Cabo Verde na Encruzilhada da Independência – Memórias de um tempo conturbado (Abril a Dezembro de 1974).

Agradeço ao meu amigo Zé Tomaz pelo convite, que muito me honra, e pela oportunidade que me dá para tecer algumas considerações sobre o conteúdo do seu livro, sem dúvida, uma reflexão retrospetiva acerca do intenso processo de luta pela independência de Cabo Verde em solo pátrio, nos oito meses que se seguiram ao golpe de Estado de 25 de abril de 1974, em Portugal.

Aceitei de bom agrado e com um particular interesse o convite do autor, devido à oportunidade, à pertinência do tema e, também porque vivenciei alguns momentos capitais do CABO VERDE na Encruzilhada da Independência – Memórias de um Tempo Conturbado (Abril a Dezembro de 1974).

Uma encruzilhada porque os acontecimentos políticos em Portugal apanharam tanto o PAIGC como a população das ilhas politicamente despreparados, o que colocou o pequeno grupo de militantes, de acordo com o autor, num grande dilema: que fazer, como fazer? Agir ou ficar à espera das orientações superiores do PAIGC? Aceitar passivamente a intimidação e a violência da ala militar spinolista ou assumir o confronto direto? Deixar o terreno livre para a ação da UPICV e da UDC ou fazer a agitação política visando a conquista do espaço político emergente?

Havia, de facto, a questão da representatividade do PAIGC em Cabo Verde, mais do que isso, na perspetiva de Spínola e da Junta de Salvação Nacional, o PAIGC não dispunha de legitimidade política, uma vez que em Cabo Verde não houve guerra de libertação.

Um tempo conturbado porque foi prenhe de hesitações, indefinições tanto em relação aos sinais que vinham da Junta de Salvação Nacional como da parte do PAIGC, que optara pela separação do processo de diálogo com a antiga potência colonizadora. De acordo com o autor, “a liderança do PAIGC estava prioritariamente empenhada em assegurar o controlo político e militar na Guiné, estruturar o novo governo e neutralizar focos de resistência, reais ou percebidos, antes de direccionar a devida atenção e recursos para Cabo Verde”, razão por que, na perspetiva do autor, se verificou um “atraso relativo no retorno dos principais dirigentes cabo-verdianos do PAIGC ao país de origem”.

Segundo o autor, a discussão da independência de Cabo Verde dissociada do processo de reconhecimento da independência da Guiné levou à “perda de esperança de conseguir acoplar a independência imediata de Cabo Verde ao reconhecimento da independência da Guiné, depois das negociações de Argel e Londres, entre o Governo português e o PAIGC, facto que na altura era encarado pelo pequeno grupo de militantes “quase como uma [traição]” da parte da direção superior do PAIGC. Passado o curto período de desânimo e da quase sensação de abandono, utilizando a expressão do autor, o pequeno grupo de militantes decidiu que era “absolutamente indispensável reforçar a representatividade no terreno e ocupar todo o espaço político possível”.

O livro está organizado em 13 partes, e apresenta-se como se fosse um roteiro de um enredo, seguindo o encadeamento dos eventos ou episódios políticos, que num todo, marcaram, de forma decisiva, as dinâmicas políticas locais pró-independência e unidade Guiné-Cabo Verde, com base no slogan: Independência total e imediata, em oposição frontal e irredutível ao projeto de federação ou associação a Portugal defendido pelo Presidente da Junta de Salvação Nacional, o General António Spínola.

O autor que em nota introdutória enfatiza que o “essencial do que fica escrito neste breve texto baseia-se na [sua] memória”, isto é, são relatos dos acontecimentos por ele vivenciados, coloca-se, por isso, na posição de narrador-personagem de um processo relatado na primeira pessoa, mas essencialmente na primeira pessoa do plural “nós” e, pontualmente na primeira pessoa no singular “eu”, porque, de facto, é o “nós” que determinou tudo, independentemente da relevância de alguns dos protagonistas que ele faz questão de enaltecer como atores decisivos, mas ele próprio não se considera relevante e decisivo conhecidas que são a sua simplicidade e a sua humildade.

É digna de registo a atitude do autor quando se posiciona como narrador-observador, decorridos 51 anos sobre o processo que nos conduziria à independência, assumindo uma postura crítica sobre ações que, na sua perspetiva, tiveram “um papel fundamental na definição dos contornos do regime que emergiu no pós-independência”, seguramente um tema que merece uma reflexão em outro contexto.

