BRASÍLIA – Prestes a completar dois meses do terceiro mandato do ditador venezuelano, Nicolás Maduro, o governo Luiz Inácio Lula da Silva retomou, com discrição, alguns contatos com o regime, enquanto observa com atenção as medidas adotadas pela Casa Branca de Donald Trump em relação à Venezuela. Lula e Maduro se afastaram depois das eleições venezuelanas do ano passado, marcadas por denúncias de fraude, que não foram reconhecidas pelo Brasil, apesar da proximidade histórica entre petistas e bolivarianos.
Segundo interlocutores do governo, o cenário regional é complexo em razão da imprevisibilidade da Casa Branca, que ora se aproxima e ora pune o regime chavista, e pela aliança tácita entre o bolsonarismo e o trumpismo. Por isso, no momento, o foco do Itamaraty é manter contatos pontuais e pragmáticos, com foco na situação humanitária de asilados na embaixada argentina, que está sob proteção diplomática do Brasil desde o ano passado.
Os chanceleres Mauro Vieira e Iván Gil se encontraram recentemente em Paramaribo, capital do Suriname, durante reunião de ministros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Em paralelo, o Brasil monitora os movimentos do governo Trump em direção a Caracas, mas a avaliação de momento no Itamaraty é a de que a Casa Branca tem dado sinais trocados desde a posse.
Lula não fala com Maduro desde o ano passado, e governos mantêm relação fria Foto: Wilton Jr/Estadão
Um acordo improvável
Após a posse, Trump chegou a dizer que provavelmente deixaria de comprar o petróleo venezuelano, mas de forma surpreendente para seus apoiadores, inclusive no Brasil e na Venezuela, decidiu estabelecer uma ponte com Caracas. Em 31 de janeiro, Trump despachou para a Venezuela seu emissário para missões especiais Richard Grenell. O enviado de Trump foi recebido e deixou-se fotografar no Palácio Miraflores ao lado dos sorridentes Nicolás Maduro e Jorge Rodríguez, presidente da Assembleia Nacional.
Eles selaram um acordo que libertou seis americanos que estavam presos na Venezuela, acusados de agirem como mercenários e terroristas em conspirações para assassinar Maduro e desestabilizar o país. Grenell ainda conseguiu que Maduro topasse buscar nos EUA imigrantes venezuelanos em vias de deportação, seja por situação documental irregular ou crime – mesmo acusados de formar a facção criminosa Trem de Aragua.
Dez dias depois, Caracas já enviava os dois primeiros jatos da estatal Conviasa para remover 190 venezuelanos. Maduro inseriu a iniciativa como parte de seu “Plano de Volta à Pátria”, lançado em 2018 e destinado a repatriar a diáspora venezuelana. Para isso, a Conviasa, que estava sob sanções do governo americano, recebeu uma autorização para voar ao país.
O governo americano disse que a visita de Grenell não deveria ser vista como um reconhecimento à legitimidade do terceiro mandato de Maduro, contestada pela comunidade internacional, mas, em 23 de fevereiro, Grenell disse a uma rede de TV que Trump não quer forçar a “mudança de regime” na Venezuela. Segundo ele, os governos pretendiam iniciar um “relacionamento diferente”. Mais tarde, Maduro sugeriu um recomeço nas relações entre a Casa Branca e o Palácio de Miraflores.
O acerto com Maduro foi o primeiro gesto concreto de Trump para a América Latina. Chamou a atenção da diplomacia brasileira que a Casa Branca conduziu o entendimento sem o secretário de Estado, Marco Rubio, um senador republicano da Flórida, cuja base política é formada por expatriados de regimes de esquerda como Cuba e Venezuela. Além disso, a oposição venezuelana e exilados na Flórida ficaram desorientados com a reaproximação.
O Estadão apurou que diplomatas brasileiros foram buscar explicações junto aos integrantes do Departamento de Estado, para saber qual era a extensão do entendimento estabelecido por Grenell. Ouviram que o acordo selado em torno dos deportados e dos prisioneiros não envolvia a concessão do petróleo, e que as licenças de exploração tinham uma espécie de renovação mensal. Mas, também em Brasília, o movimento americano gerou indagações. Um embaixador disse que se Lula enviasse Celso Amorim, como Trump fez com Grenell, “teria virado um escândalo”.

