Dois projectos-piloto, dois arquipélagos – um do lado de cá do continente, no Atlântico, outro do lado de lá, no Índico. Cabo Verde e Comores são considerados modelos a seguir por outros países africanos na construção de economias resilientes ao clima, inclusivas e sustentáveis. No entanto, nem tudo está bem, como alerta a UNECA.
“Comores e Cabo Verde demonstraram vontade política de reformar e inovar e estão a traçar um caminho a seguir do qual muitos outros em África podem aprender”, disse Zuzana Schwidrowski, Directora cessante da Divisão de Macroeconomia, Finanças e Governança da UNECA (Comissão Económica das Nações Unidas para a África), na abertura do diálogo regional sobre financiamento externo e desenvolvimento resiliente ao clima, que decorreu na semana passada, em Adis Abeba.
O encontro serviu para capacitar os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento (SIDS, na sigla em inglês) africanos para terem acesso aos recursos financeiros externos de que precisam urgentemente para construir economias sustentáveis, inclusivas e resilientes ao clima.
Os SIDS enfrentam uma constelação única de vulnerabilidades estruturais. As suas economias são tipicamente pequenas, abertas e fortemente dependentes de importações. Estão subordinados de um conjunto restrito de sectores — frequentemente turismo e agricultura – sensíveis a choques globais, emergências sanitárias e perturbações ambientais. O afastamento geográfico inflaciona o custo do comércio e limita as economias de escala. Além disso, o espaço fiscal limitado, os mercados de capitais superficiais e a capacidade administrativa limitada representam barreiras significativas à diversificação económica e ao investimento na resiliência.
Muitos SIDS africanos estão sobrecarregados por níveis de dívida insustentáveis. Cabo Verde, por exemplo, viu a relação dívida pública/PIB chegar aos 109% em 2025, refletindo tanto as necessidades de investimento anteriores quanto os efeitos persistentes da pandemia de COVID-19. Comores passou recentemente de um risco moderado para alto de sobreendividamento, limitando sua margem de manobra sob os acordos de empréstimo do FMI.
Foi neste contexto que Comores e Cabo Verde foram selecionados como países-piloto no âmbito do projeto DA14 – termina no final deste ano – não só pela sua exposição a estes desafios, mas também pela vontade política demonstrada para reformar e inovar.
Através deste projeto — Mobilização de recursos financeiros externos além da COVID-19 para um desenvolvimento mais verde, igualitário e sustentável em SIDS vulneráveis selecionados — a UNECA, a UNCTAD e outros parceiros têm como objectivo fortalecer as capacidades dos países para elaborar e implementar estratégias financeiras coerentes e sensíveis ao clima.
As necessidades de financiamento são substanciais. Em Comores, as necessidades de financiamento climático identificadas ultrapassam 1,4 mil milhões de dólares, mas apenas uma fração foi mobilizada. Um conjunto de nove projetos de adaptação aguarda ainda apoio.
Cabo Verde, apesar das melhorias na gestão da dívida, enfrenta um défice anual de financiamento dos ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) de 103 milhões de dólares. Segundo a UNECA, plataformas inovadoras como a Blu-X [ver caixa], estão a ser desenvolvidas para posicionar o país como um polo de títulos sustentáveis e investimentos ligados ao clima.
“O nosso objetivo não é apenas diagnosticar a lacuna de financiamento, mas reduzi-la”, afirmou Schwidrowski.
Durante o encontro, de dois dias, os participantes conferiram e validaram estratégias e roteiros financeiros nacionais para Comores e Cabo Verde, incorporando ferramentas de financiamento inovadoras, como títulos verdes, títulos azuis, títulos da diáspora e trocas de dívida por clima. As discussões também se concentraram na identificação das reformas institucionais necessárias, no aperfeiçoamento da coordenação entre os Ministérios das Finanças e do Meio Ambiente e no fomento do intercâmbio entre os SIDS africanos.
As discussões também mostraram a necessidade de uma arquitetura financeira internacional que considere melhor as necessidades dos países vulneráveis. Muitos SIDS africanos, embora classificados como de rendimento médio, enfrentam dificuldades para ter acesso a financiamento concessional, sendo frequentemente penalizados pelo seu rendimento em vez de serem apoiados por causa das suas fragilidades.
