Brasil suspende acordos de cooperação jurídica com o Peru em processos da Lava-Jato ligados à Odebrecht

A Secretaria Nacional de Justiça, órgão vinculado ao Ministério da Justiça, suspendeu a cooperação jurídica internacional com o Peru em casos relacionados à Operação Lava Jato que envolvam a antiga Odebrecht (hoje Novonor). A decisão ocorre após as autoridades peruanas terem usado provas declaradas inválidas pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal (STF), em 2023.

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O ato formal também ocorre na esteira da manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR), que suspendeu atos de cooperação do órgão com o Peru pelas mesmas razões. Procurado, o Ministério de Relações Exteriores do Peru assinalou que os questionamentos sobre o assunto deveriam ser feitos ao Ministério Público do país. O órgão, por sua vez, disse que enviou uma resposta “sobre alguns documentos declarados irregulares no Brasil, (…) mas ainda não obteve resposta das autoridades brasileiras. O que se enviou do Peru ainda não foi analisado pelo Brasil”.

Nos autos, que são sigilosos, PGR e Ministério da Justiça afirmam que não houve resposta do Peru sobre o suposto uso irrregular das provas.

O Peru é hoje o país com o maior número de políticos investigados, indiciados ou condenados por crimes relacionados à Lava-Jato. Os ex-presidentes peruanos Alejandro Toledo (2001-2006), Ollanta Humala (2011-2016) e Pedro Pablo Kuczynski (2016-2018) estão presos por crimes relacionados ao recebimento de propina ou caixa dois de campanhas eleitorais. Eles negam terem praticado qualquer irregularidade.

Em 2019, o ex-presidente Alan García (1985-1990 e 2006-2011) cometeu suicídio para evitar uma prisão preventiva em um processo relacionado à Lava-Jato no país. Condenada junto com Humala no mês passado a 15 anos de prisão, a esposa do ex-presidente, Nadine Heredia, recebeu asilo político do Brasil e solicitou status de refugiada. A decisão sobre a concessão será tomada pelo ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, que, quando era ministro do STF, mantinha um posição crítica à Lava-Jato. Nadine e o marido negam ter recebido valores da empreiteira brasileira e afirmam que sofrem perseguição política no país vizinho.

As suspensões da cooperação internacional atenderam a pedidos da Novonor, sob o argumento de que as autoridades do país vizinho teriam ignorado limitações ao uso de prova estipuladas nos termos de compromisso dos acordos de cooperação com a PGR e o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional (DRCI) do Ministério da Justiça. As limitações ao uso de provas obtidas em acordos de cooperação internacional desse tipo estão previstas na Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. Procurada, a empreiteira não se manifestou.

No caso de processos envolvendo a antiga Odebrecht no Peru, as autoridades peruanas assinaram termos em que garantem que os delatores e colaboradores que firmaram acordos de leniência com o Ministério Público Federal do Brasil, no âmbito da Lava-Jato, não podem ser processados por fatos revelados e documentos fornecidos nessas colaborações.

As autoridades peruanas, porém, teriam cometido irregularidades, como a expropriação ativos da Novonor com base em informações que constavam no acordo de leniência firmado pela Odebrecht com o MPF e autoridades dos Estados Unidos e que envolviam fatos ocorridos no Peru. Além disso, integrantes do Ministério Público peruano teriam fornecido, no ano passado, provas obtidas por meio da cooperação com os brasileiros a um processo de arbitragem que a Novonor move contra o governo do Peru em Londres.

No despacho que determinou a suspensão, ao qual O GLOBO teve acesso, o secretário nacional de Justiça, Jean Uema, determina que o DRCI promova a apuração dos casos em que o sistema judicial peruano teria violado termos da cooperação. O documento foi assinado na semana passada, em 7 de maio.

O despacho de Uema está fundamentado em manifestações da Coordenação de Recuperação de Ativos, responsável pela cooperação jurídica internacional, e da Secretaria de Cooperação Internacional da PGR.

