Filmes de José Álvaro Morais para Redescobrir Portugal

Fiel à sua vocação de defesa do património fílmico, a Cinemateca Portuguesa continua a promover o restauro dos mais diversos títulos do cinema português. Entre os mais recentes, estão os essenciais da filmografia de José Álvaro Morais (1943-2004), autor que, infelizmente, continua a ser mal conhecido, ou mesmo ignorado, pela maior parte dos espetadores.

Surge, agora, uma boa oportunidade para corrigir esse desconhecimento. Precisamente com as novas cópias restauradas, a Medeia Filmes promove um ciclo dedicado a José Álvaro Morais, integrando cinco títulos em exibição em Lisboa, no cinema Nimas (até 13 de maio), também com algumas sessões agendadas para outras cidades do país, incluindo o Porto (cinema Trindade), Braga (Teatro Circo) e Coimbra (Teatro Académico Gil Vicente).

O retrato cinéfilo de José Álvaro Morais surge necessariamente dominado pela longa-metragem de estreia, O Bobo, e pela sua proeza internacional: em 1987, foi o primeiro título português a conquistar o Leopardo de Ouro do Festival de Locarno – a proeza só se repetiria em 2019, com Vitalina Varela, de Pedro Costa. Paradoxalmente, a memória do triunfo artístico de O Bobo apresenta-se indissociável de uma história de produção extremamente atribulada, entre finais da década de 1970 e meados da década seguinte – mais do que um elemento para “justificar” os desequilíbrios técnicos e figurativos do filme, esse é um sintoma dramático dos problemas estruturais que pontuavam (e continuam a pontuar) a existência do cinema português.

O ponto de partida de O Bobo é o romance histórico de Alexandre Herculano (publicado em 1843). Ponto de partida que é, afinal, matéria dramática no interior do próprio filme, já que se trata de expor as atribulações de um grupo de teatro a trabalhar numa peça adaptada do romance, com o encenador, interpretado por Fernando Heitor, a acumular a composição da figura de Dom Bibas. Está longe de ser indiferente que tudo isto aconteça no Portugal dos primeiros anos depois do 25 de Abril, já que o ziguezague entre a transparência do quotidiano e os artifícios do palco vai dando corpo a uma interrogação que, afinal, podemos reconhecer como uma obsessão que irá circular por toda obra do realizador: “Como pertencer a este lugar de nome Portugal?”

Daí que o documentário Ma Femme Chamada Bicho (1976), primeira realização de José Álvaro Morais no pós-25 de Abril, envolva também ressonâncias temáticas e simbólicas muito especiais. Aliás, a começar pelo título, expressão bilingue com que Arpad Szenes, ele próprio nascido na Hungria e naturalizado francês, se refere a sua mulher, Maria Helena Vieira da Silva. Dir-se-ia que os espaços íntimos que o filme dá a ver são também sobressaltos das palavras portuguesas, de algum modo espelhados nas formas pictóricas do trabalho de cada membro do casal.

Algo da mesma família ecoa em Zéfiro (1993), uma curta que, com os seus 48 minutos de duração, tendemos a classificar como média-metragem. Também aqui há um impulso documental – dizia o cartaz: “um filme sobre Lisboa, a última das cidades mediterrâneas…” – que cedo se transfigura em deambulação ficcional. Assim, a travessia do Tejo num cacilheiro apresenta-se como uma viagem cuja objetividade vai ser posta em causa por personagens que parecem provir de um mundo de fantasmas, acabando mesmo por motivar uma súbita “rutura” geográfica, encaminhando-nos para o Alentejo e o Algarve, deparando com a melancolia de um mar que, afinal, “ainda” não é o Mediterrâneo…

Passado e presente

Pensamos e repensamos Portugal através dos filmes de José Álvaro Morais, como se a ficção, sempre assombrada por algo de perversamente documental, envolvesse a recriação dos mapas (geográficos ou afetivos, simbólicos e políticos) em que conhecemos, ou julgamos reconhecer, as nossas identidades. Peixe-Lua (2000) e Quaresma (2003), os seus dois títulos finais, ambos marcados pela presença central de Beatriz Batarda, são peças emblemáticas de tal dinâmica criativa.

Em Peixe-Lua, a decisão de uma mulher desistir do seu próprio casamento incendeia relações pessoais e familiares. Em Quaresma, o funeral de um dos membros mais velhos da família parece enredar a morte que passa com uma energia vital que quer passar para lá das certezas adquiridas pelos hábitos ou pela educação.

Os dramas encenados por José Álvaro Morais confrontam-nos, assim, com personagens próximas das suas raízes, ao mesmo tempo vivendo sempre através do desejo ou da miragem de um frágil exílio sentimental – são fantasmas antigos, contos morais que se colam ao nosso presente.

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