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Os brasileiros representam quase 10% (3.200) dos 35 mil votantes nas eleições para o comando da Ordem dos Advogados de Portugal. De olho nesse grupo, João Massano, 54 anos, um dos quatro candidatos a bastonário (presidente) da instituição, diz que, neste momento, há discriminação em relação aos profissionais que saíram do Brasil para se instalarem em território luso. Ele se diz contrário ao que classifica como preconceito. As eleições ocorrem na terça-feira e quarta (18/03 e 19/03). Se for necessário, haverá segundo turno, em 31 de março.
Entre os temas da eleição estão as declarações polêmicas da atual bastonária, Fernanda de Almeida Pinheiro, que concorre à reeleição. Em julho de 2023, quando rompeu o acordo que permitia aos colegas brasileiros se inscreverem na Ordem para trabalhar em Portugal, ela afirmou que tomava tal decisão para evitar o exercício da profissão no país por “pessoas que não estejam técnica e juridicamente qualificadas”. Segundo Massano, os advogados brasileiros, mesmo os que tinham estudado em Portugal, passaram a sentir as consequências das declarações, às vezes até em serviços públicos.
Presidente do Conselho Regional de Lisboa da Ordem dos Advogados desde 2020, Massano atua nas áreas de direito comercial, imobiliário, trabalhista, família e imigração. Além dele, concorrem às eleições a atual bastonária, José Costa Pinto, fundador do escritório Costa Pinto Advogados, e Ricardo Serrano Vieira, que se define como advogado de tribunal. Enquanto a bastonária defende a continuidade, com a consolidação do que afirma ter alcançado, Costa Pinto afirma buscar a eficiência e inovação, e Serrano Vieira propõe modernizar a instituição, com foco na transparência e na gestão participativa.
Veja os principais trechos da entrevista de João Massano ao PÚBLICO Brasil, que mantém espaço aberto dos demais candidatos à Ordem dos Advogados.
Qual o papel que os profissionais brasileiros têm hoje dentro da advocacia portuguesa?
Creio que um papel muito relevante, porque, neste momento são perto 10% dos advogados existentes no país. Entendo que a questão dos advogados brasileiros tem sido incorretamente colocada, e que muito do que tem sido dito tem a ver com algumas afirmações que não foram muito corretas na parte da nossa atual bastonária, que lançou uma marca de incompetência a todos os brasileiros porque fez uma generalização, e nós sabemos os riscos que essa generalização pode provocar numa classe. É o mesmo quando dizem que os advogados são todos corruptos. A grande vantagem da advocacia em Portugal é a sua diversidade. Nós temos de conseguir juntar toda a gente e trazer as valências de todos para melhorar a advocacia. Acho que os brasileiros podem trazer uma visão diferente do direito e, naturalmente, nós devemos ajudá-los a se integrarem em Portugal e aproveitar as coisas boas que eles trazem do Brasil.
Existe uma forma diferente de atuar na advocacia no Brasil e em Portugal?
Acho que há diferenças na forma de estar em tribunal. Nós temos um processo civil muito mais formal, muito menos midiatizado, por exemplo. A forma como os brasileiros fazem a publicidade é diferente daquela que nós fazemos.
Os advogados em Portugal não podem fazer publicidade?
Neste momento, estamos numa situação pouco definida relativamente ao que é possível ou não fazer. Nós tínhamos um artigo no estatuto com uma série de limitações à publicidade. Esse artigo já não existe e há quem diga que, a partir desse momento, tudo é possível, e há quem diga que, não obstante ter desaparecido o artigo, ainda temos que estabelecer limitações. Acho que tem que haver limites. Há situações que não podem ser admitidas.
Por exemplo, o que é que não deveria ser permitido para o advogado?
Por exemplo, algumas publicidades no TikTok, que não me parecem ser adequadas à dignidade da nossa profissão. Se tudo for permitido, vamos ter pessoas a oferecer serviços advocatícios em traje de banho. Tem que haver limites para que a advocacia continue a ser uma profissão digna.
A advocacia que se pratica no Brasil é mais litigiosa do que advocacia em Portugal?
Acho que ser mais ou menos litigioso depende do advogado, mais do que da advocacia em si. Há advogados que vão mais para uma litigiosidade extrema e há outros que são mais conciliadores e que tentam obter caminhos preventivamente. E isso tanto faz ser brasileiro ou português. Depende da forma como o advogado encara a advocacia. Na minha opinião, o futuro da advocacia passa por ter um papel mais preventivo do que litigioso. O que nós queremos é a melhor solução para todos, e a melhor solução para todos, normalmente, passa por não ir a tribunal e conseguirmos conciliar os interesses por negociação, prevenindo os conflitos antes de aparecerem.
Porque vieram tantos advogados brasileiros para Portugal?
Creio que foi a facilidade da língua e o fato de o mercado brasileiro estar muito saturado. O Brasil tem 1,3 milhão a 1,4 milhão de advogados. É muita gente. O que me parece que foi a grande vantagem que Portugal apresentava para os brasileiros era a língua. Era fácil chegar aqui e, pelo menos em termos de língua, não havia obstáculos, enquanto, em outros países europeus, havia esse obstáculo. Depois, até há bem pouco tempo, bastava chegar a Portugal, obter o reconhecimento do diploma e exercer a advocacia. Isso facilitou, e muito, porque não tinha que haver qualquer espécie de aferição antes de entrar no mercado.
Atualmente, muitos advogados brasileiros trabalham com imigração. Como vê essa situação?
