Dom Quixote acompanhou Mujica durante a doença

Em março, quando estava claro que o fim estava chegando, o jornalista e escritor uruguaio Pablo Cohen visitou o ex-presidente José “Pepe” Mujica em sua austera chácara de Montevidéu e ficou surpreso ao encontrar um dos maiores líderes da esquerda latino-america relendo “Don Quixote”. “Aqui está tudo, [Cervantes] é insuperável”, disse Mujica a Cohen, contou o jornalista ao GLOBO. O ex-presidente do Uruguai (2010-2015) passou seus últimos meses de vida aos cuidados de sua médica Raquel Pannone, um enfermeiro, dois amigos da família e sua mulher, a ex-vice-presidente Lucia Topolanksy. Com quase 90 anos, que iria completar no próximo dia 20, Mujica morreu em casa, como sempre quis. Na mesma casa em que viveu quando foi presidente e preferiu não se mudar para a residência oficial.

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Em abril do ano passado, o ex-presidente foi diagnosticado com câncer de esôfago, um tumor que terminou se espalhando pelo fígado. Por ser um paciente imunodeprimido, Mujica não pôde fazer quimioterapia. Não foram realizados tratamentos invasivos e, na reta final, como ele mesmo decidira, foi usado um sistema de cuidados paliativos. Cohen, autor do livro “Os Indomáveis” (editora Planeta), lançado este ano e que faz uma viagem por toda a trajetória de Mujica e Lucía, ambos ex-integrantes do grupo guerrilheiro Tupamaro, confirmou que o ex-presidente esteve lúcido até o fim. Seu corpo foi enfraquecendo, mas sua mente, frisou o escritor, “sempre esteve perfeita”.

Três semanas antes de falecer, Mujica concedeu uma longa entrevista ao jornalista uruguaio Gabriel Pereyra, do canal Nexo. Nela, disse que a “democracia não é um regime perfeito, mas é o melhor que conseguimos até agora, e temos de cuidar dela”. Nessa entrevista, Mujica elogiou o Quixote de Cervantes:

— Segundo Cervantes, e muitos outros, o surgimento da propriedade significou um avanço, mas também uma desgraça.

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Morre José Mujica, ex-presidentedo Uruguai, aos 89 anos

‘O presidente mais pobre do mundo’

O debate sobre qual é o melhor sistema de governo para um país foi um tema que o acompanhou a vida toda. Uma vida longa, que incluiu muitos anos na luta armada e, com a volta da democracia, a decisão de lutar pelo poder através das urnas.

— Mujica foi um guerrilheiro que abraçou a democracia. O Uruguai o formatou, e ele, depois de abandonar a luta armada e de passar mais de 12 anos na prisão, se tornou um pragmático, sem deixar de ser de esquerda — diz Cohen.

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Sua última visita ao ex-presidente foi parecida com muitas outras. Mujica na poltrona de seu escritório, rodeado de livros, acompanhado por sua médica e sua mulher da vida toda. Ainda falante. Ainda ligado no mundo, e fascinado com o Quixote de Cervantes. O ex-presidente era um leitor voraz, que após o período mais longo — mas não o único — que passou na prisão, entre 1972 e 1985, entrou para a política com um estilo único. Sua marca registrada foi, desde o começo, a simplicidade.

Quando chegou ao poder, em 2010, como o segundo presidente de esquerda da História do país — o primeiro fora Tabaré Vázquez, em 2005 — passou a ser chamado de “o presidente mais pobre do mundo”, algo que lhe parecia estranho, segundo contaram amigos próximos, já que esse era seu modo de vida, não uma estratégia de marketing. A casa onde viveu desde a redemocratização do país era pequena, rústica e sem luxo algum. Apenas um quarto, uma sala, um pequeno escritório e uma cozinha. Do lado de fora, suas plantas, flores, um trator e alguns cachorros. O casal que se conheceu na luta armada, apaixonou-se, suportou mais de dez anos separados e se reencontrou quando o Uruguai voltou a ser um país democrático nunca conseguiu ter filhos. Lucía, como Mujica, também esteve presa e ajudou a planejar uma fuga cinematográfica de mulheres guerrilheiras em 1971.

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Pepe Mujica, aos 89 anos, durante uma coletiva de imprensa no Uruguai — Foto: PABLO PORCIUNCULA/AFP
Pepe Mujica, aos 89 anos, durante uma coletiva de imprensa no Uruguai — Foto: PABLO PORCIUNCULA/AFP

Quem o conhece sabe que sua austeridade e a de Lucía, que nascera numa família rica, era autêntica. Os anos na prisão — incluídos prolongados períodos sem ver a luz do Sol — afetaram sua saúde, mas sobretudo sua forma de ver o mundo. Sua campanha contra o consumismo foi quase tão intensa como sua defesa da democracia e das políticas de justiça social. Em entrevista à revista espanhola Política & Prosa, em novembro de 2023, Mujica disse que “o problema é que confundimos ser com ter. O consumismo nos transforma em compradores compulsivos e nos leva a entender que triunfar na vida é ter riqueza e multiplicá-la. Quando Lenin escreveu que o imperialismo era a última etapa do capitalismo, estava sonhando. Ainda não sabemos qual será a última etapa. Mas esta se chama consumismo. O consumismo gera uma cultura que nos mantém prisioneiros e é muito mais forte que qualquer exército, porque está dentro de nossas casas, nos meios de comunicação, e é subjetivo e emocional”.