Em sua decisão, Uema afirma que o Ministério da Justiça esperou por quase um ano esclarecimentos das autoridades peruanas sobre o suposto não cumprimento dos acordos antes de suspendê-los.

O secretário cita como preocupante uma resposta da autoridade fiscal do Peru, que numa solicitação de cooperação jurídica internacional em matéria penal no ano passado, disse ignorar decisão judicial proferida pelo ministro Dias Toffoli, do Supremo, afirmando que não teria efeito executório no Estado peruano.

Em setembro de 2023, Toffoli atendeu um pedido da defesa do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e decidiu que todas as provas obtidas a partir do acordo de leniência da Odebrecht e dos seus sistemas Drousys e My Web Day B não poderiam ser usados em quaisquer processos criminais, eleitorais, cíveis ou de improbidade administrativa no Brasil. Na ocasião, Toffoli criticou a prisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ocorrida em 2018 no âmbito da Operação Lava-Jato.

O ministro disse em sua decisão à época que a detenção de Lula foi “uma armação fruto de um projeto de poder de determinados agentes públicos em seu objetivo de conquista do Estado por meios aparentemente legais”.

No texto que embasou o despacho de Uema, a Coordenação de Recuperação de Ativos da Secretaria Nacional de Justiça afirma que a PGR já havia recebido, em novembro de 2022, a informação de que as autoridades peruanas ignoravam compromissos assumidos de não utilizar provas produzidas no Brasil contra a Odebrecht.

A PGR suspendeu em 15 de abril de 2024 a realização de atos de cooperação internacional com o Peru relativos ao acordo de leniência da Odebrecht por indícios de violação dos termos da cooperação. Na ocasião, foi a terceira vez que o Ministério Público Federal suspendia o fluxo de informações com os peruanos após alertas de descumprimento das limitações de uso de provas.

Em nota, a PGR afirma que a suspensão foi determinada pela Secretaria de Cooperação Internacional “após haver fundadas razões de utilização indevida de elementos de provas fornecidas por colaboradores da justiça brasileira contra eles na jurisdição peruana, descumprindo cláusula do tratado de cooperação”.

Desde então, o MPF afirma que “tem solicitado esclarecimentos mas as informações que chegaram do Peru a respeito não foram suficientes para afastar as alegações da empresa Novonor (antiga Odebrecht) de que as provas produzidas no Brasil foram indevidamente utilizadas por lá”.

Mais de um ano após a suspensão, o Ministério Público Federal diz que ainda não recebeu informações do Peru. “Assim, o MPF aguarda informações do Peru. E, enquanto isso, a colaboração apenas para este caso específico está suspensa.” Cooperações com o país vizinho em outros casos não relacionados à Odebrecht, porém, continuam.

Em março deste ano, a procuradora Anamaria Osório Silva, da Secretaria de Cooperação Internacional da PGR, reiterou a suspensão de atos de cooperação com o Peru. Em um despacho de cinco páginas, afirmou que a Odebrecht argumentava que o descumprimento das limitações de uso de prova permanecia. A procuradora afirma que “até a presente data as autoridades peruanas não encaminharam os esclarecimentos já reiteradamente solicitados” e oficiou a Secretaria Nacional de Justiça sobre o assunto.

A PGR já havia suspendido as ações de cooperação relacionadas à Odebrecht com o Peru em novembro de 2022, a pedido da empresa, mas retomou o fluxo de informações após acordo com as autoridades peruanas. Em janeiro de 2023, a Procuradoria voltou a constatar possível descumprimento dos compromissos e cobrou novas explicações dos peruanos. Em novembro de 2023, depois de novo compromisso das autoridades peruanas sobre o cumprimento dos termos de compromisso, a cooperação com a PGR foi retomada.

Em abril de 2024, porém, a Novonor voltou a solicitar à Procuradoria-Geral a suspensão da cooperação com o Peru por irregularidades.