Nicolás Maduro, à direita, apertando a mão de Richard Grenell, enviado especial do presidente Donald Trump, no palácio presidencial de Miraflores, em Caracas. Foto: Assessoria de imprensa presidencial da Venezuela, via AP
A renovação foi suspensa por Trump, que exigiu maior cooperação venezuelana nas deportações para retomá-la. Segundo diplomatas que acompanham o tema, a petroleira americana ainda tem um período de seis meses para cumprir com a determinação da Casa Branca, depois de oficializada. A avaliação de autoridades brasileiras é que há uma grande chance de que Trump esteja apenas usando mais uma vez de tática negocial – anunciar uma decisão dura para, de uma posição com poder de sanção, em seguida negociar em condições mais favoráveis aos Estados Unidos.
Trump e o bolsonarismo
Um dos traços essenciais da relação entre a Casa Branca e o Planalto – ou a ausência dela, por enquanto – é ver até onde Trump irá para ajudar a oposição no Brasil. Os elos entre trumpistas e bolsonaristas fazem parte do termômetro para tomada de decisão do governo. O Planalto calcula ações para não municiar a oposição, e a Venezuela, por seu simbolismo tanto para o PT quanto para os bolsonaristas, entra nessa equação.
Quem conduz a linha de frente do relacionamento tem dúvidas sobre o futuro comportamento da oposição brasileira. E também se o canal aberto por Trump com Maduro serviria como biombo ou um anteparo para neutralizar críticas caso Lula também autorizasse a intensificação de contatos políticos.
Uma autoridade do governo Lula entende que Trump promoveu até agora “movimentos contraditórios” em relação a Caracas e analisa que o republicano opera na “lógica da incerteza”. Para essa fonte diplomática, a abordagem para a Venezuela será pouco previsível, o que exigirá dos governos da região um “alerta constante” porque, de uma hora para outra, Trump tomar uma ação intempestiva.
Na mesma linha, um segundo embaixador, responsável pela interlocução na região, disse que ainda é preciso “observar e entender a tônica da relação dos Estados Unidos com a Venezuela” e que “o vento ora sopra para um lado, ora para outro”.
Uma terceira fonte diplomática afirmou que o governo Lula apostou numa relação produtiva quando o petista voltou ao poder, mas agora vai manter agora o mínimo de funcionamento “institucional”, sem coordenação de posições, consultas políticas e que o país vai “aguardar um momento melhor”.
Há um diálogo “mínimo” e “civilizado”, inclusive com a embaixada venezuelana em Brasília, relatam diplomatas, mas sem dar impulso a iniciativas conjuntas. O Brasil evitou subir o tom justamente para manter canais de interlocução aberto. É o que uma embaixadora define como uma posição de “baixo perfil, estável, sem arroubos para um lado ou para o outro”.
A posição brasileira, orientada pelo Palácio do Planalto, não deve mudar, se não houver um fato novo. Diplomatas admitem que se trata de uma postura “desconfortável” politicamente, mas pragmática. Um embaixador disse que não há “grande apetite” em buscar parceria, mas tampouco vai haver “isolamento” da Venezuela.
Encontro de ministros
O estabelecimento de um elo direto entre Trump e Maduro coincidiu com a retomada de contatos presenciais de nível ministerial entre Brasília e Caracas, por meio dos ministros das Relações Exteriores Mauro Vieira e Yván Gil. O encontro ocorreu um mês atrás, em Paramaribo, capital do Suriname, durante reunião de ministros da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA).
Trata-se da primeira reunião entre ministros de Lula e Maduro, desde a cerimônia de posse do ditador em 10 de janeiro. Na ocasião, o Palácio do Planalto decidiu não despachar representantes de Brasília, mas também evitou ignorar a cerimônia. A embaixadora do Brasil em Caracas, Glivânia Maria de Oliveira, assistiu à solenidade no salão elíptico do Palácio Legislativo venezuelano. Ela mesma tem contatos “limitados” e “superficiais”, segundo fontes da diplomacia.