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ázquez e Mujica foram as figuras de proa da Frente Ampla uruguaia (uma coalizão de partidos esquerdistas) no início do século e os artífices das vitórias que levaram a esquerda pela primeira vez à Presidência. Foi uma guinada histórica num pequeno país de pouco mais de 3 milhões de habitantes. Depois da ditadura que se estendeu de 1973 a 1985, na qual Mujica esteve detido e foi torturado junto a um grupo de companheiro de armas, a democracia se impôs.

Nesse retorno, Mujica, que não foi um líder tupamaro, mas nunca escondeu sua participação em ações violentas da guerrilha, foi crescendo pouco a pouco. Seu carisma, capacidade de oratória e simpatia o transformaram numa figura central da política uruguaia e também da América Latina. Foi amigo de presidentes como o venezuelano Hugo Chávez e Lula, mas, também, um dos que disseram publicamente que a Venezuela deixara de ser uma democracia. O mesmo disse da Nicarágua.

Seu governo foi progressista, e nos seus cinco anos de mandato, o Uruguai legalizou o casamento gay e o aborto. O projeto de lei que autorizava a interrupção voluntária da gravidez fora vetado por seu antecessor, também de esquerda. Vázquez era médico e conservador. Mujica abraçou causas feministas. Reformas adotadas em seu governo, entre elas a legalização do comércio e consumo de maconha, tornaram-no personagem de culto global. O presidente mais pobre do mundo virou pop.

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Quando deixou a Presidência, voltou para o Senado. Em 2018, renunciou e disse em uma carta estar “cansado da longa viagem”. Menos de um ano depois, candidatou-se novamente e foi eleito. Ocupou o cargo até o ano de 2020, quando decidiu renunciar definitivamente e se aposentar da vida política por motivos de saúde. Os últimos cinco anos foram de descanso, mas sem nunca deixar de se meter na política de seu movimento. Mujica foi, até o final, uma voz determinante no Movimento de Participação Popular (MPP), fundado após redemocratização e integrante da Frente Ampla.

O líder esquerdista foi deputado, senador e, em 2009, foi eleito presidente no segundo turno, com 52,4% dos votos. Seu sucessor foi novamente Vázquez e, nas presidenciais de 2018, uma aliança de direita e centro-direita derrotou a Frente Ampla. Mujica não descansou. Já doente, impulsionou a candidatura de Yamandú Orsi, considerado seu discípulo político, que conseguiu eleger-se presidente em 2024. O discurso de Mujica no encerramento de campanha de Orsi comoveu o mundo:

— É a primeira vez nos últimos 40 anos que não participo de uma campanha eleitoral. E faço isso porque estou lutando contra a morte. Porque estou no fim da partida, absolutamente convencido e consciente… quando meus braços se forem, haverá milhares substituindo-os na luta.

Em suas últimas entrevistas, entre elas ao jornal americano New York Times, Mujica se despediu do seu jeito:

— Só existe uma vida e ela acaba. Você tem que dar sentido a ela. Lute pela felicidade, não apenas pela riqueza.

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Ele disse, em tom de brincadeira, que gostaria de ser conhecido pelo que realmente era: “um velho maluco”. Esse velho maluco nasceu numa família humilde do Uruguai, em 20 de maio de 1935, nos arredores da capital. Sua entrada para a guerrilha tupamara, fundada por Raúl Sendic, ocorreu em 1960. Depois vieram quatro prisões, duas fugas, um longo período de reclusão e a liberdade. Após ter combatido governos civis e militares, Mujica pregou a defesa da democracia até o fim de sua vida.

Pepe Mujica vota em eleição presidencial no Uruguai — Foto: Santiago Mazzarovich / AFP
Pepe Mujica vota em eleição presidencial no Uruguai — Foto: Santiago Mazzarovich / AFP

Morreu sem rancores, assumindo seus erros e deixando lições aos uruguaios e aos que o seguem no mundo.

— Há muitas pessoas loucas com armas atômicas. Muito fanatismo. Deveríamos estar construindo moinhos de vento. No entanto, gastamos em armas. Que animal complicado é o homem. Ele é inteligente e estúpido — disse Mujica na entrevista ao NYT.

Dom Quixote e seus moinhos de vento estiveram entre seus últimos pensamentos e reflexões. Mujica, conclui Cohen, era um “libertário com simpatias anarquistas. Não era marxista, nem comunista, era um homem especial”.

Em visita a Montevidéu, no Uruguai, para reunião da cúpula do bloco sul-americano, presidente Lula se emociona ao encontrar José Mujica — Foto: Dante Fernandez / AFP
Em visita a Montevidéu, no Uruguai, para reunião da cúpula do bloco sul-americano, presidente Lula se emociona ao encontrar José Mujica — Foto: Dante Fernandez / AFP

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