A empresa afirma que o governo peruano tenta expropriar seus ativos com base em informações que constavam no acordo de leniência firmado pela Odebrecht com o MPF e autoridades dos Estados Unidos e que envolviam fatos ocorridos no Peru. O país vizinho chegou a aprovar uma lei para expropriar ativos da Nonovor em 2018, mas a empresa firmou um acordo de leniência no Peru no ano seguinte com o compromisso de excluir as empresas do Grupo Novonor da norma.

Além disso, autoridades peruanas teriam usado informações obtidas na delação do ex-diretor da Odebrecht Jorge Barata em um processo de arbitragem movido pela empresa brasileira contra o Estado Peruano em Londres, relacionado ao projeto Gasoduto Sur Peruano. Entre as revelações do ex-diretor, estão o pagamento de propinas em troca de favorecimento em concorrências de obras públicas e de caixa 2 em campanhas no Peru.

Em seus testemunhos no processo arbitral em Londres, um promotor e uma procuradora peruanos teriam citado oitivas do ex-diretor da Odebrecht que não poderiam ser usadas naquele processo. Em nota, o Ministério Público do Peru afirma que o promotor que foi a Londres testemunhar no processo arbitral e que “não pode realizar nenhuma declaração a esse respeito devido ao fato que a arbitragem internacional é confidencial”. A promotoria diz que “toda a informação entregue ao tribunal arbitral foi controlada por esse acordo à legislação nacional peruana e às regras da arbitragem internacional”.

Na arbitragem que move em Londres, a Odebrecht pleiteia o pagamento de uma indenização pelo governo peruano de aproximadamente US$ 1 bilhão (o equivalente a R$ 5,68 bilhões no câmbio atual) por investimentos que teria realizado na obra do gasoduto, que nunca foi concluída. O projeto chegou a ter 30% das obras conduzidas pela Odebrecht. Os ativos da empresa na obra, principalmente dutos, foram expropriados pelo governo do Peru em 2017 e o Ministério Público peruano afirma que houve corrupção no processo de licitação do projeto de concessão, que envolvia a construção e a operação do gasoduto. Pessoas familiarizadas com o assunto dizem que a Novonor quer obter a indenização para quitar dívidas financeiras no âmbito de seu processo de recuperação judicial.

Pelos termos de compromisso da cooperação jurídica entre Brasil e Peru, as informações enviadas ao Peru pela PGR e o Ministério da Justiça só podem ser usadas no processo que deu origem ao pedido de cooperação, e não em outras ações judiciais ou processos arbitrais, nem podem ser compartilhadas com quaisquer outras autoridades.

Na decisão que suspendeu a cooperação com os peruanos em abril de 2024, a PGR citou um dispositivo da Convenção das Nações Unidas Contra a Corrupção segundo o qual “o Estado Parte requerente não transmitirá nem utilizará, sem prévio consentimento do Estado Parte requerido, a informação ou as provas proporcionadas por este para investigações, processos ou ações judiciais distintas daquelas indicadas na solicitação”.

— As autoridades peruanas todas as vezes que vieram colher provas no Brasil, e foram incansáveis depoimentos do Barata, todas pelo sistema de cooperação jurídica internacional, assumiram o compromisso de não utilizar nenhuma dessas provas contra o Barata, outros funcionários da Odebrecht e a empresa. Apesar disso, as autoridades peruanas, especialmente o Ministério Público e a Procuradoria, passaram a usar as provas contra ele e a empresa em diversos procedimentos distintos. Desde 2018, pedimos constantemente a suspensão desses acordos. Os abusos levaram a essa suspensão. Chegaram a subverter o que Barata disse. Ele disse que não houve corrupção no caso do gasoduto (Sur Peruano), mas as autoridades confundem ajuda eleitoral com corrupção — disse Carlos Kauffmann, advogado de Barata.

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