As gangues que assolam o Haiti em meio a uma grave crise institucional praticamente isolaram a capital, Porto Príncipe, do restante do país. No norte, onde está Cabo Haitiano, a segunda maior cidade, Estado e população têm conseguido resistir ao avanço desses grupos criminosos.
A Folha acompanhou um grupo de pesquisadores brasileiros de um projeto de extensão da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), o Realidade Latino-Americana. A delegação desembarcou em Santo Domingo, capital da vizinha República Dominicana, e cruzou a fronteira de carro até chegar a Cabo Haitiano.
Enquanto a violência fez de Porto Príncipe uma cidade sitiada —mais de 80% de seu território é controlado atualmente por facções, segundo a ONU—, as comunidades do Cabo Haitiano mantêm um grau de organização que torna mais difícil a disseminação do crime.
Wesley Belotte, líder de uma base comunitária de Milot, ao sul do Cabo Haitiano, afirma que as associações locais promovem eventos recreativos, assumem pautas políticas e pressionam o poder público por demandas como o fornecimento de energia elétrica. A presença estatal é fragmentada, mas não ausente, como na prática se vê em várias regiões de Porto Príncipe.
Um dos principais símbolos de resistência é o lakou (pátio ou terreiro, em créole). O modelo, baseado no agrupamento de casas de uma família extensa ao redor de um jardim comunitário, vem do período colonial, a partir de heranças africanas. Se no passado servia como um espaço de autonomia dos escravizados, hoje ele é um pilar das comunidades.
Junto com os lakous, a religião vodu e o créole se consolidaram às margens do Estado. Até 1987, o francês era a única língua oficial.
No Cabo Haitiano, um grande mercado de ferro, onde no período colonial pessoas escravizadas eram vendidas, reúne mulheres comerciantes. Elas são responsáveis pela circulação de bens, pela alimentação das famílias e pelo cuidado comunitário, de acordo com Rodrigo Bulamah, especialista em Haiti da Uerj (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e membro do Realidade Latino-Americana. “Há uma sociedade que funciona além do que é visível para observadores externos”, afirma.
A cidade, porém, não está livre do cenário de desigualdade frequente em um país que é o mais pobre das Américas. No centro, em uma rua de terra sem iluminação pública, há um restaurante frequentado por trabalhadores de organizações internacionais e pela elite local. Holofotes coloridos iluminam o ambiente, enquanto a música alta embala performances de dança. Em outro ponto, um supermercado oferece vinhos importados, salmão defumado e petit gâteau.
As facções têm mais facilidade para recrutar os jovens principalmente devido à falta de oportunidades de trabalho, diz sociólogo e agrônomo haitiano Emille Eyma. Até metade dos integrantes de gangues são crianças, e o Unicef, o fundo da ONU para a infância, alerta para o aumento de 70% no aliciamento de menores no último ano.
Em decorrência do crescimento da violência em Porto Príncipe, o número de deslocados internos aumentou em 87%, segundo dados divulgados pela OIM, a Organização Internacional para as Migrações. Muitos desses que são expulsos pelos criminosos acabam migrando para o norte, sobrecarregando a já precária infraestrutura local. “O impacto desse deslocamento pode ser visto nas novas construções e na ocupação acelerada do Cabo Haitiano”, afirma Neat Achille, do Instituto de Salvaguarda do Patrimônio Nacional. A cidade tinha 284 mil habitantes em 2017, último dado disponível, que não leva em conta o aumento populacional recente.
O isolamento da capital é tanto que diplomatas da Embaixada do Brasil vivem praticamente sem conexão com as demais áreas do país. Dado o risco à segurança, são impedidos de sair de um determinado perímetro. Tampouco recebem visitas de fora.
Não há voos comerciais regulares para Porto Príncipe desde novembro do ano passado, quando o aeroporto foi fechado após um avião vindo dos Estados Unidos ser atingido por tiros. A única opção é chegar a Santo Domingo e ingressar no Haiti de carro, como fez a delegação brasileira acompanhada pela reportagem.
Na fronteira, o grupo teve de cruzar a pé e entrar em um veículo da Universidade de Lemonade, no Cabo Haitiano. Os anfitriões, então, disseram aos visitantes que a situação na cidade não era tão tensa quanto em Porto Príncipe.
A crise haitiana se agravou em 2021, quando o presidente Jovenel Moïse foi assassinado. As facções, que já se espalhavam pela cidade, assumiram funções que caberiam ao Estado, como a oferta de serviços essenciais e até a representação política. A instabilidade e a violência política permeiam a história local.
Antes, em 2004, gangues ajudaram a derrubar o presidente Jean-Bertrand Aristide, e a ONU enviou uma missão militar para estabilizar o país, a Minustah, comandada pelo Brasil, que durou até 2017. Em junho passado, uma nova missão aprovada pela ONU e liderada pelo Quênia busca treinar a polícia do Haiti para combater as gangues.
Norte e sul haitianos são historicamente distintos. Quando os negros aboliram a escravidão e conquistaram a independência da França em 1804, o país foi dividido em uma monarquia, centrada no Cabo Haitiano, e uma república, baseada em Porto Príncipe.
A reunificação ocorreu em 1820, e o sul passou a centralizar as decisões, enquanto o norte, de relevo montanhoso, ficou relativamente isolado. Mais de 200 anos depois, o poder das gangues inverte a história: a capital, agora, é a região que está praticamente desconectada do país.
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