Guerra, tecnologia e dinheiro mundial

Quando buscamos apreender a história da tecnologia e os caminhos que nos levaram para além do paradigma analógico até o contemporâneo digital, é necessário atravessar muitos campos: desde a pré-história da matemática até os projetos de automação mecânica dos cálculos de rotas marítimas propostos por Babbage e Lovelace, passando pela álgebra de Boole, até, finalmente, a emergência da criptografia moderna e seus avanços ao longo das duas grandes guerras – para citar alguns elementos. Especialmente desde o século XX, a dinâmica entre economia global, tecnologia e domínio militar (que verte-se do domínio bélico ao cibernético) tornou-se uma amálgama incontornável. 

A relação entre desenvolvimento tecnológico e guerras não é exatamente nova, e durante o século passado se mostrou cada vez mais atrelada às dinâmicas do capital. Obviamente, as disputas criptográficas em torno da máquina Enigma, desenvolvida pelo engenheiro elétrico alemão Arthur Scherbius (1878-1929), marcam de maneira radical essa etapa, que coloca informação e tecnologia no centro das disputas acadêmicas e militares que moldaram as condições de possibilidade da digitalização. Apesar de patenteada em 1918, a Enigma foi reconstituída somente em 1932, pelo matemático polonês Marian Rejewski (1905-1980). Foi entretanto no ano de 1938 que o polonês desenvolve a primeira máquina voltada à otimização criptográfica pela análise combinatória da própria Enigma – essa máquina seria fundamental para a inteligência polonesa decifrar as mensagens alemãs, além de ser o modelo para o dispositivo posteriormente desenvolvido por Alan Turing (1912-1954), considerado hoje o pai da computação. As estruturas do parentesco no desenvolvimento histórico do digital são, todavia, um tanto mais complexas. 

Soldados da Unidade de Processamento de Dados (DPU) conduzem exercícios de defesa computadorizada.
(Foto: Cotton Puryear / Virginia National Guard Public Affairs / Flickr)

É fundamental termos em mente por exemplo como a função do dólar americano enquanto dinheiro mundial possibilitou seu desenvolvimento militar, na medida em que, após a Segunda Guerra e o subsequente estabelecimento do sistema de Bretton Woods em 1944, a moeda garantiu uma posição singular no capitalismo global: a possibilidade de contornar a tendência de desvalorização, independentemente de déficits comerciais. Ou seja, mesmo sem a demanda por bens produzidos nos EUA, haverá sempre a demanda pelo dólar americano enquanto ele for uma reserva de valor para os bancos centrais em fundos internacionais, o que garante aos EUA a possibilidade de impressão de moeda para o financiamento de suas incursões imperialistas militares ao redor do Globo, sem a consequência direta de sua desvalorização. 



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Temos também, na década de 1940, o início do “momento cibernético”, com as conferências de Macy (1946-53) e o desenvolvimento da teoria da informação de Shannon. As conferências despertaram interesse militar, contando desde o início com integrantes que tiveram notórias participações na Segunda Guerra, como foi o caso do físico-matemático John von Neumann. Começava a se constituir o que seria chamado posteriormente de complexo industrial-militar dos EUA, expressão popularizada em 1961, pela declaração do então presidente Dwight D. Eisenhower. O complexo industrial-militar foi fundamental para o desenvolvimento de pesquisas voltadas às inteligências artificiais, que vinham ganhando notoriedade acadêmica no país durante a década de 1940 e 1950, desde a clássica disputa inicial entre IAs simbólicas e emergentes (ou sub-simbólicas, com as origens precursoras das redes neurais artificiais).

Vale notar que, apesar da dianteira assumida pela vertente simbólica, as IAs emergentes – concebidas teoricamente já em 1943 como redes neurais [neural networks], por Warren McCulloch e Walter Pitts, no artigo ‘A logical calculus of the ideas immanent in nervous activity’ – tiveram atenção especial de instituições estatais ligadas à inteligência geoespacial. Foi Frank Rosenblatt quem, em 1957, tirou pela primeira vez do papel o algoritmo para aprendizado de classificadores binários conhecido como perceptron, oriundo das pesquisas de Pitts e McCulloch. Na época, Rosenblatt trabalhava no Laboratório Aeronáutico de Cornell, onde rodou seu programa em um IBM 704, conseguindo financiamento posterior do ramo de sistemas de informação do Departamento de Pesquisa Naval norteamericano, além do Centro de Desenvolvimento Aéreo de Rome (um laboratório voltado à pesquisas em “controle, comando e comunicação”) para desenvolver seu Perceptron Mark I.[1]