De todo modo, fica esta nota, diria axiomática do autor: “Há momentos em que a História parece acelerar. Os oito meses que decorreram entre o 25 de abril de 1974 e dezembro do mesmo ano foram um desses momentos”. Por isso, atrevo dizer que o livro de Zé Tomaz, com este seu olhar, 51 anos depois, representa mais do que “um testemunho pessoal” de uma encruzilhada num tempo conturbado, porque ele foi, de facto, um dos aceleradores, com a sua simplicidade, humildade e seu elevado sentido pragmático na ação política, de um período intenso e decisivo no processo da construção da nossa independência.

Sem a pretensão de apresentar de forma exaustiva todos os acontecimentos que tiveram lugar nos primeiros tempos após o golpe de Estado de 25 de abril de 1974, em Portugal, o autor põe em destaque os seguintes acontecimentos, cuja leitura e análise mais aprofundadas ficam a cargo dos leitores e, eventualmente, dos historiadores e cientistas políticos, designadamente:

üO movimento contestatário e espontâneo, sem qualquer orientação do PAIGC, dos jovens de Ponta Belém e dos estudantes do Liceu Adriano Moreira, na Praia.

üA libertação dos presos políticos do Tarrafal a 1 de maio de 1974;

üA chegada dos presos políticos de São Nicolau de Angola a 6 de maio de 1974 e a grande concentração à frente do Palácio do Governador, no Plateau;

üOs acontecimentos de 19 de maio de 1974, na Praça Alexandre Albuquerque, no Plateau;

üA primeira grande manifestação do PAIGC na Praia, no dia 3 de agosto de 1974;

üA chegada a Cabo Verde da primeira delegação de dirigentes do PAIGC, no dia 25 de agosto de 1974, liderada por Silvino da Luz e Osvaldo Lopes da Silva;

üA greve geral na administração pública de 30 de setembro de 1974 em protesto contra as ações dos militares portugueses em São Vicente;

üVisita de Almeida Santos à Praia depois de ter estado na ilha do Sal, como membro da delegação portuguesa chefiada pelo general Spínola no encontro com Mobutu no dia 15 de setembro de 1974;

üA chegada de Pedro Pires no dia 13 de outubro de 1974, significou a viragem total na condução de todo o processo;

üO boicote da grande manifestação da UPICV, marcada para 1 de novembro de 1974, com a ajuda dos militares portugueses ligados à ala comunista do MFA;

üA ocupação da Rádio Barlavento e a prisão dos dirigentes da UPICV e da UCD a 9 de dezembro de 1974;

üA assinatura do Acordo para a independência, a 19 de dezembro de 1974.

Em dezembro de 1974, ficou consumado o triunfo da via revolucionária de matriz marxista-leninista, sob a liderança de um partido de vanguarda, que se transformou em Partido Único de facto. O desfecho da luta anticolonialista na Guiné com reflexo em Cabo Verde foi igual em todos os países africanos que alcançaram a independência através da guerra de libertação, muito influenciado por Nkrumah e pelas teses defendidas e difundidas pelo cientista político e consultor do Governo Norte Americano Samuel Huntington, a partir de 1965. Anticomunista ferrenho, mas apologista do modelo leninista de organização, Samuel Huntington defendia que a África não estava preparada para a democracia pluralista, nos seguintes termos: “no caso dos Estados recentemente libertados do colonialismo, e que não tiveram a oportunidade de beneficiar de um período de incubação que lhes permitisse instalar instituições políticas, encetar uma rápida modernização conduz a uma decadência política, ou seja, o contrário do “desenvolvimento político”. Tendo concluído que “a democracia, ou pelo menos o multipartidarismo integral, é um presente envenenado para os jovens Estados [Africanos]”.

Esta nota está alinhada com a constatação retrospetiva do autor, 51 anos depois, passo a citar: “reconheço que as pessoas e os organizadores das manifestações contra a independência estavam apenas a exercer o seu legítimo direito de ter e expressar uma opinião. Na altura, acreditávamos que os manifestantes contra a independência eram manipulados, mas não aplicávamos o mesmo critério às nossas próprias manifestações”. O autor consagra a este propósito um capítulo específico sob o título: Os problemas no interior de Santiago e a grande (não) manifestação da UPICV – páginas 87 a 94. Diria que a intolerância e violência políticas são filhas desse período e do ambiente ideológico criado após a segunda guerra mundial e desenvolvido durante a guerra fria até 1989.

