Em abril, as cores de Cabo Verde ainda são de barro seco, tons de terra que repousam à espera da bênção da chuva. É um mês de expectativa, em que o verde ainda é promessa e não paisagem. Mas é também o mês em que a Cidade da Praia se enche de sons, de vozes, de passos apressados entre conferências e palcos, de músicos e produtores que atravessam continentes para estar ali. É o mês do Atlantic Music Expo (AME), uma janela cultural que se abre para o mundo e uma possibilidade muito concreta de que a cultura se torne, de facto, o petróleo de Cabo Verde.
Foi com estas palavras, “a cultura é o nosso petróleo”, que Sónia Duarte, diretora do Instituto de Gestão da Qualidade e da Propriedade Intelectual, se apresentou numa das conferências do AME 2025. Uma afirmação com peso, dita com orgulho e convicção, que merece ser levada a sério. Mas para que esta comparação vá além da metáfora, há que entender o que significa transformar cultura em motor económico. A indústria petrolífera não vive apenas da matéria-prima: requer extração, refinação, logística, distribuição e mercados. A cultura cabo-verdiana, abundante em talento e criatividade, precisa agora desse ecossistema de suporte para florescer economicamente.
O Atlantic Music Expo é um dos pilares dessa infraestrutura. Criado há 11 anos com Augusto “Gugas” Veiga na liderança, hoje ministro da Cultura de Cabo Verde, o evento cresceu como uma plataforma internacional de encontro e intercâmbio musical. Em 2025, sob a direção de Benito Lopes, elemento da equipa fundadora e profundo conhecedor do tecido cultural nacional, o AME apresenta-se robusto, mais ambicioso e com uma visão cada vez mais profissionalizada.
O festival tem uma proposta clara: posicionar Cabo Verde como um hub cultural no Atlântico, ponto de passagem obrigatório para quem procura conhecer, contratar, exportar ou importar talento musical. É uma ponte entre a lusofonia, o continente africano, a Europa e as diásporas das Américas. E, mais importante ainda, é um espaço onde a música se cruza com a economia, com a diplomacia e com a geopolítica da cultura.
Tal como nos anos anteriores, o cartaz de showcases reuniu artistas locais e internacionais, num equilíbrio que valoriza o que é da casa e o que chega de fora. A dimensão internacional do AME é uma das suas maiores fortalezas. A cada edição, a Cidade da Praia transforma-se num ponto de encontro global, onde convergem músicos, delegados, programadores culturais, jornalistas e agentes de diferentes latitudes. Em 2025, a presença internacional incluiu representantes de Portugal, Brasil, Itália, Inglaterra, Senegal, França, Gana, Coreia do Sul e Holanda, entre outros países.
Essa diversidade geográfica não só eleva o prestígio do evento, como confirma a centralidade crescente de Cabo Verde no mapa das feiras culturais de média dimensão com impacto estratégico.
É um encontro num mesmo espaço de profissionais oriundos de contextos distintos, com níveis de maturidade diferentes e que mantém uma programação coerente e orientada para resultados concretos — seja no agendamento de novas digressões para artistas locais, seja na construção de colaborações bilaterais com festivais internacionais.
As atuações decorreram na Rua Pedonal e na Praça Luís de Camões, separadas por escassos metros. Para além dos concertos, a curadoria das conferências, que aconteceram no Palácio da Cultura Ildo Lobo, merece um aplauso à parte. Mais de uma dezena de conversas profundas sobre a profissionalização da indústria musical, os desafios da propriedade intelectual, a sustentabilidade de carreiras artísticas e a internacionalização dos músicos africanos marcaram o ritmo dos dias. A qualidade dos painéis foi elevada, tanto nos temas como nos intervenientes. Este não é um festival que fala apenas de cultura, é um festival que fala da cultura como negócio, como estratégia nacional, como futuro.
