‘Bem-vindo ao inferno’: como é passar cinco meses em uma prisão da Venezuela

Os guardas usavam crachás que diziam “Hitler” ou “Demônio” e cobriam seus rostos com máscaras de esqui. Estes americanos ficaram confinados numa prisão na Venezuela em celas de cimento, foram espancados, agredidos com spray de pimenta e submetidos ao que um dos ex-detentos chamou de “tortura psicológica”.

Três meses após sua captura, os americanos ficaram tão furiosos que se rebelaram. Eles disseram que bateram nas paredes das celas e chutaram portas enquanto outros presos se juntavam, centenas deles gritando por liberdade até o concreto começar a rachar.

“Vocês estão comigo, meus venezuelanos?”, gritou um dos ex-detentos, Gregory David Werber, segundo lembrou-se um ex-colega de cela. “Estamos com vocês, gringo!”, gritaram eles de volta.

Gregory David Werber, que havia sido detido na Venezuela, em Tempe, Arizona: eles eram turistas americanos na esperança de se divertirem  Foto: Caitlin O’Hara / The New York Times

Seis ex-detentos americanos voltaram da Venezuela no fim de janeiro, com a liberdade garantida após uma visita incomum e altamente propagandeada de um funcionário do governo Trump a Caracas, a capital. Críticos disseram que o encontro entre o enviado especial Richard Grenell e Nicolás Maduro, o ditador da Venezuela, deu legitimidade a um líder acusado de abusos generalizados de direitos humanos e de fraudar uma eleição recente.

Outros apontaram que isso trouxe os americanos de volta. Agora livres e se adaptando às suas novas vidas, três dos ex-detentos conversaram longamente com o The New York Times sobre o período que passaram presos, fornecendo o olhar mais detalhado já relatado sobre suas experiências.

Alguns descreveram ter sido encapuzados, algemados e sequestrados em postos de controle fronteiriço enquanto tentavam entrar como turistas. Todos ofereceram uma rara visão interna da estratégia expansiva de Maduro para pressionar os líderes globais a fazer o que ele quer: ele arrebanhou dezenas de detentos de todo o mundo para usar como moeda de troca em negociações.

Presidente Nicolás Maduro no mês passado durante uma cerimônia de posse de novos membros de uma milícia nacional em Caracas, na Venezuela, 7 de janeiro  Foto: The New York Times

Outros nove cidadãos americanos ou residentes legais permanentes seguem sob custódia da ditadura venezuelana, de acordo com o Departamento de Estado. No total, há pelo menos 68 estrangeiros encarcerados injustamente na Venezuela, de acordo com o grupo de defesa de direitos Foro Penal, o maior número que Maduro já manteve preso.

Eles estão detidos juntamente com cerca de 900 presos políticos venezuelanos.

Os estrangeiros são espanhóis, alemães, argentinos, colombianos, uruguaios e de outras nacionalidades.Quase todos presos no ano passado.

A expansão dessa estratégia ocorre num momento em que Maduro perde apoio domesticamente e no exterior e busca maneiras de exercer influência. Seus objetivos incluem a suspensão das sanções dos Estados Unidos e o reconhecimento de líderes como o presidente Donald Trump.

As prisões de estrangeiros também ocorrem em meio a uma disputa interna no governo Trump sobre como lidar com Maduro, de acordo com analistas. Alguns conselheiros, como Grenell, demonstraram disposição para se envolver em acordos transacionais de impacto rápido — como uma visita pública em nome da liberdade de prisioneiros.

Scott St. Clair segura uma foto de seu filho Joseph, detido na Venezuela, em Hansville, Washington, em 16 de março de 2025: desde a detenção de Joseph, Scott St. Clair diz ter sonhos nos quais vivencia um ‘choro intenso por todo o corpo’ Foto: Grant Hindsley / The New York Times

Outros, como o secretário de Estado, Marco Rubio, promovem uma abordagem mais isolacionista, com o objetivo de retirar Maduro do poder, ao mesmo tempo em que apoiam a libertação dos detidos.

Um porta-voz do Departamento de Estado afirmou que o governo dos EUA está trabalhando para garantir a libertação de todos os americanos presos injustamente na Venezuela.

Grenell não respondeu a um pedido de comentário, nem o ministro das comunicações da Venezuela, Freddy Ñáñez.

A ditadura venezuelana acusou alguns dos americanos presos de terrorismo e de conspirar para o assassinato de Maduro.

Entre os americanos ainda presos está Jonathan Pagan, que administrava uma padaria na Venezuela juntamente com sua mulher venezuelana, de acordo com os homens que retornaram.

