“Os mensageiros dos deuses!” É fácil adivinhar qual a ave preferida de Freddy Huaracha. Quando ele fala sobre o condor dos Andes, a sua voz inflecte, com o tom a subir e descer como se estivesse a voar. Os seus braços mexem-se, abraçando a vista do vale em redor do trilho, bem abertos como as enormes asas dos condores. “Os incas consideravam-nos a encarnação do mundo superior, do céu, do futuro”, diz, com os olhos bem abertos. “Agora, dão-nos sorte: cada vez mais pessoas vêm visitar-nos todos os anos.”
Povoado por descendentes do povo local, os Collaguas, o Vale de Colca é o lar de uma próspera comunidade de tecelagem.
Freddy é o meu guia numa subida de cerca de três quilómetros, desde a aldeia de Madrigal até às ruínas da fortaleza pré-inca de Chimpa, construída a 4.400 metros de altitude, que, na sua opinião, é o melhor sítio para avistar estas aves gigantes em todo o Vale de Colca. Esta vasta pradaria nos Andes, no sul do Peru, lar de vegetação rasteira, vulcões borbulhantes e vicunhas, é há muito conhecida pelo desfiladeiro homónimo de Colca. Esculpido pelo lento e esguio rio Colca, é uma das gargantas mais fundas do mundo e atravessa a montanha ao longo de cerca de 80 quilómetros. Mais recentemente, atraiu visitantes devido ao Puqio (‘Primavera’ no idioma Quechua), o primeiro acampamento de estilo safari do país, inaugurado no final do ano passado numa clareira com vista para o rio. Estou a passar algumas noites numa das suas oito tendas de lona para explorar o desfiladeiro e a região em redor.
A Fortaleza de Chimpa é acessível de autocarro, mas a caminhada é gratificante. Até agora, não vi mais ninguém. Aquilo que começou por ser uma estrada de terra batida suficientemente larga para um veículo 4WD transformou-se rapidamente num trilho estreito e vertiginoso que conduz até ao alto da montanha, local onde outrora se ergueu a fortaleza. Abaixo de nós, estende-se a mais bela manta de retalhos agrícolas – quinoa, cevada, milho – cada um com o seu próprio tom dourado. Estão ladeados por eucaliptos e ondulantes ervas-das-pampas, cujos caules são utilizados pelas crianças locais para fazerem papagaios, diz-me Freddy.
O acampamento estilo safari de Puqio é composto por oito tendas de lona, todas com capacidade para duas pessoas.
A esta altitude, todos os passos são uma pequena vitória contra os pulmões que gritam e as pernas que choram. Paro para recuperar o fôlego e Freddy salta sobre a vedação em madeira do trilho para remover os picos de um figo-da-Índia, arrancando o fruto em seguida. “Tome”, diz, entregando-mo. “Isto deve ajudar.” Metade romã, metade melancia, é a injecção de açúcar de que eu precisava para alcançar o cume.
Quando chego lá acima, todos os meus esforços são recompensados. A fortaleza, ainda espantosamente intacta, conta a história do povo local, os Collaguas, que a utilizavam para patrulhar as fontes de água e solo fértil do vale, que ainda é habitado pelos seus descendentes. A partir deste ponto privilegiado, a vista estende-se sobre o dramático desfiladeiro de Colca, mergulhando cerca de 4.000 metros terra adentro – o dobro da profundidade do Grand Canyon, nos EUA, a título de exemplo. Vejo cumeeiras de arenito verde, enormes veios de xisto. E o rabisco esmeralda do rio Colca lá em baixo. “Seja bem-vindo ao reino do condor”, diz-me Freddy. “A vista é simplesmente espectacular, não acha?”
Como se tivesse sido convocada, uma ave aparece. Um macho de condor dos Andes, com o seu colarinho branco, a maior ave voadora do mundo com uma envergadura de asas de cerca de três metros, desliza junto a nós, procurando uma carcaça que lhe sirva de pequeno-almoço. Elegante, imponente, agoirento. Esperamos por mais avistamentos, mas o céu sossega após aquele primeiro voo. Descemos a montanha com uma velocidade satisfatória antes de conduzirmos de volta ao acampamento.
Existe uma certa nostalgia típica dos safaris em Puqio. Nessa noite, iluminado por uma lua cor-de-rosa cheia, encho a minha banheira de estanho para me banhar sob as constelações incas, lendo os poemas de Wordsworth que foram deixados na minha mesinha de madeira. O ambiente é caseiro, desde os chinelos em lã de alpaca ao restaurante sem menu.
No dia seguinte, ao almoço, provo batatas peruanita, cozinhadas sobre pedras quentes com milho orgânico, fava, carne de galinha e de alpaca – tudo envolto na aromática flora da montanha – num “forno de terra” pachamanca. Tudo o que está na mesa veio da horta de Puqio ou dos campos agrícolas em redor. Mais tarde, Freddy conta-me que as tradições culinárias estão a extinguir-se na comunidade. “Antigamente, comíamos milho assado e um pedaço de queijo na escola. Agora é só sanduíches e tudo frito”, diz-me. Ele organiza aulas de culinária para salvaguardar as receitas da sua família e dos vizinhos mais velhos. “Tem de provar o meu pesque de quinoa [papa de quinoa e queijo]”, diz. “É estupidamente bom.”
A técnica culinária do pachamanca é utilizada desde o tempo dos incas.
Vislumbro o seu terreno naquela tarde num passeio a cavalo – outra das actividades propostas por Puqio — nas colinas acima da aldeia vizinha de Yanque. Andando a trote, sou capaz de absorver os pormenores: os canais de regas incas, por onde a água ainda corre, os socalcos a fazerem lembrar grandiosos anfiteatros romanos. A secura do ar faz com que a luz seja tão clara que tenho de pestanejar para apreciar a vista – especialmente para ver o vulcão Sabancaya cuspir uma nuvem de cinzas lá ao fundo. Quando a noite cai, uma luz crepuscular tinge tudo de roxo. Estamos mesmo num reino e a natureza é a soberana.
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