No coração do Atlântico, há uma cidade portuguesa que desempenhou um papel decisivo em momentos-chave da história nacional, mas que hoje muitos não conseguem sequer localizar no mapa. Falamos de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira, Açores — uma cidade que foi, por duas vezes, capital de Portugal e que, apesar do seu passado glorioso, permanece relativamente discreta no panorama turístico nacional e internacional.
A sua localização geográfica, a meio do Atlântico, transformou Angra, desde cedo, num ponto de passagem obrigatório das rotas oceânicas entre a Europa, África e América. Segundo o blogue Vaga Mundos, foi em 1534 que Angra foi elevada a cidade — a primeira dos arquipélagos portugueses com esse estatuto. A sua baía segura e bem localizada servia de abrigo às embarcações da Carreira da Índia e outras expedições transatlânticas, fazendo da cidade um entreposto de comércio, reabastecimento e reparação naval.
Este protagonismo marítimo foi acompanhado de um desenvolvimento urbano expressivo. Angra cresceu com edifícios religiosos, estruturas defensivas e centros administrativos, tornando-se um elo essencial entre o reino de Portugal e os seus territórios ultramarinos.
Durante a crise de sucessão de 1580, após a morte do rei D. Henrique sem herdeiros diretos, Angra do Heroísmo assumiu um papel central na resistência à união dinástica com Espanha. Conforme recorda o site NCultura, a cidade apoiou D. António, Prior do Crato, e entre 1580 e 1582, serviu como capital simbólica do reino, ao manter uma governação autónoma em nome da independência portuguesa.
A fidelidade à causa nacional teve repercussões duradouras. Em 1641, já após a Restauração da Independência, a população angrense expulsou as forças espanholas do Forte de São João Baptista, no Monte Brasil. Como forma de reconhecimento, o rei D. João IV atribuiu a Angra o título de “Sempre Leal Cidade”, numa carta régia que permanece como símbolo de coragem e resistência.
Mais de dois séculos depois, a cidade voltou a estar no centro das decisões políticas portuguesas. Em 1830, no contexto da guerra civil entre liberais e absolutistas, D. Pedro IV instalou-se em Angra, que passou a funcionar como capital do governo liberal em exílio. Foi a partir da Terceira que se organizou a campanha militar que culminaria no histórico Desembarque do Mindelo, e na vitória liberal.
De acordo com o NCultura, foi também em Angra que se deram passos pioneiros no caminho da democratização: aboliram-se os morgadios, extinguiram-se tributos feudais e proclamou-se a liberdade de ensino. A cidade acolheu ainda a primeira eleição municipal por sufrágio em 1831, reforçando o seu papel como bastião do constitucionalismo em Portugal.
A relevância histórica de Angra foi várias vezes formalmente reconhecida. D. Maria II atribuiu-lhe o título de “Mui Nobre, Leal e Sempre Constante Cidade de Angra do Heroísmo”. Mais tarde, a cidade foi condecorada com a Ordem Militar da Torre e Espada, do Valor, Lealdade e Mérito, uma das mais altas distinções do Estado português.
Além disso, Angra foi a primeira cidade portuguesa a ser alvo de um plano de reestruturação urbana moderna, ainda no século XIX — mais um marco da sua ligação precoce à modernidade política e administrativa.
Uma cidade que renasceu das ruínas
O dia 1 de janeiro de 1980 ficou gravado na memória dos angrenses. Um violento sismo, com magnitude de 7,2 na escala de Richter, destruiu grande parte do centro histórico da cidade, provocando dezenas de mortos e vastos danos materiais. A resposta à tragédia foi rápida, com apoios nacionais e internacionais a permitir uma reconstrução respeitadora do traçado urbano e das tipologias arquitetónicas tradicionais.
Três anos depois, em 1983, esse esforço foi internacionalmente reconhecido: a UNESCO declarou o centro histórico de Angra do Heroísmo Património Mundial da Humanidade, sublinhando o seu valor cultural e histórico excecional.
Angra distingue-se pelo seu casario pintado com cores suaves e ruas simétricas, herança do planeamento urbano renascentista. Igrejas barrocas, conventos, praças e dois fortes marítimos dos séculos XVI e XVII — o já referido Forte de São João Baptista e o Forte de São Sebastião — compõem o perfil militar da cidade, essencial para a defesa das rotas comerciais do império português.
Durante os séculos áureos da expansão marítima, Angra foi porto de abrigo de navios carregados de especiarias, metais preciosos e mapas, e ponto de encontro de comerciantes, religiosos e cartógrafos de várias partes do mundo. Apesar do declínio do tráfego com o advento dos navios a vapor, o legado cosmopolita e marítimo continua espelhado na arquitetura e na identidade cultural da cidade.
Hoje em dia, Angra do Heroísmo já não ocupa o papel central que teve na história de Portugal. Apesar de receber visitantes, a sua localização insular contribui para a menor visibilidade, quando comparada com centros turísticos como Lisboa, Porto ou Faro.
No entanto, para quem procura autenticidade, história e paisagens de tirar o fôlego, Angra do Heroísmo continua a ser um tesouro escondido em pleno Atlântico — uma cidade que, embora muitas vezes ausente dos roteiros turísticos convencionais, foi duas vezes capital do Reino de Portugal. E que merece, por direito próprio, um lugar de destaque na memória colectiva nacional.
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