades e institutos de pesquisa (2%). No que se refere ao número de parceiros, aqueles com sede nos EUA têm destaque. Somadas, as empresas e as ONGs estadunidenses correspondem a 152 parceiros, ou seja, 60% do total de 252 parceiros da USAID para implementação em projetos no Haiti.  

Gráfico 3 – Recursos apropriados por parceiros da USAID para implementação de projetos no Haiti (2001-2021)  

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

Gráfico 4: Número de parceiros de implementação dos projetos da USAID no Haiti por categoria de 2001 a 2021 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

As administrações de Clinton e W. Bush, em específico, notabilizaram-se não apenas pela redução do volume de assistência financeira ao Haiti, mas por canalizarem o recurso enviado, sobretudo, por intermédio de ONGs. Dessas, as com sede nos EUA representam a imensa maioria. Para se ter uma ideia, as ONGs foram responsáveis por gerir mais de US$ 1,8 bilhão em recursos públicos, 2/3 desse montante a cargo daquelas com sede nos EUA, conforme gráfico abaixo.  

Gráfico 5: Evolução do número de ONGs parceiras da USAID com projetos no Haiti e os recursos financeiros por elas geridos (2001-2021) 

 

Fonte: Elaboração própria com base em USAID (2022) 

A partir da evolução apresentada, verificamos que, entre 2001 e 2010 (ano do terremoto), houve aumento nos recursos destinados ao Haiti, assim como no número de ONGs (em 2,5 vezes) para a gestão desses recursos. No entanto, ainda que o volume de assistência financeira tenha decrescido nos anos seguintes, o número de ONGs se manteve alto, acima de 25, evidenciando a consolidação dessas como parceiros da USAID no Haiti. Dentre essas parceiras, as que mais receberam recursos financeiros foram as estadunidenses Management Sciences for Health (US$ 246 milhões) e CARE International (US$ 235 milhões). Juntas, correspondem a mais de ¼ do total destinado às ONGs atuantes no país caribenho no período analisado.  

O caso da atuação da USAID no Haiti evidencia como a indústria do assistencialismo se dedica a fornecer recursos a instituições estadunidenses com a justificativa de ajuda humanitária. Em vez do envio de recursos para os governos locais para a criação de obras de infraestrutura, de financiamento a saúde ou a educação, por exemplo, o caso do Haiti demonstra como a política externa dos Estados Unidos segue priorizando objetivos próprios – entre eles, o apoio a empresas e indústrias estadunidenses para a criação de novos mercados para seus produtos –, ainda que sob a justificativa moral e virtuosa da assistência estrangeira.  

Ao fim, cabe mencionar que, em que pese todo o recurso público investido pela USAID em projetos no Haiti, o país segue sendo o mais pobre do continente americano e o que apresenta o menor índice de desenvolvimento humano (IDH). Dada a instabilidade política, econômica e sanitária, é considerado – pela própria mídia estadunidense – como um estado falido. Cabe, portanto, a pergunta: os milhares de dólares supostamente investidos no Haiti pela USAID contribuíram de alguma forma para o desenvolvimento do país, ou aprofundaram ainda mais seu subdesenvolvimento? 

 

* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU), do Grupo de Pesquisa em Estudos Estratégicos e Política Internacional Contemporânea (GEPPIC), do Instituto de Estudos para América Latina (IELA/UFSC) e do Instituto Memória e Direitos Humanos (IMDH/UFSC). Contato: camila.vidal@ufsc.br e camilafeixvidal@gmail.com.   

Larisa Gheller é graduada em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Contato: larigheller@gmail.com. 

** Revisão e edição final: Tatiana TeixeiraRecebido em 10 fev. 2025. Este Informe OPEU é fruto do trabalho de conclusão de curso de Larissa Gheller, com orientação da profa. Camila Vidal. Esse conteúdo não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU. 

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