Esta situação, sublinhou Schwidrowski, “exige uma reavaliação dos critérios de elegibilidade para assistência financeira, um maior acesso aos fundos climáticos globais e mecanismos regionais que reflictam as realidades dos SIDS”.
A reunião foi igualmente vista como uma contribuição importante para as discussões sobre desenvolvimento, antes da Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FFD4) [ver caixa].
Os SIDS no cenário global
O debate internacional sobre a problemática do desenvolvimento das pequenas economias insulares é recente e teve como ponto de partida a entrada da Islândia na ONU, em 1946. Este debate manteve-se de certa forma secundarizado ou mesmo negligenciado e só viria a ganhar maior relevância nas décadas de 1960 e 1970, com o processo de descolonização ocorrido na segunda metade do século XX e a adesão dos novos Estados independentes à ONU, com estes a chamar atenção, de forma direta, para as suas vulnerabilidades e necessidades.
Os SIDS só viriam a ser reconhecidos como um grupo distinto de países em desenvolvimento, que enfrentam vulnerabilidades económicas e ambientais específicas, na Conferência da ONU sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (UNCED) realizada no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992 e posteriormente pela ONU em 1994, tendo na altura sido aprovado um programa de acção para o desenvolvimento sustentável também conhecido como Programa de Acção de Barbados. A Estratégia então aprovada (entretanto, revista em 2005 na conferência das Maurícias) reconhece a gravidade das desvantagens enfrentadas pela maioria dos SIDS na economia global, situação também reconhecida por outras organizações como a Commonwealth e a Organização Mundial do Comércio (OMC).
Na lista dos SIDS estão incluídos todos os micro-Estados ilhas, mas também, alguns Estados não insulares sujeitos às mesmas limitações de isolamento, pequena dimensão e vulnerabilidade ecológica que os seus pares insulares, como Belize, Guiana e Suriname. Alguns Estados como Singapura, Bahamas também estão incluídos nesta lista.
Os SIDS têm um carácter diverso em relação ao nível de desenvolvimento dos seus integrantes. De um lado, países e territórios insulares, cuja economia é das mais abertas do mundo, com sociedades muito dinâmicas, ocupando lugares cimeiros no processo de globalização económica (Hong Kong, Singapura, entre outros) e do outro lado, espaços insulares pouco dinâmicos (Comores, Papua Nova Guiné, Tonga, Ilhas Salomão, São Tomé e Príncipe, entre outros).
Alguns SIDS são ricos em recursos naturais (Trinidad & Tobago), embora a dotação em recursos não seja determinante para o sucesso destes Estados, como são os casos das Maldivas, Maurícias e Seychelles, todas desprovidas de recursos naturais, mas classificadas no grupo de países de rendimento médio-alto e o caso de Cabo Verde que se graduou para o grupo de países de rendimento médio. A maioria dos SIDS é classificada pelo Banco Mundial como países de desenvolvimento médio. Comores, Haiti e São Tomé e Príncipe pertencem ao grupo dos SIDS de baixo rendimento.
O projecto-piloto
O projecto Mobilizar recursos financeiros externos para além da COVID-19, para um desenvolvimento mais verde, mais igualitário e sustentável em PEID vulneráveis selecionados em África, América Latina e Caraíbas iniciou-se em Janeiro de 2022 e será concluído em Dezembro de 2025.
O impacto prejudicial da crise da COVID-19 no progresso rumo ao alcance dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) foi reconhecido pela Assembleia Geral na resolução 74/270, que apelou ao sistema das Nações Unidas para trabalhar com todos os actores relevantes para mobilizar uma resposta global coordenada à pandemia e ao impacto social, económico e financeiro negativo em todas as sociedades.
A escala dos desafios enfrentados foi especialmente grave nos Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento. Por causa das quedas acentuadas nas receitas do turismo e nos fluxos de remessas, a pandemia reforçou muitas das vulnerabilidades únicas e particulares dos SIDS aos choques económicos e climáticos.
