O degelo dos glaciares da Cordilheira Branca, nos Andes, no norte do Peru, está no centro de uma batalha legal que servirá para testar não apenas as obrigações legais das empresas responsáveis pela emissão de gases com efeito de estufa, mas também o papel destes poluentes nas alterações climáticas. A crise climática está a causar fenómenos extremos em todo o mundo.
O Tribunal Regional Superior de Hamm, na Alemanha, começa esta segunda-feira as audiências de um processo histórico apresentado pelo agricultor peruano Saul Luciano Lliuya contra a RWE, gigante germânico da energia. O agricultor defende que as emissões da RWE contribuíram para o degelo dos glaciares andinos, aumentando o risco de inundações na sua casa.
O caso alemão poderá abrir um precedente para futuros litígios sobre o clima, responsabilizando as empresas pelas emissões do passado e exigindo-lhes que ajudem a financiar a adaptação climática das comunidades afectadas.
Saul Luciano Lliuya, um agricultor e guia de montanha de Huaraz, exige que a RWE ajude a pagar medidas de adaptação às inundações na cidade. Esta indemnização estaria associada à quota-parte da empresa de energia nas emissões globais de gases com efeito de estufa produzidas pela humanidade (ou seja, emissões antropogénicas). Lliuya argumenta que o efeito de estufa agravado por estes poluentes acelerou o derretimento dos glaciares nos Andes.
Peru testa tribunais
O caso começou em 2015 na cidade alemã de Essen, sede da RWE, e tem por base uma secção do código de direito civil alemão relativa à interferência na propriedade.
Foi inicialmente rejeitado pelo tribunal de primeira instância, mas Lliuya levou-o ao Tribunal Regional Superior de Hamm, que o deixou avançar em 2017.
O tribunal tem agora de determinar primeiro se o degelo dos glaciares está a aumentar os níveis de água no lago Palcacocha, a mais de 4500 metros acima do nível do mar, e se representa um risco directo para a casa de Lliuya, em Huaraz, nos próximos 30 anos.
Apoiado pelo grupo activista Germanwatch, Saul Luciano Lliuya quer que a RWE pague cerca de 17 mil euros para contribuir para um projecto de defesa contra inundações no valor de 3,2 milhões de euros.
RWE causou 0,5% das emissões
As audiências terão início esta segunda-feira no Tribunal Regional Superior de Hamm, na Alemanha, com os advogados de Lliuya a alegarem que a RWE é responsável por cerca de 0,5% das emissões globais antropogénicas desde a Revolução Industrial.
O valor é calculado com recurso à base de dados Carbon Majors sobre a produção histórica das principais empresas de combustíveis fósseis e de cimento.
Assim, o agricultor argumenta que a RWE deve cobrir uma parte proporcional dos danos causados pela crise climática, devendo pagar 0,5% de um projecto local de defesa contra inundações no valor de 3,5 milhões de dólares – ou seja, cerca de 17 mil euros (18.500 dólares).
“Não começámos com muitas esperanças, mas agora o caso chamou muito a atenção”, disse Saul Lliuya à Reuters, perto da sua casa, numa região montanhosa nos arredores de Huaraz, onde cultiva milho.
Saul Luciano Lliuya, que move uma accão judicial contra a empresa alemã de energia RWE, cultiva milho em Huaraz, Peru
Angela Ponce / Reuters
Saul Lliuya e a Germanwatch querem abrir um precedente para que as empresas poluidoras paguem por projectos que mitiguem o impacto das mudanças climáticas. “A empresa poluiu e deve assumir a responsabilidade pelas suas emissões”, afirma o agricultor peruano.
A RWE, que está a eliminar gradualmente as suas centrais eléctricas alimentadas a carvão, diz que a queixa é infundada e que um único emissor de dióxido de carbono não pode ser responsabilizado pelo aquecimento global. “Esta acção judicial é uma tentativa de criar um precedente que permita que cada emissor de gases com efeito de estufa na Alemanha possa ser legalmente responsabilizado pelos efeitos das alterações climáticas a nível mundial”, declarou a empresa num comunicado. “Se tal pretensão existisse ao abrigo da legislação alemã, também seria possível responsabilizar todos os automobilistas.”
“Acreditamos que isto é juridicamente inadmissível e também a abordagem errada do ponto de vista sociopolítico”, acrescenta a RWE na nota de imprensa.
Avalanches de gelo e deslizamentos
Peritos nomeados pelo tribunal visitaram o local em 2022 e os seus relatórios, publicados em 2023 e 2024, serão examinados na audiência de dois dias.
Lukas Arenson, um perito geotécnico e vice-presidente da Associação Internacional de Pergelissolo, disse que o relatório se tinha centrado no efeito das avalanches de gelo sobre o nível da água, mas negligenciou o maior risco de deslizamentos de rochas das áreas de pergelissolo (em inglês, permafrost, que consiste numa camada do subsolo da crosta terrestre que está sempre congelada). Esta estrutura rochosa desempenha um papel crucial na manutenção das montanhas.
