Nas últimas semanas, circulam nas redes sociais vídeos com filas quilométricas de caminhões aguardando para descarregar sua carga de soja no porto de Miritituba. Localizado às margens do Rio Tapajós, no município de Itaituba (PA), o porto é estratégico para as exportações de grãos de Mato Grosso. O que os vídeos ilustram é o paradoxo que aflige o Brasil há anos: parte dos ganhos de produtividade que transformaram o país em uma potência agrícola global é desperdiçada por uma precária infraestrutura logística, que corrói a riqueza gerada pelo agronegócio. A situação se agrava em anos de safra recorde, como a que está sendo colhida desde janeiro. A previsão é que o país produza 328 milhões de toneladas de grãos. A soja, principal item cultivado aqui, contribuirá com um volume também recorde de 167 milhões de toneladas. Mas as boas notícias param aí. “Sempre que há uma safra como essa, os custos sobem de 10% a 15%”, afirma Maurício Buffon, presidente da Aprosoja, uma associação dos produtores de soja. “Tudo isso chega aos preços nos supermercados.”
A raiz do problema é a falta de armazéns para estocar a colheita. Enquanto a produção de grãos cresce 10 milhões de toneladas por ano, a capacidade de armazenamento avança 5 milhões de toneladas. Com isso, o Brasil conta hoje com espaço para guardar apenas 211 milhões de toneladas, o equivalente a 64% da colheita de 2025. Diversos fatores alimentaram essa defasagem. Até poucos anos atrás, o foco dos agricultores era ampliar a produção, fosse comprando terras ou melhorando as técnicas de trabalho. A estocagem ficava a cargo sobretudo das grandes empresas que comercializam commodities agrícolas no mercado internacional, das cooperativas e da indústria de alimentos. Com atraso, o setor finalmente começa a se mexer. “A tendência é privilegiar os investimentos em armazenagem”, diz Paulo Bertolini, que produz soja, milho, feijão e trigo no município de Castro (PR) e preside a câmara setorial de armazenagem de grãos da Abimaq, a entidade que reúne os fabricantes de máquinas.
O atraso não é culpa apenas do desinteresse do setor privado em priorizar esse tipo de investimento. Construir um armazém no Brasil é um calvário. A falta de boas condições de financiamento e a burocracia com o licenciamento são apenas o começo. Somem-se a isso o entendimento de alguns estados de que a armazenagem é um negócio próprio, passível de tributação específica, e os custos envolvidos na manutenção das instalações, e muitos produtores optam por deixar os projetos no papel.
Sem ter onde guardar a safra, a saída é escoá-la rapidamente, tão logo saia da colheitadeira, o que cria outros dois grandes problemas. O primeiro é a disparada dos custos. Segundo o grupo de estudos de logística da faculdade Esalq, os preços de frete aumentaram entre 50% e 70% de janeiro para fevereiro, conforme a origem e o destino da carga. Ao contrário do que se pode supor, o motivo não é a falta de caminhões, mas o velho “jeitinho” brasileiro. “Sem áreas de estocagem, os produtores transformam os caminhões em armazéns sobre rodas”, diz Elisângela Lopes, especialista em logística da Confederação da Agricultura e Pecuária (CNA). É isso que explica os pátios de descarga nos portos abarrotados de veículos nas últimas semanas e não, como se poderia supor, um eventual impacto da greve dos auditores da Receita Federal, que já ultrapassa 100 dias e dificulta o desembaraço de cargas nas aduanas brasileiras.
A segunda consequência é a forte oscilação de preços agrícolas. Durante a safra, os produtores aceitam descontos para se livrar da colheita o quanto antes, sob o risco de perdê-la por falta de condições adequadas de estocagem. Na entressafra, a curva se inverte: os preços sobem, porque há pouco produto armazenado. Se houvesse armazéns suficientes, os agricultores poderiam escoar a produção de modo mais racional, garantindo um suprimento constante ao longo do ano e preços mais estáveis. “A situação atual afeta a rentabilidade de toda a agroindústria”, diz André Nassar, presidente da Abiove, representante dos fabricantes de óleos vegetais.
O transporte rodoviário piora a situação também pelo péssimo estado de conservação de muitas estradas. Segundo a CNA, apenas 41% das rodovias que escoam a produção do campo estão em boas condições, encarecendo ainda mais o frete. A solução de longo prazo é óbvia: investir em ferrovias e hidrovias, mas não há sinais de que o governo Lula entregará projetos relevantes nessa seara. “Uma safra recorde deveria ser um ganha-ganha para o país e os produtores, mas virou um perde-perde”, diz Bertolini, da Abimaq. O PIB do agronegócio foi de quase 12 trilhões de reais em 2024. Segundo especialistas, os produtores lucrariam até 55% mais se o Brasil tivesse uma infraestrutura de primeiro mundo, o que inclui um complexo robusto de armazenagem, boas estradas, malha ferroviária extensa e portos eficientes. Sem isso, a supersafra acaba sendo acompanhada de uma supersafra de problemas.
A greve dos 100 dias

Os gargalos logísticos que prejudicam a safra recorde de grãos não são os únicos entraves ao comércio exterior. A greve dos auditores da Receita Federal, que ultrapassa 100 dias, também joga contra. Mais de 90% das exportações são despachadas automaticamente, devido à digitalização dos processos. Apenas o restante requer a supervisão de um auditor para averiguar eventuais problemas. Por isso, a greve impacta pouco as vendas para outros países. As importações, porém, são bem mais prejudicadas. “Cerca de 75 000 encomendas estão retidas”, diz Vagner Battaglioli, diretor da Abraec, entidade das empresas aéreas de transporte de carga. “Os prejuízos superam 12 bilhões de reais e afetam múltiplos setores.” Negócios que dependem dos importados, como o de vinhos, sofrem para repor estoques. Apenas medicamentos e kits para exames de laboratório escapam da operação padrão.
A greve ameaça também as contas públicas. A Frente Parlamentar pelo Livre Mercado (FPLM) estima que o governo já deixou de recolher cerca de 15 bilhões de reais em litígios não resolvidos pela Receita Federal, dificultando ainda mais a missão do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, de cumprir a meta de zerar o déficit fiscal neste ano. “A greve é mais um aspecto do terceiro mundo que marca o Brasil”, afirma o deputado federal Luiz Philippe de Orleans e Bragança, líder da FPLM. Até quinta, 27, a situação continuava a mesma. E o pior é que, até agora, nem o governo nem os grevistas parecem dispostos a tomar medidas para encerrar o protesto.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2025, edição nº 2937
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