Por isso, o projecto tinha como objectivo fortalecer as capacidades nacionais de SIDS selecionados na África, América Latina e Caraíbas (foram escolhidos também o Belize e São Vicente e Granadinas) para mobilizar recursos financeiros externos acessíveis para um desenvolvimento mais verde e sustentável e uma sociedade mais equitativa além da pandemia da COVID-19, alcançando simultaneamente as prioridades climáticas com sustentabilidade financeira externa.
Olhando para o futuro, os próximos passos da UNECA incluirão: finalizar os roteiros nacionais; apoiar os países na operacionalização dessas estratégias por meio de capacitação, assistência técnica e facilitação de investimentos; convocar um workshop regional virtual de acompanhamento ainda este ano para manter o impulso e disseminar as lições aprendidas por todo o continente e estender este exercício a outros países africanos.
“A UNECA continua firmemente comprometida em apoiar os SIDS africanos. Essas nações podem ser pequenas em geografia, mas são grandes em ambição, resiliência e potencial. Ao fortalecer a cooperação regional, alavancar a inovação e alinhar os fluxos financeiros às prioridades nacionais, podemos aproximar-nos de um futuro em que a resiliência climática e o desenvolvimento sustentável não sejam ideais aspiracionais, mas realidades alcançáveis”, concluiu Zuzana Schwidrowski.
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A Blu-X é uma plataforma regional de listagem e negociação de instrumentos financeiros sustentáveis e inclusivos orientados para a economia sustentável (incluindo títulos azuis, títulos verdes, títulos sociais, títulos de sustentabilidade, entre outros). Tem como objetivo facilitar os investimentos em instrumentos financeiros públicos e privados orientados para capitalizar projetos inovadores focados na economia sustentável, com particular destaque para a economia azul; bem como desbloquear financiamento para intervenções de alto crescimento e alto impacto e apoiar a integração de Cabo Verde nos mercados regionais e internacionais.
A plataforma Blu-X irá ligar emitentes e investidores em títulos sustentáveis, bem como apoiar parcerias público-privadas, incluindo a conversão de dívida por natureza.
A Blu-X procura reforçar a posição de Cabo Verde como um pivot inter-regional, senão global. A plataforma pretende servir não só as necessidades de capitalização bolsista de Cabo Verde, mas também das regiões africanas e atlânticas em geral. Através da adesão de Cabo Verde à Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) e à Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP), bem como ao acesso privilegiado aos mercados dos Estados Unidas da América e da União Europeia, a plataforma procura atrair novos participantes no mercado, que vão desde investidores de impacto a corretores, gestores de fundos, PME’s e empresários.
Fonte: Bolsa de Valores de Cabo Verde
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A Quarta Conferência Internacional sobre Financiamento para o Desenvolvimento (FFD4) será realizada em Sevilha, Espanha, de 30 de Junho a 3 de Julho e é vista, pela UNECA e outros parceiros, como uma oportunidade única para reformar o financiamento em todos os níveis, inclusive para apoiar a reforma da arquitetura financeira internacional e abordar os desafios financeiros que impedem o impulso de investimento urgentemente necessário para os ODS.
As conferências sobre Financiamento para o Desenvolvimento são vistas como o único espaço onde líderes de todos os governos, juntamente com organizações internacionais e regionais, instituições financeiras e comerciais, empresas, sociedade civil e o Sistema ONU se unem nos mais altos níveis para promover uma cooperação internacional mais forte.
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Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável em Cabo Verde
Enquanto Pequeno Estado Insular em Desenvolvimento, Cabo Verde e os seus parceiros têm trabalhado e, continuarão na direção de redução das suas vulnerabilidades, construção da sua resiliência às mudanças climáticas, colmatando assim as distâncias geográficas entre as suas ilhas; redução das disparidades regionais, custo de energia, água e transporte; aumento da sua produtividade; investimento no seu capital humano; promoção do uso sustentável e da conservação de seus recursos naturais – recursos terrestres e marinhos; e de impulsionamento da sua integração dinâmica no sistema económico global. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são um apelo global à ação para acabar com a pobreza, proteger o meio ambiente e o clima e garantir que as pessoas, em todos os lugares possam desfrutar de paz e prosperidade.
Fonte: ONU
exto originalmente publicado na edição impressa do Expresso das Ilhas nº 1227 de 4 de Junho de 2025.
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