“Precisamos de um milagre, rezem muito por nós”, desabafa Éme, que prefere não usar o seu nome verdadeiro com receio de represálias. De uma classe privilegiada, acredita que Nicolás Maduro será derrotado nestas eleições. “As pessoas estão fartas de embustes, este senhor tem mais de 12 mil milhões de dólares no bolso, já basta. Nem numa guerra as coisas vão tão mal”.
“Os hospitais não funcionam, não há médicos e um doente que precise de ser operado tem de levar álcool, gaze e até fio de sutura. Há quem morra pelo caminho”, garante. “As ruas estão cheias de sem-abrigo, não há água potável, os transportes públicos não funcionam, a electricidade falha”. Éme tece um rol de miséria.
“Um professor ganha dez dólares mensais”, cerca de 360 bolívares. “Um frango custa seis dólares, um quilo de arroz ou farinha 1,5 dólares, meia dúzia de ovos ou um quilo de batatas quatro dólares”. “Os que fazem negócios com o governo – Maduro fecho mais de 2.000 empresas – ganham milhões e o povo vive com fome”, acusa. A corrupção é um problema grave e até Zapatero é dono de uma mina de ouro, segundo disse em tribunal Hugo Carvajal, “El Pollo”, como ficou conhecido o ex-chefe da Inteligência venezuelana.
Para muitos a única opção é emigrar. “Éramos 32 milhões, nove milhões saíram do país. Há nove milhões de exilados. Os jovens emigraram, quem se ocupa dos velhos que ficam à porta dos lares?”.
Cristina não ficou para ver. Regressou da Venezuela um ano depois da morte do marido, também português, e deixou tudo o que construíram numa vida para trás. A situação tornou-se insuportável. Voltou este ano a Caracas, cinco meses para vender os bens da família e tratar de burocracias. A casa na capital, então avaliada em 600 mil dólares, foi agora vendida por 120 mil.
“Quando vim embora, em 2019, Caracas parecia o Faroeste, com gangs e assaltos por todo o lado, uma insegurança enorme”, conta. “No sítio onde morava, até chegar a casa era preciso atravessar diversas cercas de arame, colocadas para proteger os moradores”. Os funcionários públicos eram obrigados a ir a manifestações do regime, sob pena de sofrerem represálias. Ela veio, um irmão ficou.
“Amo a Venezuela, é o meu país”, afirma Eme. Por isso, recusa-se a sair. Acredita que “o povo despertou da mentira” e “é agora ou nunca”. Mas sabe que vai ser difícil. E isso começa nos centros de votação dos bairros mais necessitados, que só funcionam graças à ajuda de particulares: “canetas, papel, água, comida, o governo não dá nada”. E prepara-se para ir a casa buscar 600 sanduíches e bolachas para distribuir por quem vai estar sentado 20 horas nas mesas de voto.
Só perto de 1% dos emigrantes vai poder votar
Venezuelana filha de portugueses, Esther é médica e está em Portugal há seis anos. Como tantos amigos a viver fora, não vai votar nestas eleições. “Há pouco tempo houve um referendo e toda a gente pôde votar sem problemas, mas desta vez os registos abriram poucos dias e em cima da hora, com os sistemas sempre indisponíveis.
Há cerca de oito milhões de venezuelanos emigrados. Desses, aproximadamente cinco milhões tem idade para votar, segundo a Organização Internacional para as Migrações. No entanto, devido às exigências impostas pelo governo para o registo eleitoral no estrangeiro, menos de 70 mil venezuelanos vão poder votar (abaixo do número das últimas eleições, em 2018).
Se a comunidade de portugueses na Venezuela é grande – entre 1950 e 1969 emigraram para aquele território perto de 75 mil portugueses, segundo dados oficiais, mais de metade madeirenses (e um número significativo do distrito de Aveiro) -, o número de venezuelanos em Portugal triplicou desde 2015, para perto de dez mil. Muitos são retornados e têm dupla nacionalidade.
Esther conta que um grande número de amigos a viver em Miami, onde a Venezuela não tem consulado desde 2012, está a viajar para Caracas para exercer o seu direito de voto. “Não sabem se vão conseguir entrar, se vão ser presos ou mandados para trás, mas vão”. Também ela acredita que é agora ou nunca.