David Guillaume, que havia sido detido na Venezuela, em Bogotá, Colômbia, em 14 de março de 2025: turistas americanos de tornaram prisioneiros de uma ditadura
 Foto: Fernanda Pineda / The New York Times

Entre eles está também Jorge Vargas, um homem mais velho, com problemas de saúde, cuja condição, segundo os ex-detentos, piorou tanto que ele precisava de ajuda para levantar da cama.

Um terceiro americano ainda detido é o veterano da Força Aérea Joseph St. Clair, que fez quatro incursões ao Afeganistão e, de acordo com seu pai, viajou para a Venezuela em busca de tratamento para o transtorno de estresse pós-traumático de que sofre.

“Ele serviu ao seu país”, disse seu pai, Scott St. Clair, que afirmou estar preocupado sobre como o TEPT de seu filho o afetaria na prisão. Ele pediu ao governo Trump que faça tudo o que puder para tirá-lo de lá. “Estou totalmente no escuro”, disse Scott, “em busca de raio de sol”.

A Prisão

A Venezuela — suas montanhas, suas praias, seu povo — os chamava. Era setembro do ano passado.

O autointitulado desenvolvedor de software Werber, de 62 anos, contou que estava em viagem pela América Latina.

David Guillaume, de 30 anos, é um enfermeiro que vive na Flórida e viajava com tempo de sobra. “Tenho três semanas”, pensou ele. “Quero realmente fazer algo diferente.”

David Estrella, de 64 anos, pai de cinco filhos, de Nova Jersey, vivia um período no Equador. Ele disse que só queria ver uns amigos.

Todos explicaram que eram viajantes intrépidos e que não tinham ideia que estavam caindo em uma armadilha política.

Werber adquiriu um visto e foi viajar pela Venezuela — dirigindo ao longo da costa, escalando o Monte Roraima — até que, disse ele, autoridades em um aeroporto o puxaram de lado, em 19 de setembro, o trancaram em uma base militar, o levaram de avião para Caracas e o deixaram em uma prisão de alta segurança chamada Rodeo 1.

Detida ao lado dele estava sua namorada, uma cidadã venezuelana. Guillaume, que foi detido no mesmo dia, e Estrella, preso em 9 de setembro, mal entravam no país quando foram capturados. Ambos chegaram a Cúcuta, na fronteira entre Colômbia e Venezuela, buscando permissão para entrar como turistas.

Gregory David Werber segura uma foto dele e de sua namorada, uma cidadã venezuelana: traumas após sre libertado da prisão
 Foto: Caitlin O’Hara / The New York Times

Após apresentar seu passaporte a autoridades venezuelanas, Estrella foi levado a um veículo, disse ele, algemado, encapuzado e colocado em um avião rumo a Caracas.

Guillaume e sua noiva, Jaralmy Barradas, uma cidadã venezuelana, foram enviados para a capital de carro.

Em Caracas, Estrella lembra que passou cinco dias sentado numa cadeira de um escritório administrado pela agência de contrainteligência militar do país. Ele contou que algemas com pontas internas rasgaram seus pulsos.

As autoridades escrutinaram seu telefone e o interrogaram, sempre com câmeras gravando.

“Estava claro que eles não sabiam quem eu era”, disse ele, “nem tinham nenhuma ideia do motivo pelo qual me detiveram, além de eu ser americano”.

Os dois homens disseram que também foram levados para o Rodeo 1 de cuecas, fotografados, barbeados e detidos em celas de um andar repleto de estrangeiros. Dezenas e dezenas de estrangeiros.

David Estrella em sua casa em Iselin, New Jersey, em 12 de fevereiro de 2025: Estrella foi detido na Venezuela e diz que teve dificuldades para dormir durante seus primeiros dias como um homem livre, acordando repetidamente para se certificar de que sua libertação ‘não era um sonho’
 Foto: Bryan Anselm / The New York Times

A Rebelião

Um homem chamado Tubarão comandava a prisão. Os guardas usavam apenas pseudônimos — Bronco, Lúcifer — que ostentavam nas lapelas.

As celas, de dois passos e meio por cinco passos e meio, segundo Estrella, eram de concreto, com portas de metal. Os americanos presos na Rodeo 1 disseram que ficavam confinados nesses caixotes o dia inteiro.

Os detentos venezuelanos, incluindo militares dissidentes, ficavam em um andar superior; alguns mantidos por semanas em um pequeno recinto chamado “zona de punição”, onde eram despidos e recebiam pouca comida. Guillaume descobriu isso durante uma breve visita.

