Um dos maiores escândalos financeiros da história recente do Uruguai gira em torno de um elemento inusitado: vacas que, ao que tudo indica, nunca existiram. O caso, investigado pelas autoridades locais, envolve pelo menos três empresas, mais de seis mil investidores, e um rombo estimado em US$ 350 milhões — cerca de R$ 1,9 bilhão, na cotação atual.
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No centro da crise, segundo reportagem da agência Reuters, está a empresa Conexión Ganadera, que durante anos atraiu pequenos e médios investidores com a promessa de retornos fixos em dólares por meio de um esquema de investimento em gado. A operação funcionava de forma simples: o investidor comprava vacas — de fato ou no papel — que seriam criadas e vendidas com lucro por empresas do setor.
A contadora Sandra Palleiro, de 60 anos, é uma das vítimas. Ela viajou 600 quilômetros de Montevidéu até a fronteira com o Brasil em busca das 61 cabeças de gado que, segundo documentos oficiais, pertencem a ela.
— Alô, muuu! Será que uma de vocês é minha? — disse em tom de esperança, ao se aproximar de uma cerca em uma fazenda no departamento de Artigas.
A busca terminou em frustração. Com os números de identificação das vacas impressos em mãos, ela tentou conferir os brincos numerados nos animais do outro lado da cerca, usando a câmera do celular. Poucos números batiam e as vacas começaram a se afastar.
— É como cair em um pesadelo — disse a mulher à Reuters.
Promessa de lucro fixo atraiu milhares
A promessa de rendimentos entre 7% e 10% ao ano em dólares, aliada a materiais promocionais com imagens idílicas de gado Hereford e à chancela de um sistema estatal de rastreamento bovino, fez com que o investimento parecesse seguro.
O Uruguai, com apenas 3,4 milhões de habitantes, tem mais de 12 milhões de cabeças de gado — e um dos sistemas de rastreabilidade mais elogiados da América Latina.
Mas o que parecia um negócio sólido virou um escândalo. Em novembro de 2023, o empresário Gustavo Basso, um dos sócios da Conexión Ganadera, morreu ao bater seu carro Tesla a mais de 200 km/h. A perícia concluiu que foi suicídio. Pouco depois, começaram os atrasos nos pagamentos aos investidores. Em janeiro, a empresa admitiu estar com um rombo de cerca de US$ 250 milhões.
Mais de 700 mil vacas podem ser ‘fictícias’
Um levantamento feito por um administrador judicial revelou que apenas 70 a 80 mil das 804.604 vacas alegadamente administradas pela Conexión Ganadera poderiam ser localizadas. Ou seja, mais de 700 mil vacas seriam “fantasmas” — nunca existiram ou desapareceram do sistema. Em outro caso, uma empresa do grupo usou 3.740 vacas como garantia de empréstimo, mas só conseguiu apresentar 49.
O que as vítimas buscam saber, agora, é como isso passou despercebido por tanto tempo. O Ministério da Pecuária, responsável pelo registro nacional de gado, se recusou a falar com a Reuters.
Advogados das vítimas apontam falhas graves no sistema de controle. Segundo eles, os brincos de identificação e os dados inseridos no sistema oficial eram responsabilidade das próprias empresas — sem verificação independente.
— O registro reflete o que a empresa informava. O problema é que não havia controle sobre o que era fornecido — disse o advogado Nicolás Hornes, que representa quase 100 vítimas.
Ele afirma ter visitado fazendas onde o número real de animais não batia com o declarado.
Investigações e prisão preventiva
Três empresas estão sob investigação: Conexión Ganadera, República Ganadera e Grupo Larrarte.
Um dos executivos da Larrarte, Jairo Larrarte, está preso preventivamente desde abril, acusado de apropriação indevida, fraude e emissão de cheques sem fundos. Seu advogado afirma que ele está cooperando com as autoridades e já devolveu parte do gado a investidores.
A República Ganadera tentou entrar com pedido de falência voluntária em novembro, mas teve o pedido negado pela Justiça, que abriu investigação criminal.
Já os sócios da Conexión Ganadera — Pablo Carrasco, sua esposa Ana Iewdiukow e a viúva de Basso, Daniela Cabral — estão sendo investigados por fraude e desvio de recursos. Todos tiveram os passaportes apreendidos e estão proibidos de deixar o país. Os advogados dos envolvidos não quiseram comentar os casos antes do depoimento oficial à Justiça.
Enquanto isso, vítimas como Sandra Palleiro, que juntou a vida inteira para investir no que parecia ser um futuro tranquilo, continuam buscando respostas.
— Colocamos ali todas as nossas economias, com muito esforço — lamentou: — Agora queremos justiça.
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