Em primeiro lugar, acho que todos estão a sofrer muito com a AIMA (Agência para a Integração, Migrações e Asilo). Toda a gente, tenha ou não tenha um advogado. Mesmo com advogado e mesmo com ações em tribunal, isto não faz sentido absolutamente nenhum. O cidadão demora a conseguir agendamento. Quando se recorre a tribunal, não é de imediato. E parece-me que o problema de base é o mau serviço que a AIMA está a prestar ao país. Isso é fruto de erros do passado e de uma extinção, no mínimo, desorganizada, do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), que empurrou todos os problemas que já havia, criando novos numa outra entidade. Isso é um problema grave que nós, neste momento, estamos a atravessar, mas, infelizmente, não se resume à AIMA. Nós temos mais problemas noutros serviços públicos, mas a AIMA, pela pressão migratória, tornou-se mais visível, porque há muita gente a querer entrar em Portugal. Mas o que me preocupa mais são as situações das pessoas que andam a tentar ganhar dinheiro à custa dos imigrantes, que nem sequer são advogadas e que andam junto à AIMA e de qualquer coisa que envolva imigração. No fundo, aproveitam-se da situação de dependência das pessoas para ganhar dinheiro, criam esquemas e tudo.
Também há o caso da legislação de contagem do tempo de permanência em Portugal para a nacionalidade, em que não houve regulamentação.
É uma questão complicada. Falta, neste momento, um rumo para a política de imigração, porque nós ainda estamos num terreno muito pantanoso. Não há uma definição clara do que se quer. Ainda se anda a discutir para que lado se vai. E isso não é bom. Depois, tivemos praticamente dois anos com o SEF parado, à espera de acabar. Tivemos a AIMA, que recebeu a confusão do SEF, e somou com novas confusões. Por exemplo, se fosse criada uma estrutura mínima que colocasse as juntas de freguesia a fazer os atendimentos e, ao mesmo tempo, tivesse no back office um advogado que fizesse a análise dos processos para decisão da AIMA, já se poupava muito. Acho que isso seria possível de fazer, mas por um valor que teria que ser superior aos 7,5 euros (R$ 45 que os advogados recebem por dar um parecer sobre cada processo).
Como vê os 7,5 euros por processo?
Acho que é uma vergonha. Acho que é afundar a dignidade da classe. Eu recordo que, na altura em que foi divulgado o protocolo da AIMA como sendo uma grande vitória da advocacia e do Conselho Geral da Ordem dos Advogados, ao mesmo tempo, estava-se a pedir 20 milhões (R$ 120 milhões) ao Governo para o apoio judiciário à atualização da tabela por hora de trabalho. Qual é a credibilidade de estar, de um lado, a pedir mais dinheiro e, do outro, a aceitar 7,5 euros (por processo analisado da AIMA)? Nenhuma. E eu tenho ouvido na campanha as pessoas envergonhadas com isso. Estamos a cair no ridículo. Mais valia fazer pro bono, sem cobrar nada. Ao menos, a classe ficava bem vista. Assim fica a imagem de uma classe desesperada, que precisa de dinheiro e que aceita 7,5 euros (por processo). Se achamos que o processo não vale e é uma coisa de menos importância, dá-se uma bagatela como pagamento, está-se também a desvalorizar os direitos das pessoas. Está-se a dizer que os direitos dos imigrantes valem 7,5 euros.
E não é por falta de recursos, porque cada pessoa paga mais do que isso para obter os documentos.
Só para ter uma ideia de como tudo isto está a funcionar, tenho clientes que estão só à espera da notificação para pagar os cartões do Visto Gold. É uma família inteira. O Estado só tem que enviar um e-mail a dizer venha cá pagar para depois emitir o cartão. E o valor é 30 mil euros (R$ 180 mil). Acha normal estarem pessoas há mais de dois anos à espera para pagar 30 mil euros ao Estado português?
Algum brasileiro concorrendo na sua chapa?
Nós entendemos que deveríamos fazer uma lista que, por questões de nossa própria defesa, não incluíssem brasileiros, até pelos ataques baixos que iam acontecer. Pretendemos contribuir para a integração dos advogados brasileiros por meio da criação de comissões. Independentemente de quem está ou não está na chapa, vamos constituir comissões que ajudem na integração dos advogados brasileiros.
Braga tem um advogado brasileiro que fará parte do Conselho Regional da Ordem dos Advogados.
As delegações têm um peso diferente e o problema, neste momento, é que fui alvo de muitos ataques da atual bastonária, porque tenho parcerias com advogados brasileiros, tenho um podcast com um advogado brasileiro e estive presente no Encontro Nacional das Advocacias, em Belo Horizonte, que foi amplamente divulgado por ela e que foi alvo de muitas interpretações malévolas. O fato é que a senhora bastonária cavalgou uma onda de discriminação em relação aos brasileiros que me desagrada profundamente e o que nós pretendemos é caminhar no sentido de combater estas situações, fazendo uma integração de toda gente, quer seja brasileiro, quer seja português, quer esteja nos Açores, quer esteja em Bragança.
Neste momento, os advogados brasileiros são vítimas de discriminação?
Eu não sei se são vítimas de discriminação. O que eu sei é que, objetivamente, o que me tem sido dito por colegas brasileiros é que se sentem discriminados por força das declarações que foram proferidas há cerca de um ano e meio pela senhora bastonária. Disseram que, na AIMA e em outros serviços públicos, a partir do momento em que houve as declarações da senhora Bastonária, eles começaram a ser tratados e olhados de forma diferente. Mesmo aqueles que estudaram em Portugal.
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