O objetivo principal deste aparato era a automação do reconhecimento de padrões, um dos primeiros sistemas algorítmicos para o aprendizado de máquinas [machine learning], que tinha como objetivo direto a análise de imagens a partir de formas geométricas. Após a abertura de documentos militares secretos que registravam o uso do Perceptron Mark I em testes da divisão de fotografia da CIA entre 1960 e 1964, ficou evidente o interesse voltado à automação da percepção de alvos militares. Poderíamos dizer que o financiamento do Perceptron de Rosenblatt marca um episódio fundamental do alinhamento entre desenvolvimento de tecnologias digitais e interesses militares estadunidenses: a automação cibernética do olhar imperial total sobre o globo.

Já na virada da década de 1960 para 1970, as guerras na Indochina, que desdobraram-se na guerra do Vietnã, pesavam sobre os privilégios econômicos estadunidenses (com a liberdade de imprimir sua moeda sem desvalorizá-la), ao mesmo tempo em que mantinham um exército milionário em outro continente – custeado, vale frisar, através desse mesmo privilégio. Por outro lado, as potências derrotadas no pós-guerra passavam a se recompor, com economias em crescimento e sem as obrigações e custos de um império em estado de guerra constante. Esses fatores, combinados com a incerteza relativa à quantidade finita de reservas de ouro e seu uso para lastreamento do dólar como dinheiro mundial, desembocou no chamado “choque de Nixon”: a suspensão da conversibilidade internacional do dólar em ouro, base fundamental do sistema Bretton Woods.

Essa ruptura abrupta teve consequências globais imediatas, mas também acarretou em questões de médio e longo prazo, por exemplo quanto à manutenção do dólar como dinheiro mundial: sem a sustentação do sistema de lastreamento pelo ouro, os EUA corriam o risco de uma desvalorização imediata e desenfreada da sua moeda. Em dezembro de 1971, um acordo foi firmado para mitigar esses efeitos, sem sucesso: o dólar seria desvalorizado em 8,5% em relação ao ouro, “enquanto as moedas de outros dez aliados dos Estados Unidos foram valorizadas em relação à moeda americana.” Durou 15 meses até seu colapso: “em 1973, a maior parte daqueles países já permitia a flutuação da sua moeda em relação ao dólar.”

A “solução” que manteve a hegemonia global da moeda americana se revelou posteriormente, com acordos no começo da década: primeiro, a OPEC (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) tomou uma súbita decisão de estabelecer o comércio de petróleo na moeda norte-americana. Não menos histórica, essa decisão levou aos acordos econômicos de 1974 entre Arábia Saudita e EUA que, no ano seguinte, influenciaram no estabelecimento da hegemonia do dólar entre as nações da OPEC. Isso levou ao que ficou conhecido como Petrodólar: estabeleceu-se um outro mecanismo financeiro na economia global; para comprar petróleo, tornou-se necessário acumular dólares americanos – o que acarretou na subvalorização da moeda, e assim da economia, de países exportadores de petróleo (como a Arábia Saudita, o Irã ou a Venezuela). 

Temos assim o novo suporte do dólar pós-Bretton Woods: essa mercadoria indispensável para o capitalismo mundial, o petróleo, que possibilita ao dólar um duplo do ouro e sua manutenção na condição de dinheiro do mundo. Contudo, este duplo irá demandar também uma manutenção militar da sua possibilidade: o lastro do dólar pelo petróleo irá demandar ainda mais investimento no complexo industrial-militar atrelado, sequencialmente, à “terceira revolução industrial” e sua reviravolta microeletrônica.[2] E é agora que a porca torce o rabo. 

Poderíamos considerar a gênese da terceira revolução industrial desde a metade do século XX, entretanto os avanços na microeletrônica, com seus efeitos na relação entre processamento e memória digital, retroagem sobre as possibilidades de desenvolvimento em inteligências artificiais: se, durante a década de 1960, o interesse por IAs emergentes decaiu pela falta de retorno imediato e dificuldade tecnológica e financeira no desenvolvimento dos hardwares necessários, agora as máquinas poderiam processar ambições equivalentes àquelas de outrora. 

