André Calixto: “Cada um de nós tem de se preparar para viver com menos tecnologia americana” – Sustentabilidade

 

Bilhete de identidade Idade: 52 anos
Cargo: NextBitt, presidente executivo e cofundador; Glose (2013-2015); Glintt, diretor (2009-12); Consiste, diretor (2003-08); GSI, gestor de unidade (95-2003)
Formação: Engenharia de Produção Industrial, Universidade Nova de Lisboa (1995) 

O mais provável é a Europa ser um terceiro bloco tecnológico, também autónoma, criando as suas próprias empresas, e não substituir a América pela China, prevê André Calixto, que lidera uma empresa que depende criticamente da tecnologia dos EUA. Com três décadas de experiência, o presidente executivo e cofundador da NextBitt considera que a UE enfrenta uma desafio, mas igualmente uma janela de oportunidade para recuperar do atraso tecnológico. É nestas alturas que nascem os grandes negócios e as grandes empresas e os países europeus têm “massa cinzenta de boa qualidade” para conseguir substituir “as Microsoft, Google e Oracle por outras soluções”. Para isso, a Europa tem de ser inteligente na gestão da guerra comercial, criar um mercado financeiro único e tratando as empresas como europeias e não como de cada país. Convidado das Conversas com CEO, numa entrevista de mais de meia hora que pode ser ouvida na íntegra em podcast, e aqui editada, falamos ainda dos efeitos da simplificação das regras de sustentabilidade, do uso da inteligência artificial e dos planos de expansão primeiro na Europa e depois para o resto do mundo.

É mais difícil ter uma empresa do que trabalhar por conta de outrem?
Muito mais difícil, mas também é muito mais interessante. Desde novo tive vontade de ter uma empresa, fazer alguma coisa que não existisse. Fiz duas ou três tentativas e, por vários motivos, umas chegaram à frente, mas não correram bem, outras nem aconteceram. E há dez anos foi a altura certa para lançar a NextBitt com mais dois sócios e cá estamos.

Gerir o património das empresas para serem mais eficientes e sustentáveis é o vosso compromisso. Como se faz?
A empresa nasceu centrada na gestão de ativos físicos: edifícios, instalações, máquinas, transportes… E há uns quatro ou cinco anos um cliente, o BPI, disse-nos: ‘Já temos a informação sobre os nossos ativos físicos na vossa solução e, sendo nós uma empresa financeira, vamos estar na linha da frente da CSRD [Diretiva de Reporte de Sustentabilidade Corporativa]’. Fomos atrás do desafio. E, nos três pilares da sustentabilidade – ambiente, social e governação – os ativos físicos têm um papel gigante na parte ambiental. São os responsáveis pelas emissões, produção de resíduos, consumos energéticos. Continuamos a fazer o que fazíamos, mas construímos mais camadas. Recolhemos informação em tempo real dos edifícios e instalações e aproveitamos para calcular a pegada de carbono e hídrica, a gestão de resíduos, por aí fora.  

A UE está a avançar com um conjunto de normas simplificadoras. As alterações vão ter impacto na vossa vida?
Ainda estamos a avaliar. Acredito que não. Houve aqui um excesso de zelo. Há uns anos, quando foi feita a CSRD, a tal diretiva, havia uma ambição um bocadinho desajustada da realidade, com milhares de indicadores que as empresas tinham de produzir. E “milhares” não é uma figura de estilo. O mundo mudou e há um choque de realidade, com a guerra na Ucrânia e com as tarifas. Tudo isso fez com que a Europa se centrasse em identificar aquilo que é efetivamente material, que contribui mais para a pegada de carbono de cada instituição, tentando que se ataquem e reduzam essas componentes. Há um aspeto que para nós não muda: a informação passa a ser tratada com o mesmo nível de escrutínio que a financeira, que há muitos anos é altamente escrutinada e auditada.

Isto não vai reduzir o vosso mercado? Ou seja, era melhor uma diretiva mais complicada?
Não. O nosso foco sempre foram as grandes empresas e, para essas, as simplificações não são demasiado impactantes. Vão ter de fazer exatamente o mesmo tipo de investimentos. Estamos até muito confiantes que esta alteração vai garantir que as empresas se vão focar mais no que é importante e na automação na recolha da informação. Até nos vai beneficiar, porque vai fazer com que projetos que estavam muito dispersos e tinham muitos objetivos em simultâneo, fiquem mais centrados naquilo que é a recolha automática da informação.

Conseguimos atingir melhor o objetivo de redução da pegada de carbono com esta simplificação do que com a confusão que existia anteriormente?
Exatamente. Mais vale ter poucos indicadores e olhar e atuar sobre eles, do que termos uma panóplia gigante de informação que depois não tem tradução em nada de concreto. E quando digo poucos indicadores, ainda há muitas centenas que vão ter de ser produzidos. E do ponto de vista do negócio da NextBitt até vai garantir que os projetos vão ser mais eficazes e centrados no que oferecemos, que é digitalização do processo de recolha de uma ponta à outra.

Outra área com impacto no vosso negócio é a inteligência artificial. Imagino que já a usam.
Quem não tiver inteligência artificial está morto. Temos vindo a investir, até antes deste ‘boom’ gerado pelo ChatGPT. E em duas vertentes em paralelo: uma mais técnica, de ‘machine learning’, em que usamos dados, que recolhemos dos sensores, para detetar tendências e alertar precocemente os clientes sobre coisas que os algoritmos de IA acham que vão acontecer. Temos uma outra, talvez mais espetacular, em que estamos a usar a tecnologia da OpenAI, juntamente com a da Microsoft, para ter um canal de comunicação com a nossa plataforma. Ou seja, em vez de ir ao sistema da NextBitt, abrir ecrãs, falo e ele responde-me. Já temos clientes com esta solução. É um ‘chatbot’ em linguagem natural. Exatamente a mesma tecnologia do ChatGPT, só que ensinado a trabalhar com a informação e os processos que temos na NextBitt. Acredito que em dois ou três anos será o canal preferencial dos nossos utilizadores.