Isto, depois de diversas delegações internacionais terem sido impedidas de entrar na Venezuela pelo governo de Maduro. Entre os diversos grupos de observadores, está um formado por antigos presidentes de países latino-americanos e a missão de dez eurodeputados do PPE – Partido Popular Europeu. Recentemente eleito para o parlamento europeu pela AD, Sebastião Bugalho integrava a comitiva: “Como português estou magoado, ofendido, preocupado com o que possa acontecer na Venezuela. […] Que país livre e transparente expulsa visitantes antes das eleições? Nenhum”, declarou à imprensa espanhola, em Madrid.
Entre a esperança em Maria Corina e a ameaça de Maduro de um banho de sangue
Apesar de ser a terceira vez que vai a votos, este será o maior desafio de Nicolás Maduro. As sondagens no país dão vitória folgada à oposição, liderada por Edmundo González Urrutia, um ilustre desconhecido apontado em segunda linha por Maria Corina Machado, impedida pelo Supremo Tribunal de Justiça, alinhado com o governo, de se candidatar a cargos públicos durante 15 anos.
Mas todos sabem que é a líder sombra da coligação Plataforma Unitária Democrática. María Corina Machado – uma mistura entre o fascínio de Evita e a determinação de Thatcher, como escreveu “The Spectator” – e Edmundo González Urrutia são a dupla que pode mudar tudo.
Maria Corina Machado, 56 anos, promete acabar com o regime autocrático de Maduro e dar a quem quer liberdade para trabalhar e ser independente. “Aqui decretamos o fim do socialismo!”, gritou num comício sob fortes aplausos. Uma “liberal clássica, com coragem de uma revolucionária”. Mais de 100 dos seus funcionários foram presos e qualquer pessoa que a ajude na campanha, com comida, alojamento ou transporte, corre o risco de ser presa.
Quanto maior a repressão, mais forte a vontade da população de se rebelar. Mas as coisas não são assim tão fáceis. O governo de Maduro já foi acusado de fraude eleitoral antes – as eleições de 2018 foram consideradas ilegítimas por uma aliança formada por 14 nações latino-americanas, o Canadá e os Estados Unidos.
Desta vez, Maduro permitiu a coligação de partidos da oposição, um acordo que resultou num alívio das sanções económicas impostas pelos Estados Unidos, mas num dos seus comícios ameaçou que um “banho de sangue” e uma “guerra civil fratricida” podem ter lugar caso não ganhe as eleições. Éme teme o que poderá acontecer entre o anuncio do resultado das eleições e a entrega do poder, em Janeiro. “Quase seis meses é um tempo muito duro de enfrentar”.
Ana Gomes, ex-candidata à Presidência da República e antiga deputada do PS, lembra que “não é a primeira vez que a Venezuela impede a entrada de observadores independentes. “Maduro está podre desde que nasceu, o regime é uma aberração do ponto de vista democrático e não é primeira vez que tem uma atitude de prepotência disfarçada de soberania, com medo que denunciem a fraude que aquilo é”.
A diplomata acredita que neste momento pode vencer as eleições “Maria Corina Machado ou o rato Mickey, as coisas atingiram o limite e a maioria do povo venezuelano quer Maduro fora. Aquilo não é socialismo, não sei porque lhe chamam Partido Socialista Unido da Venezuela. Socialista sou eu, aquilo é uma roubalheira”.
Para a aceitação dos resultados e aquilo que se vai seguir – o governo português garante que tem preparado um plano de emergência para retirar os cidadãos nacionais e luso-descendentes se necessário -, Ana Gomes considera “muito determinante a resposta dos países que mantêm relações com a Venezuela”, se “retiram legitimidade ou dão respaldo” ao actual presidente”. E aí também está “o governo português, que não pode encolher os ombros. Como tem feito nos últimos anos”. “Vi gente do meu grupo politico compactuar com a situação”, diz. E recorda o tempo de “Sócrates e os negócios do BES”.
Na Venezuela são menos cinco horas do que em Portugal. Lá para as duas três da manhã haverá resultados, mas a adrenalina promete manter acordada uma comunidade inteira, desejosa de mudança. E, como diziam Éme ou Esther: “É agora ou nunca”.
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