Se a história da eletrônica pode ser contada desde a década de 1940, é na década de 60 e 70 que encontramos os avanços na comercialização de circuitos integrados e microprocessadores, respectivamente (vale notar que o Intel 4004 surgiu para o mercado em novembro de 1971, logo após o choque Nixon. Mas é nos anos 1980 e 1990 que ocorrem avanços como os chips com milhões de transistores VLSI, e, posteriormente, a arquitetura superescalar) e é também no fim da década de 1980 quando se escalam os conflitos às portas da próxima guerra, em defesa do petróleo e… do dólar. Entre o estabelecimento do Petrodólar como realidade pós-Bretton Woods e a Guerra do Golfo, temos um intervalo de aproximadamente 15 anos. 

Além de ser emblemática enquanto resposta militar à ameaça ao petrodólar, na medida em que o Iraque colocava em xeque não apenas as reservas de petróleo do Kuwait, mas também a moeda para comercialização do petróleo, a Guerra do Golfo é um marco pela sua espetacularização midiática, sendo televisionada em “tempo real”, com imagens do primeiros aviões stealth, o futurístico F-117 Nighthawk, além do uso de bombas “inteligentes” guiadas por laser ou GPS. O uso de sistemas computadorizados para comando e controle permitiu uma guerra sincronizada em terra, mar e ar, ao mesmo tempo em que contribuiu para a apologética de uma “guerra limpa”, onde a tecnologia reduz ou mesmo supera a dimensão real da violência no conflito (com a propaganda de “mínimo dano colateral”, ao menos do lado estadunidense, pelo uso drones, satélites e tecnologias para operações remotas). 

Em novembro de 1995, na guerra da Bósnia, os negociadores dos Estados Unidos utilizaram da mais avançada tecnologia de simulação computacional para efetuar uma suspensão temporária do genocídio: em um momento crucial nas reuniões dos acordos de Dayton, oficiais estadunidenses levaram os presidentes da Bósnia, Croácia e Sérvia para a sala da “Nintendo” onde viam um mapa tridimensional em tempo real do território, monitorado via satélite.[3] Em 1999 funda-se, através da CIA, uma entidade sem fins lucrativos então denominada Peleus – uma referência ao pai de Aquiles na mitologia grega –, posteriormente denominada de In-Q-Tel; empresa que tem como propósito manter as agências de inteligência americanas a par e passo dos avanços tecnológicos no Vale do Silício.

Em um artigo instigante, Robert J. González cita Gilman Louie, primeiro CEO da empresa, que enfatizou em 2017 como “a organização foi criada para resolver ‘o problema do Big Data’: [Os líderes da CIA] estavam realmente com medo do que chamavam na época de perspectiva de um ‘Pearl Harbor digital’… Pearl Harbor aconteceu com todas as diferentes partes do governo tendo uma informação, mas eles não conseguiram juntá-la para dizer: ‘Olha, o ataque a Pearl Harbor é iminente’… [Em] 1998, eles começaram a perceber que as informações estavam isoladas em todas essas diferentes agências de inteligência e que eles nunca poderiam uni-las… eles estavam tentando resolver o problema dos Big Data. Como você une isso tudo para obter inteligência?”

O investimento com maior lucro e mais imediato retorno tecnológico-militar feito pela In-Q-Tel talvez tenha sido a Keyhole, “uma empresa sediada em São Francisco que desenvolveu software para combinar imagens de satélite e fotos aéreas para criar modelos tridimensionais da superfície da Terra” – isto é, fundamentalmente, um programa para reprodução digital de um mapa com alta resolução de todo o planeta, uma reedição dos ímpetos militares que também levaram ao financiamento do Perceptron de Rosenblatt. Poucos meses após o financiamento fornecido pela empresa da CIA, os militares dos EUA já estavam utilizando o Keyhole para apoio das tropas americanas no Iraque.

E foi enfim a guerra do Iraque (2003), enquadrada pela ideologia da Guerra ao Terror pós 11 de setembro, além de ser motivada pelo controle do petróleo e a manutenção global do dólar, como foi também a intervenção na Líbia (2011) e as sanções sobre o Irã (que desde 2008 tentou vender petróleo em yuan ou euro) e posteriormente à Venezuela (que em 2017 tentou vender petróleo utilizando criptoativos), que extrapolou os pressupostos de digitalização da guerra imperialista, já apresentados desde o Golfo. No final dos anos 2000, drones foram usados em “operações militares estratégicas” no Afeganistão e Paquistão, assim como para o assassinato de alvos estratégicos como o líder do Talibã paquistanes Baitullah Mehsud em 2009, o cidadão americano e membro da Al-Qaeda Anwar al-Awalaki (e posteriormente seu filho) em 2011, ou do general iraniano Qasem Soleimani em 2020. 

