O professor Merlí Bergeron (Francesc Orella) com seus alunos “peripatéticos”, na série “Merlí” – Foto: reprodução
Quando o ChatGPT foi lançado, no fim de 2022, ele espalhou pânico entre professores. Muitos acharam que não teriam mais como avaliar seus alunos, “pois o robô passaria a fazer todos os trabalhos”. Outros, mais fatalistas, acreditavam que seus empregos estavam com os dias contados, pois seriam substituídos por tutores movidos pela inteligência artificial.
Depois de dois anos e meio, nem uma coisa nem a outra aconteceu. Mas a IA vem transformando a educação. As formas de avaliação precisaram ser atualizadas: hoje muitos professores até pedem que os alunos usem criativamente a IA em suas tarefas. E nenhum deles perdeu o emprego.
Profissionais de diversas áreas compartilham desse receio profissional. Portanto, o debate sobre a substituição de humanos por máquinas continua aquecido.
A série catalã “Merlí”, lançada em 2015, pode ajudar a compreender esse processo. Apesar de se focar em educação e não tratar de tecnologia, ela se constrói sobre algo essencial nesse debate: como um profissional que usa de maneira criativa a sua humanidade pode colher resultados impressionantes e, assim, tornar-se insubstituível.
Merlí Bergeron, interpretado por Francesc Orella, é um professor de filosofia que converte alunos desinteressados em pensadores críticos. Consegue isso com sua imperfeita, mas magnética humanidade, que transforma conceitos filosóficos em recursos para seus alunos enfrentarem a vida.
A substituição tecnológica não é novidade, mas ela se concentrava na força física. Agora a IA cria aulas, escreve textos, diagnostica doenças e até compõe músicas. É inevitável questionar o que nos restará.
A resposta encontra-se justamente na abordagem de Merlí. Ele não se limita a transmitir conteúdos, conectando Aristóteles, Nietzsche e Foucault aos dilemas concretos de seus “peripatéticos” (como chama seus alunos), mostrando como o pensamento filosófico pode iluminar questões de identidade, bullying, sexualidade e relações familiares.
O impacto da IA nos leva a refletir sobre como a “educação bancária”, termo forjado por Paulo Freire para criticar o ensino em que o professor “deposita” informações em alunos que apenas memorizam o conteúdo sem reflexão, já não serve mais. Ironicamente ela promove um salto pedagógico.
Nenhuma IA consegue captar as nuances emocionais de um adolescente em crise existencial ou adaptar conceitos abstratos às experiências únicas de cada turma. Mas Merlí, vaidoso, impulsivo, às vezes egocêntrico, consegue conectar-se autenticamente com seus alunos, por suas imperfeições e por desafiar a burocracia escolar. Sua humanidade é seu maior trunfo pedagógico.
Assim, professores e profissionais de outras áreas que temem ser substituídos pela IA devem se questionar se suas entregas podem ser reproduzidas por um algoritmo.
O futuro do trabalho não será definido pela tecnologia, mas pelo que fazemos com ela. Assim como Merlí usa os filósofos como ferramentas, profissionais conscientes usarão a IA como aliada para amplificar seu impacto humano. Quem teme ser substituído provavelmente já vinha exercendo um papel mecânico.
Merlí nos inspira a apostar na humanidade, mesmo com falhas. Devemos ser autênticos e interessados no desenvolvimento integral do que fazemos, e dominar a tecnologia não para competir com ela, mas para transcendê-la com uma conexão genuína e transformadora.
Enquanto houver profissionais que enxerguem além dos conteúdos, desafiem o sistema se necessário e se importem verdadeiramente, não haverá IA capaz de substituí-los. Pelo contrário, as melhores tecnologias ampliarão o alcance de sua influência humana, permitindo que seu impacto transformador chegue a mais pessoas.
Precisamos entender que sermos substituídos por uma IA pode ser ruim, mas pior é sermos trocados por uma versão automatizada de nós mesmos.
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