A suspensão do financiamento dos Estados Unidos para ações humanitárias, determinada no início do ano pelo presidente Donald Trump, já compromete a Operação Acolhida, ação brasileira de cooperação internacional destinada ao acolhimento de refugiados da Venezuela.
A gravidade da situação foi detalhada ao governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), no fim de março, em documentos enviados pela “Plataforma Nacional R4V Brasil”, rede formada por dezenas de organizações parceiras, incluindo agências da Organização das Nações Unidas (ONU).
De acordo com os documentos obtidos pela Folha, pelo menos 13 das 34 parcerias humanitárias que atuam na Operação Acolhida tiveram interrupções imediatas e contínuas de atividades. “A suspensão do financiamento dos EUA afetou vários setores, com interrupções significativas já reportadas e riscos adicionais previstos”, diz trecho de um relatório.
O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), agência da ONU responsável pela coordenação da resposta de proteção e abrigo a refugiados, informou que houve redução de US$ 2,62 milhões em seu orçamento no Brasil.
Os estoques de itens essenciais serão esgotados até junho de 2025, incluindo colchões, kits de higiene, fraldas, lâmpadas solares, conjuntos de cozinha, cobertores, entre outros.
Quase 2.000 refugiados já ficaram sem apoio para interiorização no Brasil. O Acnur estima que pelo menos 50 mil pessoas abrigadas na Operação Acolhida podem ter acesso limitado a serviços de assistência, como orientações sobre proteção social e apoio à população vulnerável, incluindo idosos e crianças. Até o fim de março, 54 posições de trabalho foram cortadas pelo Acnur em Roraima, Amazonas e Pará.
No caso do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), houve redução de 60% na equipe de uma instituição parceira que cuida de saúde e nutrição (de 36 para 14 funcionários).
O atendimento presencial foi reduzido pela metade nos abrigos de Boa Vista e Pacaraima, em Roraima, e a organização passou a priorizar apenas casos graves de desnutrição. Houve, ainda, corte de 50% na equipe de um instituto parceiro que atua com oficinas e atividades educativas.
Em carta enviada à Casa Civil da Presidência da República em 28 de março, a representante adjunta do Unicef no Brasil, Layla Saad, alertou que “vem sofrendo os impactos da redução de aportes financeiros advindos da cooperação internacional” e que, por isso, precisava informar que “reduções ocorrerão a partir do mês de abril”.
A Associação Voluntários para o Serviço Internacional (AVSI Brasil), que cuida de documentação, registro de migrantes, apoio jurídico e proteção a grupos vulneráveis, reduziu de 39 para 29 os postos de trabalho. A Fraternidade sem Fronteiras (FSF), que faz a gestão de abrigos, cortou 12 posições.
O Acnur disse à Folha que os efeitos dos cortes já estão sendo sentidos com uma redução de 50% do orçamento para apoio à população refugiada no Brasil.
“Até o final de 2025, sem o financiamento internacional, estima-se que 17 mil pessoas não receberão apoio para acessar vagas de emprego, cursos profissionalizantes e aulas de português, que são cruciais para a integração em suas novas comunidades e para alcançar a independência financeira”, afirmou.
Além disso, diz o Acnur, 4.000 refugiados já ficaram sem assistência direta para necessidades básicas, como alimentação e moradia. Se o financiamento não for disponibilizado no restante do ano, ao menos 29 mil pessoas enfrentarão dificuldades para ter acesso à informação sobre seu direito de pedir asilo, obter documentos legais, incluindo carteiras de identidade e permissões de residência, “que são cruciais para acessar serviços de saúde, educação e sociais”.
O Unicef afirmou que, como as demais organizações, reestruturou suas linhas de atuação para garantir a continuidade dos serviços.
“O Unicef é financiado integralmente por contribuições voluntárias de governos, do setor privado, de fundações e de indivíduos. Neste cenário, o Unicef espera que seus diferentes parceiros mantenham o apoio fundamental a seus programas e, também, ao trabalho essencial de seus parceiros locais e globais”, disse.
Como forma de desafogar a estrutura limitada de Pacaraima, município localizado na fronteira do Brasil com a Venezuela, o governo avalia o plano de enviar refugiados para Boa Vista.
A reportagem enviou questionamentos à Casa Civil, que atua como uma instância de coordenação interministerial da operação, por meio do Subcomitê Federal para Acolhimento e Interiorização.
A pasta disse reconhecer que, “nos últimos meses, a Operação Acolhida sofreu impactos decorrentes de cortes orçamentários no financiamento”, mas afirmou que o governo tem realizado esforços para evitar interrupções e preservar a resposta humanitária.
“Diversos cenários estão sendo avaliados —no curto, médio e longo prazo— sempre com a preocupação central de preservar o acolhimento digno e seguro das pessoas migrantes e refugiadas que chegam ao Brasil”, afirmou.
Segundo o governo Lula, não há expectativa de suspensão ou encerramento das atividades da operação que, desde que foi iniciada, em 2018, já realizou a interiorização de 146.304 imigrantes, para 1.078 municípios brasileiros.
A decisão de Trump de paralisar repasses para ajudas humanitárias foi alvo de uma série de questionamentos judiciais internacionais. Em fevereiro de 2025, um juiz americano ordenou a retomada de quase US$ 2 bilhões em assistência estrangeira para trabalhos já realizados. O presidente americano contestou a decisão, mas, em março, a Suprema Corte dos EUA manteve a ordem.
Ainda assim, na prática, os sinais são de que os recursos não estão chegando.
A Operação Acolhida, conforme planejamento, tem uma necessidade total estimada de US$ 113,42 milhões para suas ações em 2025. Os EUA são, historicamente, o maior doador individual de recursos, conforme os documentos oficiais.
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