O debate sobre os limites do poder do Estado em relação às religiões volta ao centro das atenções em Angola. O Governo lançou uma consulta pública sobre a proposta de alteração da Lei da Liberdade Religiosa e de Culto, reacendendo discussões sobre o papel do Estado laico diante da fé.
Entre as mudanças previstas na nova proposta está a exigência de formação superior em Teologia para o reconhecimento de líderes religiosos, tanto nacionais quanto estrangeiros. Segundo o Governo, a medida visa conter o crescimento desordenado de seitas e combater a atuação de falsos profetas.
O ministro da Cultura, Filipe Zau, afirma que a intenção é garantir mais estrutura no relacionamento entre o Estado e as confissões religiosas.
“É neste contexto que o Ministério da Cultura entende ser fundamental proceder à revisão da atual legislação. O objetivo é ajustá-la à realidade dinâmica do nosso tecido social, assegurando uma maior equidade, transparência e eficácia no relacionamento entre o Estado e as confissões religiosas, garantindo que a nova proposta de lei venha a refletir um consenso amplo e responsável”, disse.
O papel do Estado laico
A proposta, no entanto, levanta questões sobre até onde pode ir a intervenção estatal em assuntos de fé. O professor universitário de Direito Eclesiástico Celestino Nobre argumenta que o Estado não pode ser apenas espectador.
“Num Estado democrático de direito, onde há pluralidade de fé e de visões, é necessário que haja uma regulamentação jurídica sobre a matéria religiosa. O Estado deve regular o mínimo necessário para garantir a convivência entre os cidadãos”, afirmou.
Segundo o jurista, liberdade religiosa não implica ausência de regras, mas uma convivência equilibrada entre crenças diversas.
“Não é admissível que um pastor, no exercício da sua liberdade religiosa, se aproveite de pessoas psicologicamente frágeis para obter ganhos económicos ou para subtrair bens. Isso fere os princípios da fé e da dignidade humana”, acrescentou.
Impacto das seitas
O sociólogo Albino Pakisi também defende a proposta, que considera uma resposta a um antigo apelo da sociedade angolana.
“Na verdade, é uma exigência que a população angolana e também muitos intelectuais pediam ao Governo – a palavra de Deus não pode ser pregada por qualquer pessoa”, contou.
Pakisi alerta para o avanço desordenado de igrejas em espaços públicos que deveriam ser voltados à educação e à cultura. “Quem vive em Angola sabe: em cada canto encontramos uma igreja. Quando devíamos ter escolas, centros de formação, centros recreativos – são as igrejas que estão a tomar esse lugar – e muitas com promessas falsas”, diz.
O sociólogo vai mais além e critica a influência externa sobre o cenário religioso angolano: “Nós temos em Angola um marketing religioso que vem do Brasil e que está a dar cabo do tecido social. Essa proposta é das melhores coisas que o Governo podia fazer.”
Formação teológica: barreira ou qualificação?
Apesar das intenções do Governo, a exigência de um diploma em Teologia suscita dúvidas quanto ao direito constitucional à liberdade religiosa.
Para Celestino Nobre, a medida pode representar uma barreira ao exercício da fé. “Se me dizem que, para ser líder espiritual, devo ter formação teológica superior, estão a colocar um obstáculo externo ao exercício da liberdade religiosa – é como se o exercício da liberdade estivesse a ser beliscado.”
Ainda assim, reconhece a necessidade de critérios mínimos. “Não basta ler a Bíblia para se tornar pastor. A comunicação da mensagem exige preparo. Não é aceitável que alguém fale sobre Graça ou Salvação sem saber o significado das palavras que está a usar”, sublinha.
Pakisi compartilha da mesma visão, afirmando que formação teológica não apaga a vocação religiosa: “A palavra de Deus é útil, mas é muito perigosa para desestruturar as famílias quando quem a prega não tem noção do que está a fazer. Um bacharelato de três anos em Teologia seria muito importante para o nosso país.”
A proposta do Governo prevê que os líderes religiosos já estabelecidos não sejam afetados, respeitando os chamados direitos adquiridos. As novas exigências valerão apenas para aqueles que pretendem ingressar na liderança religiosa a partir da aprovação da nova lei.
O debate está lançado. A consulta pública segue em curso, e o Governo angolano promete ouvir a sociedade civil, as igrejas e os especialistas antes de avançar com a nova redação da lei.
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