Se o tribunal considerar que existe um risco específico de inundação para a casa de Lliuya, irá então examinar o impacto das alterações climáticas e das emissões de gases com efeito de estufa no derretimento dos glaciares andinos e no aumento do risco, o que poderá demorar mais dois anos.
“Temos um forte âmbito causal e temos também um documento de atribuição que mostra que o glaciar não teria recuado de todo sem as alterações climáticas”, afirmou Friederike Otto, climatologista do Instituto Grantham para as Alterações Climáticas do Imperial College de Londres, no Reino Unido.
Um estudo realizado em 2021 pelas universidades de Oxford e Washington concluiu que o degelo de um glaciar nos Andes peruanos foi causado pelo aquecimento global provocado pela humanidade. A advogada de Lliuya, Roda Verheyen, afirma que o facto de o tribunal ter aceitado o caso já era uma vitória, independentemente do resultado. “Saul tinha muito pouca ou nenhuma esperança de que isto chegasse a algum lado. E agora estamos todos aqui”, refere Verheyen.
“Mesmo que percamos, vamos finalmente expor todos os argumentos, espero”, disse a advogada durante uma sessão com jornalistas. “Isso significa que podemos basear-nos nisso para outros casos, quer sejamos nós directamente ou outras pessoas”, concluiu.
Precedente jurídico
“Os juristas estão a observar atentamente para perceber até que ponto isto vai criar um forte precedente”, afirma Sebastien Duyck, advogado sénior do Centro para o Direito Ambiental Internacional (CIEL, na sigla em inglês).
A soma que os países industrializados devem contribuir para mitigar os efeitos do aquecimento global – como a subida do nível do mar, tempestades extremas e ondas de calor – tem sido discutida em sucessivas Cimeiras do Clima das Nações Unidas até à COP29, realizada em 2024 em Baku, no Azerbaijão. Desde então, o Presidente Donald Trump anunciou a retirada dos EUA destas negociações, enquanto outros países desenvolvidos estão a desviar os orçamentos de ajuda para desafios internos ou despesas com a defesa.
As águas do rio atravessam o bairro de Nueva Florida, que corre o risco de ser inundado devido ao degelo glaciar na região dos Andes, Peru
Angela Ponce / Reuters
Harjeet Singh, director fundador da Satat Sampada Climate Foundation, dedicada à justiça climática global, afirma que casos como o de Lliuya poderão abrir caminho para fontes de financiamento alternativo.
“Podemos concentrar-nos nas empresas que são responsáveis pela crise e na forma como podemos angariar receitas para ajudar as pessoas a recuperar dos impactos actuais”, afirmou Singh.
“O rio está sempre a subir”
Nas montanhas acima de Huaraz, a água de degelo dos glaciares inchou o lago Palcacocha, cujo volume aumentou 34 vezes entre 1974 e 2016. Isso cria uma ameaça para Huaraz, que tem uma população de mais de 65 mil habitantes, significativamente maior do que quando ocorreu a última grande inundação, em 1941.
“O rio está sempre a subir, quem não teria medo?”, disse Nestor Acuna, um residente de Huaraz que vive perto do rio Quilcay, que pode transbordar se a água do lago Palcacocha galgar as margens. “Às vezes recebemos a família e, na época das chuvas, temos medo que o rio transborde ou que haja um deslizamento de terra”, acrescenta Nestor Acuna.
Quando a Reuters falou com Acuna, em meados de Março, o governo tinha encerrado as estradas à volta do lago devido a um deslizamento de terras e às chuvas. O lago é monitorizado pelas autoridades e foram instaladas uma barragem e tubos de drenagem para baixar o nível da água, mas alguns funcionários do governo dizem que são necessárias mais infra-estruturas para proteger Huaraz.
O Peru alberga cerca de 70% dos glaciares tropicais do mundo, considerados de alto risco por estarem constantemente perto da temperatura de fusão. Desempenham um papel fundamental no abastecimento de água, armazenando a queda de neve durante os meses mais frios e fornecendo água no Verão.
O último inventário de glaciares do Peru, realizado em 2023, revelou que o país tinha perdido mais de metade dos seus glaciares nas últimas seis décadas devido às alterações climáticas.
A região de Ancash, onde se situa Huaraz, tem 26 lagoas que apresentam um risco de inundação, segundo o relatório. A cordilheira Branca, popular para caminhadas e montanhismo, tem registado um rápido recuo glaciar e condições cada vez mais perigosas.
“O degelo glaciar é realmente visível, todos os anos que se visita o glaciar está a recuar ainda mais”, disse Lliuya. Para além do risco de inundações, a longo prazo, esta situação poderá conduzir a problemas de abastecimento de água potável. “Preocupa-nos, entristece-nos, que estejamos a perder os nossos glaciares.”
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