‘Esse conflito está em nós’

Há quase uma década, a escritora Beatriz Bracher não para de pensar na Guerra do Paraguai. Tanto que precisa se conter quando alguém lhe confidencia não saber nada sobre o assunto.

— Quando vejo, já estou falando há dez minutos — conta a autora de 64 anos, que recebeu o GLOBO em sua casa, em São Paulo.

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Bracher está escrevendo uma trilogia sobre o maior conflito armado da América do Sul, que opôs o Paraguai, à época governado por Solano López, à Tríplice Aliança, formada por Brasil, Argentina e Uruguai. Motivada por tensões regionais, como disputas por fronteiras e direito de navegação na bacia do Prata, a guerra durou de 1864 a 1870, raspou os cofres do Império, acelerou a Abolição e a derrocada da monarquia e profissionalizou o Exército. As tropas aliadas arrasaram o Paraguai, que perdeu 60% de sua população. De ambos os lados, a maioria das mortes foi causada por doenças endêmicas, como o cólera, e não pelos combates.

O recém-lançado primeiro volume de “Guerra” narra ofensiva paraguaia e a reação aliada, estendendo-se de novembro de 1864 a março de 1866. No livro, a tomada do Forte Coimbra, na divisa com o Paraguai, é contada por oito narradores, como o tenente-coronel Jorge Maia, que, dramático, relata: “a Província estava invadida e o Forte de Coimbra era o primeiro a receber o batismo de fogo e sangue do inimigo”.

Romancista premiada, Bracher desta vez preferiu abdicar das próprias palavras. “Guerra” é uma colagem de trechos de depoimentos de personagens da campanha militar coletados em livros, periódicos e documentos históricos — os outros dois volumes, previstos para sair entre este ano e o próximo, seguirão o mesmo método. O primeiro tem 112 narradores, como Pedro II e seu genro, o Conde d’Eu, o engenheiro e abolicionista negro André Rebouças e anônimos como João Coelho de Almeida, escrivão aprisionado pelos paraguaios.

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Embora a ditadura militar e a democratização sirvam de pano de fundo para seus romances “Não falei” e “Antonio”, Bracher não tem predileção pela ficção história ou interesse por conflitos armados. O que a atrai são dramas humanos, como os narrados nas “Memórias” do Visconde de Taunay, que passou dois anos no front do Mato Grosso. A trilogia foi moldada por esse desejo de conhecer melhor não a história do conflito, mas a das pessoas que viveram a guerra no cotidiano.

— Pode ser viagem minha, mas será que haveria tanto racismo no Brasil se soubéssemos mais histórias da escravidão? Quem foram os negros que fugiram? Tinham família? Como faziam para sobreviver? Que castigos sofriam? — especula a autora. — A Guerra do Paraguai está em nós, brasileiros. Ela nos formou, está no nosso jeito de nos relacionar, de fazer política, é a origem o Exército! Eu não queria escrever um livro de história sobre a Guerra do Paraguai, mas mostrar isso.

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Para amenizar o patriotismo de seus narradores, todos homens (e quase todos brancos) interessados em exaltar a bravura do Exército, Bracher procurou ativamente trechos que descrevessem a fauna e a flora, abordassem as terríveis condições sanitárias e os tratamentos médicos no front e mencionassem negros, indígenas, crianças, mulheres e trabalhadores subalternos. O tenente-coronel Albuquerque Bello registra que três mulheres haviam parido “em marcha” ao terem de deixar uma cidade à pressas: “que aperto!”.

Inspiração na época e hoje

Se persiste a impressão de que literatura brasileira silencia sobre a Guerra do Paraguai é porque o tema, em geral, interessou mais a historiadores que a literatos, embora a produção poética e ficcional sobre o conflito tenha começado quando os exércitos ainda estavam mobilizados, explica Leonardo Silva, pesquisador da Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos. Ainda jovens, autores como Castro Alves e Machado de Assis publicaram versos nacionalistas na imprensa — Machado, aliás, também aborda o assunto em “Iaiá Garcia”. Críticas à guerra apareciam na forma de sátira e caricaturas nos jornais e em romances como “Memórias do sobrinho do meu tio”, de Joaquim Manuel Macedo (que antes havia escrito o ufanista “O culto do dever”).

As referências adentram pelo século XX, em “Triste fim de Policarpo Quaresma”, de Lima Barreto, o poema “Tristeza do Império”, de Carlos Drummond de Andrade, e o conto “São Marcos”, de Guimarães Rosa, entre outros textos. Rita Bittencourt, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, lembra a campanha militar inspirou até romances mais recentes, como “Mar paraguayo” (1992) e “Meu tio Roseno a cavalo” (2000), de Wilson Bueno, e “Paraízo-Paraguay” (2020), de Marcelo Labes.

Bracher selecionou meia dúzia de ficções sobre o conflito, mas só vai ler depois de concluir a trilogia. Aliás, ela insiste que seu projeto também é ficção. O que mais lhe chama atenção nos relatos de seus personagens, diz ela, não são tanto os fatos narrados, mas a linguagem.

— Às vezes eu entendo as palavras, mas não o raciocínio deles, porque o português que eles usam tem uma outra lógica, é bonito e esquisito — conta a escritora, que em 2017 fundou a Chão Editora, para publicar obras históricas, correspondências e diários (como os de André Rebouças).

Bracher se afeiçoou a seus narradores e tem até seus preferidos: Rebouças, Visconde de Taunay, Albuquerque Bello e o cadete Dionísio Cerqueira, que se voluntariou para ir à guerra.

— Não queria que achassem que deturpei o que eles escreveram — confessa a escritora, que diz reconhecer a si mesma nesse romance escrito com palavras alheias. — O olho de quem seleciona e organiza trechos é o mesmo de quem escreve. Me disseram esses dias que “Guerra” lembra muito meus outros livros. Achei engraçado.

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