Cabo Verde é um país que se organiza para brilhar
A excelência do evento também se reflete nos bastidores. A equipa técnica de produção e organização das conferências é, maioritariamente, nacional. Muitos dos profissionais pertencem à nova vaga da diáspora que regressou a Cabo Verde para contribuir com conhecimento, visão e experiência acumulada fora. Esta escolha revela um investimento direto na capacitação interna e na valorização do capital humano do país.
Nos grandes concertos, a presença de técnicos estrangeiros demonstra a ambição do AME em garantir padrões internacionais de qualidade. Não é uma desvalorização do talento local, mas uma aposta estratégica: o AME quer ser referência dentro e fora do país. E isso exige excelência técnica. A boa notícia é que essa convivência entre equipas internacionais e nacionais acaba por ser, também, uma escola prática, onde se transmite conhecimento e, quem sabe, abre caminho para uma produção 100% cabo-verdiana no futuro.
Um dos detalhes mais impressionantes do AME 2025 foi a pontualidade. Numa região do mundo onde a flexibilidade horária é culturalmente aceite, o cumprimento rigoroso dos horários em todas as atividades é um sinal claro de profissionalismo. Tudo foi pensado ao detalhe, previsto e executado com uma precisão que deve começar a ser também associada a eventos culturais de grande escala no continente africano.
O maior desafio que se mantém é o financiamento. Apesar da reputação internacional já conquistada, o festival ainda luta para garantir os apoios financeiros necessários. A antiga direção já o tinha sinalizado, e a nova organização mantém o alerta: sem investimento estável e estratégico, será difícil manter e escalar o impacto do evento.
Este é um ponto crítico. No calendário cultural entre março e abril há três grandes eventos a acontecer, o Festival Grito Rock Praia, o Kriol Jazz Fest e o AME. Seria sensato, e estratégico, que o Ministério da Cultura e o Ministério do Turismo coordenassem os esforços de promoção externa, criando um pacote atrativo para operadores turísticos e culturais internacionais. Essa articulação permitiria captar visitantes durante todo o mês de abril, aumentando o impacto económico no setor hoteleiro, na restauração e nos transportes.
Além disso, ao criar sinergias entre os festivais, seria possível reduzir custos de produção (partilhando infraestruturas e equipas técnicas), aumentar a visibilidade mediática (com campanhas unificadas) e criar uma marca cultural forte que posicione Cabo Verde como capital atlântica da música.
Pensar a cultura como petróleo implica criar uma cadeia de valor. Não basta ter ou extrair talento bruto, é preciso protegê-lo legalmente, promovê-lo, exportá-lo e garantir que os lucros retornam ao país. Afinal, a cultura tem um poder económico real, que gera emprego, atrai investimento, promove o turismo, valoriza o território e melhora a imagem internacional do país. Mas para isso, precisa de políticas públicas consistentes, parcerias privadas inteligentes e uma visão de longo prazo.
Num país onde a música está presente em quase todas as esferas da vida, das cerimónias tradicionais às festas populares, das ruas aos palcos internacionais, é impensável que o contributo económico desse universo continue à margem das contas públicas.
Segundo dados recentes do Banco Mundial e de instituições parceiras no desenvolvimento cultural africano, os setores criativos representam, em média, entre 3% e 7% do PIB nos países onde há uma política ativa de apoio e estruturação. Em Cabo Verde, onde a criatividade é abundante e onde há uma diáspora economicamente ativa e culturalmente influente, o potencial é provavelmente superior, mas continua por medir.
O AME já provou que há mercado, há interesse internacional, há talento e há capacidade técnica. O que falta é a vontade política para integrar a cultura como eixo estratégico do desenvolvimento nacional e tornar-se numa referência mundial na exportação de música, ideias, arte e inovação.
O futuro do país passa pela sua capacidade de transformar ativos simbólicos em ativos económicos. E poucos ativos são tão ricos, tão autênticos e tão poderosos como a sua cultura. O AME é, por isso, muito mais do que um festival. É uma oportunidade, um ensaio geral para o que Cabo Verde pode vir a ser.
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