Em substância, podemos afirmar que tivemos uma luta e dois processos autónomos: um totalmente centrado na Guiné-Bissau através da guerra de libertação e outro, distinto, essencialmente de natureza política em Cabo Verde, ocorrido logo a seguir ao golpe de Estado de 25 abril em Portugal até dezembro de 1974. Confirma esta minha afirmação o processo negocial encetado com o governo português, resumido no seguinte: um processo para o reconhecimento da independência da Guiné-Bissau e um outro processo para negociar a independência de Cabo Verde porque, inicialmente, as autoridades portuguesas não reconheciam o PAIGC como o único representante do povo cabo-verdiano.

Outra nota digna de realce tem a ver com o que autor define como “(…) um dos eixos centrais da ideologia do PAIGC, pedra angular que diferenciava e caracterizava o PAIGC, um dos elementos mais importantes, senão o mais importante, da sua ideologia”: a Unidade Guiné-Cabo Verde. Discorrendo sobre o tema, nas páginas 95 a 100, a dado passo o autor afirma: “(…) se durante algum tempo, os dirigentes cabo-verdianos do PAIGC acreditaram nos argumentos de Amílcar Cabral para justificar a sua adesão à luta armada na Guiné, a partir de um certo momento, sobretudo depois do assassínio de Cabral, [em 1973] perceberam que o dogma da Unidade Guiné-Cabo Verde não passava de um expediente político em que poucos ainda acreditavam, principalmente os dirigentes guineenses”. Sabendo há muito que a Unidade Guiné-Cabo Verde “era irrealista e impossível”, Zé Tomaz Veiga é de opinião que “tudo isso indicia que os dirigentes do PAIGC induziram conscientemente os cabo-verdianos em erro, e em particular os próprios militantes locais do PAIGC, promovendo uma ficção cujos contornos conheciam muito bem”. Porém, não deixou de colocar a seguinte interrogação: “talvez julgassem, com alguma razão, que a mística do PAIGC como o partido que uniu dois povos fosse importante para alcançar a independência de Cabo Verde e que o logro valia a pena, em vista do fim prosseguido”. E foi o que aconteceu!

Ao longo do texto o autor nos fornece elementos que nos levam a concluir que a imagem com a sua aura, enigmas e mitos à volta de Amílcar Cabral e da Unidade Guiné-Cabo Verde foram, de facto, a referência mobilizadora em todas as ações e luta a favor da independência; foram o nosso “ópio” e a principal “adrenalina” popular.

Contrariamente ao que se passou na Guiné, o PAIGC não existia com partido político em Cabo Verde, aquando do golpe de Estado em Portugal. Portanto, o PAIGC estava obrigado a entrar num processo de conquista do monopólio de representação, aproveitando-se da figura de Amílcar Cabral e do sucesso da guerra de libertação e também da ausência de outras forças políticas implantadas no terreno. Não havendo a questão étnica ou tribal que justificasse a existência de um único partido nacional, a manutenção da unidade Guiné-Cabo Verde tinha por objetivo “a priori”, ainda que não explicitado, a conquista do monopólio de representação nacional, tanto mais que a Junta de Salvação Nacional considerava que o PAIGC não detinha a representatividade de todo o povo cabo-verdiano. Para que isso acontecesse foi necessário eliminar, fazendo recurso à intimidação e à violência das forças políticas concorrentes, a UPICV e a UDC, o que aconteceu nos 8 meses que se seguiram ao golpe de Estado de 25 de abril de 1974, em Portugal.

Existem, pois, elementos factuais e sólidos que permitem autonomizar o caso cabo-verdiano no contexto da luta pelas independências da Guiné e de Cabo Verde, consubstanciada em dois processos geograficamente separados, temporalmente descompassados, com ritmos, intensidade e desenvolvimento político diferentes, com organização político-partidária assimétrica, de natureza diferente e realizados em momentos e contextos diferentes, porém unidos por um objetivo comum sob a liderança do mesmo Partido.

Zé Tomaz, neste livro e na pele de narrador-personagem foi um dos atores-chave de todo este processo, perante o qual se posiciona com a humildade que lhe é característico.

Que tanhas muita saúde e vida longa para continuares a ajudarmos a refletir sobre o nosso rico percurso coletivo.

Texto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1228 de 11 de Junho de 2025.

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