França e a sua mão de ferro nos territórios ultramarinos

Tanto na Nova Caledónia como em Martinica foi decretado o recolher obrigatório. Uma situação não invulgar nos territórios ultramarinos, onde se observam regularmente medidas semelhantes, a par da proibição de manifestações e do envio de forças especiais. A situação atual nestas duas regiões faz parte de uma longa história de repressão em territórios ultramarinos, como as revoltas violentamente reprimidas em Guadalupe, em Maio de 1967.

A França Ultramarina é constituída por 12 territórios localizados nas Antilhas, no Oceano Índico, no Pacífico e na Antártida. Cada região tem a sua história, a sua cultura e a sua população. O que partilham é “um passado colonial e um presente que traz as cicatrizes desse passado”, como escreve Françoise Vergès, uma politóloga originária da Ilha da Reunião, em A Fratura Colonial.

Cicatrizes que são regularmente reabertas pela repressão das forças da ordem sobre a população local, uma mão de ferro da “metrópole” que assume diversas formas, como a proibição de mobilização, a limitação da venda de álcool, o envio de tropas especiais ou a implementação de recolheres obrigatórios.

Medidas restritivas que geram tensões nos territórios. Este ano, tanto na Nova Caledónia como em Martinica, desenvolveu-se um clima de tensão e de confronto entre os cidadãos e a polícia.

Da Nova Caledónia…

A Nova Caledónia é um território ultramarino atípico. O arquipélago da Oceânia tem um estatuto particular dentro da República Francesa, o que lhe permite ter um elevado grau de autonomia e um governo local próprio. Em maio de 2024, a Assembleia Nacional francesa votou uma lei que alterou as regras eleitorais deste governo local.

Esta nova regra constitucional permite que pessoas nascidas ou residentes na Nova Caledónia há pelo menos dez anos participem nas eleições locais. Isto contradiz o acordo de paz de Nouméa de 1988, que limita os direitos de voto aos habitantes históricos do arquipélago, os Khanaks. A nova medida poderá permitir o acesso ao voto a 25 mil residentes recentes, principalmente franceses, criando um desequilíbrio com a população indígena que é minoria nas suas terras em comparação com os novos residentes, que representam 41,2% da população. O movimento independentista opôs-se à mudança eleitoral e organizou greves e bloqueios de estradas.

A questão da autonomia e da independência sempre foi um desafio na Nova Caledónia. Desde 1986 que a Nova Caledónia está inscrita na lista de territórios não autónomos da ONU. A organização define-os como “territórios cujo povo ainda não atingiu a plenitude do autogoverno”. E a modificação constitucional surgiu após três referendos polémicos onde foi imposto o não à questão: “Querem que a Nova Caledónia alcance a plena soberania e se torne independente?”

A mobilização de vários meses provocada pela modificação eleitoral levou o primeiro-ministro Michel Barnier a anunciar o adiamento da reforma constitucional no início de Outubro. No entanto, este resultado só foi alcançado após meses de luta social e imposições de diversas medidas. Atualmente, os ajuntamentos estão proibidos no arquipélago e a venda de bebidas alcoólicas só é permitida das 8h00 às 18h00, de segunda a quinta-feira, e das 8h00 às 12h00, às sextas-feiras, em quantidades limitadas. Além disso, foi decretado um recolher obrigatório de 20 de outubro a 4 de novembro.

E o recolher obrigatório no arquipélago tem sido uma constante entre Maio e Outubro para dar resposta à onda de contestação. A isto se soma o envio de 3.500 polícias e militares. Outra medida singular foi a proibição da rede social Tik Tok de 15 a 29 de maio, com o objetivo de impedir a comunicação entre manifestantes. Foi a primeira vez que esta medida foi aplicada tanto por França como por um Governo europeu. A Liga dos Direitos Humanos criticou a ação, considerando-a um ataque à liberdade de comunicação e uma ação política que abre precedentes.

Neste contexto, a Associação Francesa de Amizade e Solidariedade com os Povos de África (AFASP) denuncia uma situação de “repressão” contra o movimento independentista na Nova Caledónia.

Num comunicado de imprensa datado de 20 de agosto de 2024, os peritos da ONU manifestaram também preocupações sobre as medidas militares e o “uso excessivo da força” por parte dos agentes franceses na Nova Caledónia. Até ao momento, podem ser contabilizadas 13 pessoas assassinadas, entre as vítimas, 11 civis. “Que movimento social em França poderia ter tido uma dúzia de mortes sem que tivesse ocorrido uma explosão surto social?”, pergunta Julien Anchaing, jornalista da Revolución Permanente e membro do Kanaky Solidarity, um colectivo que apoia a luta do povo Kanak.

