Difícil idealizar como um homem em sua casa em Bruxelas possa ser um dos máximos influenciadores da política de um pequeno país na América do Sul. Para isso está o exemplo da relação do Equador com Rafael Correa, 62, ex-presidente que vive asilado na capital belga.
Um mês após a eleição geral no país, o economista que permaneceu por dez anos no poder após despontar em 2007 como uma liderança política jovem, com elogiada trajetória acadêmica e habilidades que incluíam falar quíchua, insiste que houve fraude.
Correa afirma que pouca atenção tem sido dada ao tema e fala sobre o assunto nesta entrevista, a primeira ao Brasil neste universo eleitoral. A diferença oficial de votos entre a sua candidata, Luisa González, e o reeleito Noboa, porém, foi muito expressiva: mais de 1,1 milhão.
As missões de observação eleitoral não embasaram as afirmações sobre fraude e confirmaram a reeleição de Noboa, ainda que a Organização dos Estados Americanos tenha dito que observou “casos isolados nos quais a tinta da caneta manchava a cédula quando esta era dobrada” e que “os inconvenientes foram resolvidos assim que observados”.
Em resposta, a autoridade eleitoral afirma que a Constituição só prevê que urnas sejam reabertas quando há inconsistências, como falta de assinaturas, nas atas eleitorais daquele centro, para que assim os votos possam ser recontados. “A lei não estabelece a abertura de urnas por denúncias de supostas tintas transferíveis, e todas as missões de observação eleitoral ratificaram a absoluta transparência do processo.”
Rafael Correa fala por videochamada sobre as fragmentações da esquerda, sua relação com o movimento indígena e com Lula (PT) e as razões para a escolha do nome de Luisa González.
Os fiscais eleitorais do Revolução Cidadã possuem cópias das atas de votação. Se houve fraude, uma alternativa não seria publicar todas essas cópias para comprovar? Se a fraude tivesse sido digital, sim, mas é uma fraude nas urnas, e isso é o que não se entende.
Recebemos essas atas em um processo de apuração rápida, e elas nos dão o mesmo resultado que o CNE porque já vieram com os resultados fraudulentos. Há pontos cegos, que foram descuidos nossos. Você tem razão, tínhamos um delegado em cada mesa, 42 mil no total, mas, quando as cédulas de votação são impressas, ninguém as revisa.
Elas são impressas na gráfica militar, que está sob controle do governo. Quando os kits eleitorais são montados –com as cédulas, as canetas, os materiais para as urnas–, ninguém controla esse processo. Assim, eles podem incluir cédulas e votos pré-preparados. E foi isso que fizeram.
É necessário realizar um exame forense das cédulas. E não nos permitiram abrir uma única urna. Por quê? É claro que a fraude está lá. Já sabíamos que havia fraude –matematicamente, criticamente o resultado é impossível. Então isso [a análise das tintas] acendeu nosso alerta.
Chama a atenção que líderes políticos importantes do Revolução Cidadã, como Pabel Muñoz ou Aquiles Álvarez (prefeitos de Quito e Guayaquil, respectivamente, as cidades mais importantes), tenham prontamente reconhecido a vitória de Noboa. Parece haver uma insatisfação com o fato de o sr. ter escolhido González, uma pessoa de máxima lealdade, em vez deles, que têm raízes sociais. Pergunte a eles agora, porque estão convencidos de que houve fraude.
Foram feitas pesquisas que nos colocam como vencedores depois da eleição. Isso poderia ser inverossímil porque, após a eleição, ocorre o que se chama de triunfalismo, um efeito que pode inflar os pontos do vencedor. Ou seja: se você ganha com 40%, após a eleição 50% dizem ter votado em você, pois as pessoas querem se associar ao vencedor por várias razões, até medo. Apesar disso, seis pesquisas pós-eleitorais nos colocam em empate técnico ou com Luisa como vencedora.
Claro, é um pouco preocupante que haja a indisciplina, mas também é preciso entender o caos daquele momento. Até para reagir, pode ter havido descoordenação.
O que chama de indisciplina não é um sinal de descontentamento na esquerda? Sempre se quer procurar a quinta pata do gato. Claro, há diferentes grupos na esquerda. Mas asseguro que isso é muito menor do que em outros movimentos políticos. Só a nós perguntam isso.
Estou perguntando porque estamos em uma entrevista com o sr. O Revolução Cidadã é uma amálgama. Eu sou conservador moralmente, não acredito no aborto, não acredito no casamento gay, mas há pessoas que acreditam. Naturalmente, há essas divisões, que são normais e até saudáveis em um movimento político.
Acredito que todos dizem que houve fraude. O que falta consenso é sobre como. Num momento disseram que a questão das tintas era como algo impossível. Me ridicularizaram. Mas descobrimos que há dois tipos de canetas, sendo uma com tinta transmissível e que desaparece. Os loucos são eles.
Lula parabenizou Noboa menos de 24 horas após o segundo turno. O que pensa da resposta dele? Bom, eu não teria me apressado. Mas todos sabemos o peso que o Itamaraty tem no Brasil. Fidel Castro dizia: “O único país do mundo governado por um prédio é o Brasil, porque é governado pelo Itamaraty.” Há uma influência muito forte de uma diplomacia que age praticamente de forma independente do governo. É preciso considerar se Lula teve ou não informações em tempo hábil antes de o Itamaraty se pronunciar.
Como vê a dificuldade da esquerda na região em renovar suas lideranças? Ocorre no Equador, no Brasil. Isso não acontece com a direita. Tem certeza de que isso não acontece? Noboa é filho de Álvaro Noboa, um ex-candidato à Presidência. As lideranças não são ruins, especialmente em países em desenvolvimento. Elas são altamente desejáveis. E somos um dos movimentos que mais renovam.
Propor um novo nome é uma coisa. O que quero dizer é que esse nome tenha capital político próprio para ganhar uma eleição. Respeito muito sua opinião e visão, mas é necessário ter capital político próprio? Você quer que tenham o peso político das lideranças fundadoras? Isso não existe. E o peso político que têm, em parte, vem do partido. Onde está o problema nisso?
As lideranças fundadoras sempre terão mais peso. Na Venezuela, quem terá mais peso do que o comandante Hugo Chávez? O importante é administrar essas lideranças para o bem comum.
O sr. mantém uma relação próxima com o regime. Não acredita que houve erros nos anos de Maduro no poder? Quem não comete erros? Mas me incomoda a hipocrisia. Nunca reconheceriam um governo que invade embaixadas, que ignora refugiados políticos, que coloca seu próprio vice-presidente sem respeito às leis, que não pede licença para ser candidato. E isso não é Maduro, é Noboa. Isso não significa que não tenham sido cometidos erros, que eu mesmo às vezes pedi publicamente que se corrigissem.
Quais erros? Por exemplo, que deviam abrir as urnas, mas não fizeram porque têm seus mecanismos internos. Noboa também não o fez. Mas, no caso de Noboa, não se questiona. No caso de Noboa, não acontece nada. Essa dupla moral é terrível.
Raio-x | Rafael Correa, 62
Nascido e criado em Guayaquil, escoteiro na infância e juventude, formou-se economista no Equador e completou a formação superior na Bélgica e nos EUA. Professor, teve breve experiência como ministro das Finanças em 2005, e em 2007 conquistou o Palácio de Carondelet. Governou por uma década, em dois mandatos. Em 2020, foi condenado a oito anos de prisão por um caso de corrupção envolvendo a construtora Odebrecht, que ele nega e classifica como perseguição judicial. Vive asilado na Bélgica. É casado e tem três filhos.
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