Em 2004, a Keyhole foi comprada pela Google, que renomeou a startup como Google Earth. Essa aquisição foi descrita pelo jornalista Yasha Levine como um marco do “momento em que a empresa deixou de ser uma empresa de internet puramente voltada para o consumidor e começou a se integrar ao governo dos Estados Unidos.” Entre o Perceptron e o Google Earth, passando pelo buraco da fechadura, temos a realização do ímpeto de controle imagético da superfície global – a busca por um Argos Panoptes digital, autômato e militarizado; o controle cibernético do poder e do dinheiro mundial; o lastreamento do dólar pela tecnologia digital da guerra.

Contudo, para além do targeting [estabelecimento de alvos], os direcionamentos recentes da CIA miram no micro-targeting: posteriormente, a In-Q-Tel passou a focar em empresas especializadas na mineração de dados em mídias sociais e outras plataformas – na mesma medida em que a disputa tecnológica global passa cada vez mais para o campo da automação no processamento de dados. Ao passo que adversários como a China apontam para novas relações internas de cooperação civil-militar voltada à segurança nacional, desde o final da década passada, Washington já ligou seu alerta vermelho – e a corrida armamentista de IAs entrou na agenda do dia (e do século). 

Na década passada, novas aproximações foram feitas entre o Estado americano e o Vale do Silício. Em 2015, o secretário de Defesa Ash Carter anunciou publicamente um posto avançado do Pentágono a menos de 3 km de distância do complexo Google: a Unidade Experimental de Inovação em Defesa, ou DIUx, criada “para identificar e investir rapidamente em empresas que desenvolvem tecnologias de ponta que possam ser úteis para os militares.” Assim, o Pentágono fundou seu próprio “acelerador de startups”, com a finalidade de “financiar empresas especializadas em IA, sistemas robóticos, análise de Big Data, segurança cibernética e biotecnologia.”

Em 2018, renomeada como DIU, a unidade não era mais experimental, recebendo um aumento de 30 para 71 milhões de dólares em seu orçamento. Em 2020 “a administração solicitou 164 milhões de dólares, mais que o dobro da solicitação do ano anterior.” Temos aqui mais uma evidência contemporânea das relações umbilicais entre Estado e Big Techs, Vale do Silício e digitalização, que valem ser apontadas contra a cada vez mais crescente filosofia supostamente anti-Estado de “libertários” ou neo-reacionários que ganham eco entre os líderes da Big Tech.

Não só o Estado norte americano, mas a própria dinâmica do capitalismo global se mostra fundamental para a compreensão da distopia tecnológica que se tornou nosso presente. E cada vez mais se torna evidente que as guerras, do presente e do futuro, serão travadas entre trincheiras e servidores.

(*) Cian Barbosa é bacharel em sociologia (UFF), doutorando em filosofia (UNIFESP) e psicologia (UFRJ), pesquisa teoria do sujeito, crítica da cultura, violência, tecnologia, ideologia e digitalização; também é integrante da revista Zero à Esquerda, tradutor e ensaísta, além de professor e coordenador no Centro de Formação, onde oferece cursos livres. Atualmente estão abertas as inscrições para o minicurso Teoria Crítica hoje: entre Digitalização e Identidade.


Notas:
[1]  Ver, por exemplo, em: O’CONNOR, Jack. Undercover Algorithm: A Secret Chapter in the Early History of Artificial Intelligence and Satellite Imagery. International Journal of Intelligence and CounterIntelligence, v. 36, n. 4, p. 1337-1351, 2023.
[2]  Robert Kurtz sintetiza o processo da seguinte maneira: “as exorbitantes taxas de crescimento da indústria de armamento na segunda guerra mundial prosseguiram na forma de uma muito discutida ‘economia de guerra permanente.’ Perante esse pano de fundo, também a terceira revolução industrial da microeletrônica saldou-se em sempre novos sistemas de armamento de alta tecnologia e abriu o caminho da industrialização para a eletronização da guerra” (KURTZ, 2007/2015, p. 27)
[3]  Ver em: Chris Hables Gray, Postmodern War, New York: The Guilford Press, 1997

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