“Ainda tomamos inconscientemente como certo que uma mulher existe para trazer filhos ao mundo” – Observador

Guadalupe Nettel gosta de deixar as pessoas desconfortáveis. Não um tipo de leitor em particular ou um grupo distinto, mas a sociedade “bem pensante” no seu todo. A sua especialidade é criar o tipo de livros onde vemos os nossos preconceitos espelhados sobre nós, capazes de deixar em xeque ideias que tínhamos como evidentes e imutáveis.

“Acho que se há alguma coisa que caracteriza os meus livros — que não é um programa que eu tenha estabelecido para mim própria, mas uma forma de ver o mundo — é o facto de gostar de pôr em cima da mesa, de apontar, aquilo de que as pessoas não gostam tanto de falar, em particular as diferenças físicas e neurológicas”, conta ao Observador na sua vinda a Lisboa para promover o mais recente livro editado em Portugal, “A Filha Única” [Dom Quixote].

Em “O Corpo em que Nasci” [Teodolito, 2013], por exemplo, debruça-se sobre o preconceito face ao imperfeito, ao que foge ao normal, acompanhando uma mulher que nasceu com um defeito num olho e que recorda a sua infância de confronto com a deficiência. “Sempre me interessei por aquilo a que alguns sociólogos chamam a ‘figura do monstro’, no sentido em que é aquilo que se separa das normas do cânone da beleza, de uma suposta normalidade na qual não acredito e tento questionar”, completa.

Nessa história, há algo de verídico e catártico, já que a própria escritora mexicana nasceu com um problema congénito num dos olhos. “A Filha Única” também transporta algo de real consigo, apesar de não estar enraizado na vida de Nettel. Neste romance — que esteve na shortlist do Prémio Booker Internacional de 2023 — acompanhamos o drama de duas mães: uma cujo filho de oito anos parece uma fera incontrolável, outra que ao fim de muito tempo a tentar conceber descobre ao fim de oito meses de gestação que a filha tão desejada vai nascer com uma doença congénita grave que quase de certeza provocar-lhe-á morte imediata mal nasça. Este segundo caso aconteceu a uma amiga de Nettel, que autorizou-a a ficcioná-la, e serviu de inspiração a esta história.

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A Filha Única, Guadalupe Nettel, D. Quixote

É pelos olhos de Laura, uma mulher na casa dos trinta anos, solteira e veementemente oposta à ideia de ser mãe que seguimos a trama, porque “as mulheres que decidem não ter filhos não estão suficientemente representadas”. “Antes, sobretudo antes, aquelas que tomavam esta decisão eram vistas como mulheres a quem faltava alguma coisa, não estariam completas”, afirma Nettel. Serve então esta história para ensaiar uma reflexão sobre o papel das mulheres no mundo contemporâneo, o fantasma da violência obstétrica e doméstica, os dilemas éticos de trazer crianças ao mundo. Tudo isto, seguindo uma personagem que não termina este livro como começou, mas que também não segue um caminho linear.

“A Filha Única” é inspirada na história de uma amiga sua. Numa era em que se discute a ética de ficcionalizar e expôr vidas reais, como decidiu encarar este projeto?
Bem, sim, é algo muito delicado. Neste caso, perguntei diretamente à minha amiga se ela me autorizava a escrever sobre si. Não estou a dizer que todos os escritores têm de reagir da mesma forma ou agir da mesma maneira, penso que cada circunstância é diferente. Neste caso, preocupei-me muito mais com a sua amizade do que em escrever um livro sobre a sua história. E, ao mesmo tempo, também queria que ela participasse de alguma forma, contando-me a sua experiência, por isso esperei [pela sua decisão], porque ela é muito reservada, muito discreta. Ela pensou um pouco e depois decidiu que queria fazê-lo, porque queria dar visibilidade a este tipo de experiências, queria que as pessoas falassem delas e as conhecessem, porque são histórias que tendem a ficar escondidas, por pudor ou por algum tipo de imposição social.

Esta é uma história que aborda sem reservas as diferentes problemáticas à volta da maternidade, especialmente perante as conquistas do feminismo e da emancipação feminina. Há mulheres censuradas por não quererem ter filhos, mas também há quem seja criticado por querer “subjugar-se” a esse papel. A protagonista que seguimos, Laura, insere-se nesse primeiro grupo. Porquê ela a comandar a história?
Porque me parece que as mulheres que decidem não ter filhos não estão suficientemente representadas, esta escolha é algo recente, é muito moderna. Antes, sobretudo antes, aquelas que tomavam esta decisão eram vistas como mulheres a quem faltava alguma coisa, não estariam completas. E agora é uma escolha cada vez mais comum. Penso que era importante falar sobre como surge esta opção e quais são as condições na sociedade que muitas vezes nos obrigam a seguir determinados caminhos. Mas, bem, não é a única posição sobre a maternidade no livro, há várias.

E a própria Laura vai mudando ligeiramente a sua posição. Vemo-la no início do livro quase como que a evangelizar as suas amigas para não terem filhos, mas essa é uma posição que vai sendo matizada.
Gosto muito de seguir literariamente os processos em que as personagens, que partem de ideias muito preconcebidas e veementes, se vão apercebendo de que a vida tem nuances e que nos coloca em circunstâncias em que por vezes nos contradizemos. Ela logo no início [do livro] laqueou as trompas, esterilizou-se precisamente porque não queria sequer semear a suspeita de que um dia iria ter filhos. Por outras palavras, era uma pessoa muito radical. Mas uma pessoa tão radical como ela também pode mudar. Acho que, por exemplo, não é que de repente tenha passado a gostar de crianças e se tenha tornado mais aberta a crianças em geral, mas tem um encontro importante na sua vida com este miúdo, o Nicolás, o filho da vizinha. Isso levou-a a tomar atitudes de cuidado que geralmente associamos às mães na nossa sociedade, na forma como estamos organizados. Esta mudança, no entanto, é algo que pode acontecer a qualquer pessoa em qualquer momento, consoante as suas circunstâncias.

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