O encontro de ministros foi registrado nas redes sociais de ambas chancelarias. Mas com nuances. Nas fotos, o chanceler brasileiro aparece com semblante sério, enquanto o venezuelano sorri. Nenhuma declaração de Vieira foi divulgada. Já Yván Gil disse que a reunião foi “cordial” e que “o encontro nos permitiu reafirmar nossos laços de amizade e respeito mútuo pela soberania dos nossos povos”.
Mauro Vieira e Yván Gil conversaram a sós após meses, embora mantenham interlocução frequente por troca de mensagens e telefonemas. Eles se falaram quando houve um incidente na fronteira e viaturas militares da Venezuela manobraram do lado brasileiro, em Pacaraima (RR). Dois dias antes da reunião, o ministro despachou com a embaixadora Glivânia, em Brasília, e com a secretária de América Latina e Caribe, embaixadora Gisela Padovan.
Salvo-conduto
A reunião de Vieira e Gil foi além do que as postagens em redes sociais sugerem. Segundo três diplomatas a par do assunto, Vieira vocalizou mais uma vez o pedido do governo brasileiro para que o regime chavista dê um salvo-conduto aos asilados políticos que estão na residência oficial do embaixador da Argentina. Não houve pedidos do lado venezuelano.
A preocupação humanitária tem sido uma pauta constante das conversas. Segundo embaixadores, o Brasil já se dispôs até a enviar imediatamente uma aeronave da Força Aérea Brasileira a fim de resgatar os cinco opositores, caso obtenha a permissão do chavismo.
Seria um fato “muito positivo” de parte de Maduro, segundo integrantes da chancelaria brasileira, mas a “falta de progresso não ajuda”. O tom é de lamentação.
O regime jamais abriu uma janela de oportunidade. Embaixadores avaliam que talvez nem o próprio chanceler venezuelano tenha poder de convencimento dos cabeças do regime chavista para liberar, em segurança, a saída do país dos cinco opositores.
Eram seis, mas um deles decidiu abandonar a residência em dezembro – Fernando Martínez Mottola, assessor da aliança opositora Plataforma de Unidade Democrática, teve um derrame cerebral e morreu enquanto estava em prisão domiciliar.
‘Muy amigos’
Embora não tenha reconhecido a eleição passada, o Brasil passou a dizer que “reconhece o Estado venezuelano” e que não pretende cortar relações diplomáticas. Também não há, por outro lado, incentivo a mais aproximação.
No Palácio do Planalto e no Itamaraty, a avaliação é que não existe neste momento abertura para um diálogo em nível mais elevado, entre Lula e Maduro. O petista nunca retornou um pedido de telefonema do chavista, após ter sido anunciado como reeleito, em julho passado, sem comprovação do resultado e com indícios de fraude.
Lula decidiu que não reconheceria o aliado como presidente reeleito, até que comprovantes de votação fossem apresentados, o que nunca ocorreu. Depois disso, houve uma série de embates públicos, com algumas ofensas dirigidas ao próprio Lula e ao assessor especial Celso Amorim, por parte de autoridades venezuelanas. O Palácio do Planalto foi acusado de agir a mando da CIA e interferir em assuntos internos.
A relação piorou quando, em outubro de 2024, o Brasil manifestou objeção ao ingresso da Venezuela no Brics, durante uma cúpula de líderes em Kazan, na Rússia. Madurou se empenhou pessoalmente na adesão, mas se viu impedido por ordem de Lula, que faltou ao encontro por causa de um tombo no Palácio da Alvorada. O chavista viajou de última hora a convite de Vladimir Putin, mas não conseguiu derrubar o veto brasileiro e voltou para Caracas sem um espaço no grupo. Maduro acusou o Brasil de traição.
Integrantes do governo brasileiro entendem que a oposição do Brasil ao ingresso da Venezuela no Brics é uma espécie de ferida aberta na relação. Segundo um embaixador, o veto “ainda dói” em Caracas.
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