E agora até pode usar o DeepSeek porque os chineses revelaram totalmente o programa.
Sim, têm em ‘open source’, supostamente, o que é mais um atrativo. Mas não é fácil mudarmos agulhas. Imagine um comboio, quando vai num caminho, nem sempre é fácil fazer inversão de marcha. Não quer dizer que não se faça, faz-se, mas é mudar de uma tecnologia ocidental e conhecida para uma que dominamos menos. E não sei se faz sentido manter, em simultâneo, duas origens de IA. Há riscos de perda de controlo do que é que a nossa plataforma faz efetivamente.

Falemos agora das políticas da nova América. Há quem ainda tenha esperança que regresse a América antiga…
Não sou desses. A América antiga já não existe, mesmo que mude relativamente àquilo que é a visão da Administração Trump. Há um ditado que diz que a água não passa duas vezes debaixo da mesma ponte. E essa água já passou. A América não vai ficar onde estamos neste momento, mas também já não vai ser a América antes do Trump. Vai ser outra realidade.

O que coloca desafios. A Europa depende de forma crítica da tecnologia norte-americana. Já referiu que sair da tecnologia americana para a chinesa, por exemplo, não era fácil. É um problema?
É um problema e sobretudo uma questão estratégica muito grande, precisamente porque não é fácil fazer uma mudança radical na tecnologia de base de uma ‘software house’. O que me parece neste momento, ao dia de hoje, é que não faz muito sentido estarmos a tomar grandes decisões, até porque a realidade muda todos os dias. Enquanto a realidade mudar todos os dias não há uma realidade que faça sentido nós seguirmos.

O desafio para a Europa é recuperar este atraso e há aqui uma grande janela de oportunidade.

Mas há uma realidade: a América deixou de ser o que era e não vai ser tão confiável.
Sim. E há o facto de não existir nenhuma empresa europeia nas dez ou 20 maiores tecnológicas. Talvez nas 30 maiores aparece a SAP, mas num setor muito específico. O desafio para a Europa é recuperar este atraso e há aqui uma grande janela de oportunidade. É nestas alturas que surgem os grandes negócios e as grandes empresas. Mas é preciso ajudar os empreendedores a correrem riscos. Quando se fala em fundos de capital de risco, em Portugal são de alguns milhões, na Europa são de dezenas de milhões, nos EUA são milhares de milhões, às vezes numa única empresa. É uma enorme diferença de escala. Nem tudo se resume a dinheiro, mas é um aspeto importante. Vivo numa empresa que teve um ou dois apoios muito residuais, fiscais, durante a sua vida toda. E nunca dependemos deles. 

Está mais a referir-se à necessidade de se criar um mercado financeiro único?
Exatamente. E com capacidade para tratar as empresas como europeias e não apenas como portuguesa ou de outro país qualquer.

Olhando agora para o que cada um pode fazer na sua casa?
O plano de negócios que fizemos, antes da eleição de Donald Trump e após a guerra na Ucrânia, é crescer o mais depressa possível na Europa e depois temos de sair. Estamos num processo muito acelerado de trabalhar em Espanha e noutras geografias europeias. A única maneira de uma empresa como a nossa sobreviver é crescendo. Temos de crescer a dois dígitos todos os anos, sob pena de não sobrevivermos a esta pressão.

Precisamos que a Europa seja inteligente [na guerra comercial]. E há sinais que mostram essa inteligência, que é não aplicar tarifas recíprocas cegas e ser muito seletivo.

Mas há a questão de as vossas soluções dependerem de tecnologia americana.
É um facto. E temos poucas alternativas. Se pensarmos numa ‘cloud’ pública alternativa à da Microsoft, de repente, só me ocorrem americanas – e não muitas. Precisamos que a Europa seja inteligente. E há sinais que mostram essa inteligência, que é não aplicar tarifas recíprocas cegas e ser muito seletivo, sob pena de estarmos a automutilar-nos economicamente. Há sempre a alternativa de mudar radicalmente e não vejo isso como uma grande catástrofe. É um desafio, se a América se fechar ao mundo, o que não acredito. O que está por trás desta administração é muito a visão negocial, que acha que tudo tem um preço. Viu-se já com os telemóveis e com os PC. O que é importante, tanto quanto possível, é garantir que não vamos atrás desta guerra comercial. E cada um de nós tem de se preparar para viver com menos tecnologia americana e menos proteção, não apenas no sentido da defesa. O que é uma oportunidade de negócio para os europeus. Se o mundo se fechar em blocos continentais vai haver muito negócio a crescer e a florescer na Europa, onde existe massa cinzenta de boa qualidade. Rapidamente conseguimos substituir as Microsoft, as Googles as Oracle, por outras soluções. A América vai dar uns passos atrás, mas a confiança perdeu-se e, por isso, não vamos voltar àquilo ao que era antes. Muito honestamente, acho que vão nascer muitas empresas e o mundo vai mudar muito.

Empresas europeias?
E asiáticas. Atenção que a Ásia está uns passos largos à frente da Europa em termos tecnológicos.

Mas vamos substituir a América pela Ásia?
Não. Penso que isso não vai acontecer. É mais provável ficarmos como um terceiro bloco tecnológico, também autónomos, e criarmos aqui as nossas próprias empresas. Não há confiança que permita esse movimento. A visão que tenho neste momento é que a Europa se feche nela própria. Embora, espere, sinceramente, que isso não aconteça.


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