Tubarão ignorava os pedidos dos americanos para ver advogados e autoridades dos EUA, disseram eles.

Entre os ex-detentos americanos, Werber era talvez o mais experiente nessa situação. Ele tinha saído da prisão nos EUA dois anos antes, depois de cumprir pena por lavar dinheiro para um cartel de drogas.

David Guillaume, que havia sido detido na Venezuela, com a família de Jaralmy Barradas em Bogotá, Colômbia, 14 de março de 2025
 Foto: Fernanda Pineda / The New York Times

Autoridades federais disseram que ele tinha condenações anteriores por fraude de cartão de crédito, contrabando, furto qualificado e fuga das autoridades — na década de 80, ele escapou de uma prisão da Califórnia. Na década de 90, foi preso após uma perseguição de carro em alta velocidade, de acordo com notícias da época, acusado de usar cheques falsos para comprar motos náuticas e um Porsche.

Werber disse que tudo isso é “passado” em sua vida, que ele tinha ido à Venezuela como turista — e para analisar a indústria do bitcoin — sem planos de cometer crimes.

“Cometi atos imperdoáveis”, disse ele. “Mas não sou mais assim.”

Na Rodeo 1, Werber se tornou uma espécie de líder. Ele era chamado de “Capitão” e “Furioso G” pelos colegas. Em uma manhã, ele saiu de si. “Somos todos inocentes!”, gritava ele, batendo na porta de sua cela. “Deixem-nos ir embora!”

Outros se juntaram, disseram os homens. A fúria se espalhou. Soldas de metal começaram a se romper. Blocos de concreto se soltaram. Dois presos usaram blocos soltos como aríetes, disse Werber, e arrombaram as portas de suas celas.

Mas a sensação de vitória não durou muito.

Os guardas pegaram os equipamentos antidistúrbio, jogaram spray de pimenta nos prisioneiros, colocaram sacos sobre suas cabeças e começaram a espancá-los, disse Guillaume.

“Um dos comandantes do regimento veio e pisou na minha cabeça”, continuou Guillaume. “Ele disse, ‘Bem-vindo à Venezuela. Bem-vindo ao inferno.’”

A Liberação

Em Washington, Trump acabava de assumir a presidência, e em Caracas Maduro pedia um novo começo para as relações bilaterais. Em 31 de janeiro, Trump enviou Grenell para a Venezuela.

A reunião representou uma grande vitória para o líder venezuelano, que não recebia uma visita pública de uma autoridade americana havia anos.

O autocrata, sorrindo para os fotógrafos, concordou não apenas em libertar detentos americanos, mas também em aceitar venezuelanos deportados dos EUA. Fundamental para as ambições de Trump de deportar milhões de imigrantes.

Os guardas levaram Werber, Guillaume, Estrella e outros três homens para um carro. Guillaume pôde ver o mar caribenho enquanto eles rumavam para o aeroporto. Mas contou que só acreditou que realmente estava indo para casa quando entrou no avião. No ar, os homens receberam um telefonema de Trump.

Posteriormente, Estrella disse que o presidente é “incrível” e que estava grato pelo governo ter tornado sua libertação prioridade. Mas ficou perplexo com a assistência limitada que recebeu ao chegar — ele disse que perdeu 18 quilos na prisão e voltou para casa com sérios problemas nervosos e nas costas.

Na noite da libertação, os homens foram levados para um hotel “e pronto”, disse Estrella. Nenhum exame médico além de uma verificação de sinais vitais. Nenhuma visita de psicólogo. Nenhum convite para algum programa de reabilitação do governo — algo normalmente oferecido para ex-prisioneiros que retornam.

Os homens disseram que somente em março começaram a receber telefonemas do Departamento de Estado, em que lhes foi informado que Rubio os havia declarado “detidos injustamente”, uma qualificação que lhes garantiria anos de acesso a ajudas.

O porta-voz do Departamento de Estado disse que o governo estava em contato com os ex-detentos e buscando lhes fornecer suporte adicional.

Seis semanas após sua libertação, Guillaume está vivendo na Colômbia, hospedado com a família de sua noiva, enquanto ela ainda está presa. Ela é uma entre pelo menos 12 venezuelanos presos junto com os americanos — namoradas, cônjuges e seus parentes. Os ex-detentos americanos acreditam que todos ainda estão na prisão.

Guillaume disse que a detenção de sua namorada o atormenta, o faz se sentir “desonrado”. Ele está livre, mas ela não, disse ele, então seu coração e sua felicidade ainda estão presos na Venezuela. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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