À Martinica…

Um movimento social em Martinica também resultou em mortes, com quatro pessoas mortas desde que os protestos contra o elevado custo de vida começaram no mês passado.

No departamento das Antilhas, os preços são 40% mais elevados do que na França continental, de acordo com um relatório de 2022 do Instituto Nacional de Estatística e Estudos Económicos. A principal exigência é que a diferença de preço seja de apenas 10% a 15%, sendo também solicitada a proteção de preços de uma lista de bens essenciais.

26 de outubro 2024

No início de setembro, os sindicatos organizaram greves que juntaram uma centena de pessoas. Durante a noite ocorreram vários atos de violência urbana, resultando em confrontos com a polícia.

A proibição do direito de manifestação foi imposta durante quatro dias e a ilha está sob recolher obrigatório até 21 de outubro. Após um mês de negociações entre sindicatos, governo e grandes distribuidores, um acordo entre o Governo e o setor privado resultou numa redução média de 20% em mais de 6.000 produtos, mas o grupo por detrás dos protestos contra a escassez de vida, O Grupo para a Proteção dos Povos e Recursos Afro-Caribenhos recusou-se a assinar e anunciou que vai continuar as suas ações, explicando que o acordo é insuficiente.

Os protestos foram marcados pelo envio de tropas da Companhia Republicana de Segurança, que não tinham sido destacadas para o território há 65 anos, após os episódios violentos de dezembro de 1959 e maio de 1967. Em dezembro de 1959, na Martinica, a colisão entre uma pessoa da Martinica e outra da França continental levou a três dias de confrontos entre polícias e civis. Conhecido como “Dezembro Negro”, resultou na morte de três jovens e um polícia. Em Guadalupe, em maio de 1967, foi reprimida uma greve de trabalhadores, provocando a morte a 80 a 200 pessoas e 30 polícias feridos. Desde 2016 que este acontecimento é reconhecido como um massacre.

Os dois acontecimentos são considerados os gatilhos que levaram à dissolução das Companhias de Segurança Republicanas nos territórios ultramarinos na década de 1960. A reintrodução desta força policial é amplamente criticada pelos sindicatos. A Confederação Geral do Trabalho da Martinica apela à saída imediata destas unidades policiais e alerta “contra o uso da violência sistémica destinada a esmagar qualquer desafio a um sistema colonial que está a mergulhar a Martinica na pobreza e na asfixia financeira”, como escreveram num comunicado de apelo à mobilização geral de 9 de outubro de 2024.

Tanto ao nível das suas reivindicações, como da sua organização e do seu contexto, os movimentos na Nova Caledónia e na Martinica são muito diferentes, mas os métodos do Estado francês para os enfrentar são muito semelhantes.

França ultramarina, um laboratório?

“Diz-se por vezes que os territórios ultramarinos são precursores da raiva, mas são também precursores dos métodos autoritários da Quinta República”, analisa Julien Anchaing.

“O ultramar, eterno laboratório securitário” legenda o Centro de Pesquisas e Estudos dos Direitos Fundamentais em artigo publicado na Revista de Direitos Humanos em 2020. A investigação analisa as medidas locais aplicadas durante o estado de emergência sanitária e destaca que os territórios ultramarinos têm sido aqueles que sofreram as restrições mais rigorosas, mesmo nos momentos em que se verificou a menor taxa de contaminação. Denuncia catorze medidas privativas da liberdade, recolher obrigatório sistemático e descreve uma atitude paternalista tendo em conta a proibição da venda de álcool.

Laboratório ou não, os territórios ultramarinos são sobretudo uma fonte de riqueza para a França; tanto no facto de permitirem a implementação de bases militares em posições geoestratégicas, como no acesso a recursos na Amazónia com a Guiana ou minas de níquel na Nova Caledónia, pois faz da França o país com a segunda maior zona económica exclusiva do mundo.

No entanto, os territórios ultramarinos enfrentam problemas graves, como a pobreza, o desemprego e profundas desigualdades sociais. Requerem diálogo social e políticas que promovam o desenvolvimento das regiões. Mas a principal resposta da França parece centrar-se na repressão, em vez de promover o diálogo e soluções para responder às necessidades destes cidadãos.


Texto publicado originalmente no El Salto. Traduzido por Carlos Carujo para o Esquerda.net

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